28/08/2015

No rasto de Fernão Mendes Pinto - I


Crónica Primeira

Sabei, meus caríssimos leitores e leitoras, que me sinto muito obrigada pelas inúmeras mercês e favores com que sempre me haveis agraciado – encorajando-me com boas palavras, lendo e louvando todas as obras que tenho escrito sobre os navegadores e viajantes portugueses, os primeiros europeus que descobriram mundos até então encobertos e ignorados pelas arrogantes e ricas nações da Europa.

É meu dever mostrar-vos gratidão por meio da minha escrita, pois só nela vivo com a mente, a alma e o coração! Tentarei partilhar convosco as minhas impressões do muito que vir, ouvir, cheirar, tocar e degustar, pelos mares da Pestana do Mundo, com a embaixada da nobilíssima Academia de Artes e Letras – CNC, aos reinos de Pegu, Bramá, Arracão, Sirião, Sião e Angkor.
 
 Convido-vos a viajar comigo pela Imaginação, que é o mais cómodo e veloz navio do mundo para vos levar a todas as partes da Terra, e até do Universo, sem sairdes do conforto das vossas casas, do aconchego dos vossos, cadeirões, coxins ou leitos e, sobretudo, sem que sofrais no corpo e na alma os incómodos, achaques e fatalidades que sempre acontecem nas longas peregrinações de quem, como eu, tem de cruzar mares e ventos para passar além da Taprobana, remar contra as marés da Fortuna a fim de pisar portos desconhecidos, podendo sofrer abordagens de corsários e perder ou ver roubada a equipagem, se não mesmo a própria vida. 

Confiando que me sois leais e não me denunciareis ao Tribunal do Santo Ofício (que não hesitará em me lançar na fogueira purificadora de um Auto-de-Fé, por bruxaria e heresia), sou compelido a confessar-vos ter já vivido, nos últimos quinhentos anos, não uma, mas inúmeras vidas, encarnando em diferentes gentes de desvairadas épocas e lugares. Não sou um demónio que possui e suga a vida do seu hospedeiro, nem faço dano àqueles cujos corpos habito, pelo contrário, faço-os reviver para sempre. Limito-me a observar o mundo através dos seus olhos e dos seus restantes sentidos e a interpretar o que sentem e o que fazem.

Fui hoje à reunião do conselho da embaixada, conhecer a Embaixatriz e alguns dos viajantes. Não sei ainda em que corpo viajarei. talvez no de uma mulher, das pioneiras que quiseram ver mais mundos além do da prisão da casa paterna ou de um esposo; ou no de algum letrado, cronista ou oficial de outro ofício, sem futuro em Portugal, nestes conturbados tempos do Século XVII. Sim, meus amigos, estou num limbo, entre dois períodos da História, o do último livro escrito e o do que se está a escrever. 

Escolho este último, o do Seiscentismo, com a nação empobrecida, esburgada até ao osso pelas nações estrangeiras mais ricas, que nos têm governado por meio de uma tríade de mandatários, a quem os nossos governantes dobram a cerviz, vendendo o país ao desbarato e impondo ao povo uma vida miserável e sem esperança, enquanto preservam os privilégios dos ricos e poderosos (os maiores mestres da Arte de Furtar, de todos os tempos). Por mais motins e protestos que os mesteirais e outras gentes tenham feito para impedir a destruição da res publica, nada conseguiram senão a prisão e o desterro.

Partirei dentro de dias e talvez me deixe ficar em qualquer um dos lugares por onde passarmos, que não esteja em guerra, pois o mundo parece ter endoidado e, por todas as partes, se matam as gentes por um chique-mique, por razões de raça ou de credo. Mouros, cristãos e judeus falam de cruzada e de jihad; lançam, uns contra os outros, bombardas, panelas de pólvora e demais engenhos explosivos; afundam navios, atacam caravanas e acampamentos, vilas e cidades, fazendo grande mortandade.
Por tais razões, na embaixada aos reinos de Bramá e de Sião – porque de uma embaixada se trata e não de um acto de guerra ou de espionação – se vai embarcar em grandes cuidados, porque os mais sábios astrólogos da nação (cristãos, judeus e mouros) fizeram uma leitura dos astros nada auspiciosa para esta viagem. A começar pela partida, no fim de Agosto, que nos fará arrostar com o tempo da monção das chuvas que, naquelas partes é basta em tufões e tornados, com ondas tão altas como casas de três sobrados. 

De tudo isto nos deu conta o falecido Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação – obra publicada no primeiro quartel deste século e muito celebrada por toda a Europa com 23 traduções –, contudo o capitão e o piloto não fizeram caso dos seus avisos, por tomarem por patranhas e fantasias de contador de histórias tudo o que este ilustre varão viu e narrou no seu magnífico livro. Praza a Deus que os meus estimados leitores não pensam tamanha vileza de mim!

E ainda estamos em terra e já houve a primeira baixa, com a troca do embaixador. Em vez dele, irá uma ilustre dona de embaixatriz, por se saber que, naqueles reinos do Oriente, as mulheres nobres são escolhidas para negociar as concertações de paz e amizade entre as nações, por terem mais comedimento nas palavras e nos actos, e mais coração, pelo que logram obter melhores resultados do que os homens, nos tratados.

Não sei quantas crónicas vos poderei enviar dos muitos lugares aonde aportarei. Embora os navios sejam mais velozes do que pássaros de grandes asas, nem sempre há portador, e o antigo uso de deixar cartas e outros papéis, em botas e panelas junto às praias onde se fazia a aguada já não se pode fazer por todos os lugares serem já muito povoados e seria de espantar que alguém que achasse a panela ou a bota a deixasse ficar – olho te vê, mão te pilha!

Mas, tudo farei, para pôr em crónica, impressa em folhas volantes, que podereis ler em muitos lugares onde se publicam tais obras, ou consegui-las dos cegos que as vendem pelas ruas.
Que Deus me guarde e me traga sano e vivo. 

Valete, Frates!