A década dos anos 20 saíra do rescaldo da 1ª Guerra Mundial e o Lyceu, sempre em sobressalto pela salvaguarda dos seus meninos, ouvira dizer que Portugal passara a ser conhecido como o “País do Tirismo, visto os políticos e seus correligionários andarem sempre aos tiros uns aos outros e cujos estoiros lhe abalavam os claustros, com grande terror seu e dos pombos abrigados nos beirais, como na Noite Sangrenta, de 19 de Outubro de 1921, em que muita gente foi assassinada, incluindo o 1º Ministro António Granjo. Ficara sabendo, por notícias colhidas em pedaços de conversas, que o Presidente da República, António José de Almeida, durante os 4 anos do seu mandato recebera 18 recusas ao convite para Chefe do Governo e conhecera 150 ministros! Apesar de tudo, notava-se algum progresso e, no final da década, os automóveis passavam já de 24 mil e os telefones de 36.500!
Os alunos eram castigados por lançarem aviões de papel nas aulas e sonharem com Sacadura Cabral e Gago Coutinho e a sua travessia do Atlântico em avião, de Lisboa ao Rio de Janeiro e festejaram Brito Pais, Sarmento Beires e Manuel Gouveia pela ligação aérea de Lisboa a Macau (17.000 Kms). Para grande escândalo da maioria dos homens, surgiram as primeiras mulheres portuguesas ciclistas de competição, outras com carta de condução e automóvel ou brevet de aviadora, como Lurdes Sá Teixeira. Lyceu via com desagrado as meninas tornarem-se arrogantes, mandonas e mais atrevidas do que os rapazes. Enfim, era um mundo às avessas!
As novidades vinham de fora e o cinema, com os musicais americanos ou a divina Greta Garbo no ecrã, oferecia um prazer barato e tornara-se a pouco e pouco em vício, levando os alunos a fazerem gazeta para irem às sessões da matinée, com inevitáveis chumbos no ano ou nos exames. Austero e inflexível educador, o Lyceu arrepiara-se, escandalizado, ao ouvir uma aluna declarar: “Agora temos o amor-vertigem, o amor jaz-band, em que se conhece, se casa e se divorcia durante um fox-trot mais ou menos prolongado”. Os alunos trocaram o fato e a gravata pelo casaco desportivo, colarinho desabotoado e calças de golfe ou calções. Os vestidos das alunas tornaram-se mais curtos e os fatos de banho de cores vivas com as saias a subirem descaradamente quase até às ancas, como calções masculinos, numa demoníaca tentação à virtude dos alunos e (horror dos horrores!) as meninas fumavam às escondidas nas casas de banho, como os rapazes. Em 1927, nas aulas de Matemática, os únicos cálculos estudados pelos alunos foram os das formas, medidas e peso das participantes no 1º Concurso da Miss Portugal.
A 1ª Volta a Portugal em Bicicleta e a 1ª Volta a Portugal de Automóvel, em 1927, puseram a cabeça à roda aos estudantes de todo o país e muitos alunos de quadro de honra do Lyceu foram vergonhosamente apeados do seu pedestal. Mas ele vira com orgulho formarem-se as suas equipas de ginástica, de esgrima e de jogos, que treinavam com grande ânimo, lealdade e esforço nos ginásios e nos campos e pátios e ele sofrera com todas as derrotas e saboreara todas as vitórias nos campeonatos como suas.
No entanto, tratara-se de uma década perigosa e de muitos maus exemplos para os jovens que tinha à sua guarda, pois a vida parecia imitar o cinema e o crime tornara-se fácil e excitante, com assaltos e extorsões a clientes dos clubes e cabarets. Relatos de misteriosos assassínios e crimes passionais, com maridos e amantes a matarem as mulheres e namoradas por ciúme, eram a matéria preferida das alunas, substituindo os poemas de Camões e os autos de Gil Vicente, porém o maior escândalo e burla do século, comentados por professores e alunos seniores fora o golpe de Alves Reis que duplicara notas de 500 escudos no valor de 290.000 contos. Então, no fim da década, precisamente em 1928, alunos e professores não falavam senão de um tal António de Oliveira Salazar que fora feito Ministro das Finanças e chamara a si a sebastiânica missão de salvar a Pátria, por todos os meios ao seu alcance.
Neste ponto, o velho Lyceu abriu os olhos, assustado. Recordações e imagens das quatro décadas seguintes misturam-se na sua memória como um longuíssimo pesadelo, iluminado por raros e efémeros sonhos bons. Tinham sido os negros tempos da repressão e da Censura, da rolha e da mordaça, segundo a máxima de que “é tão importante dizer às pessoas o que pensar, como apagar tudo sobre o que não deve pensar” , quando alunos e professores vigiavam as suas conversas, por medo de denúncias e as matérias a ensinar e os livros eram censurados, proibidos ou impostos pelo Governo. O Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, e outras prisões para os descontentes eram uma terrível e ameaçadora realidade. Lembra-se, com horror, de ter ouvido dois alunos mais velhos falarem em segredo, nos balneários, de 32 pessoas mortas nas prisões políticas ou abatidas pelas forças policiais.