24/11/2010

Memórias de Estalo - Epílogo

Também do lado da Porta da Cruz, no Cais do Carvão e no Cais da Madeira, assim como nas Tercenas onde se fabrica a pólvora, dão por findo o trabalho mais três centos d’homens e mulheres, os quais começam a abandonar a Ribeira e nós com eles. A caminho do Hospital, seguimos pela rua da Fancaria e viramos à direita na de Julianes, até à Igreja de Santa Maria de Madanela e depois à esquerda, pela Rua da Correaria, bordeando a Judiaria Grande, cujas portas serão prestes cerradas, e vamos dar ao Convento das Carmelitas, no cruzamento da rua do Quebra-Costas com a dos Torneiros, a qual tomamos a rijo trote, que em Novembro mui prestes cai a noute. Chegados à Igreja de S, Nicolau, minha preciosa Esmeralda, não tem que saber, é sempre a direito pelas ruas das Arcas e da Palha até ao pátio de serventia do Hospital de Todos-os-Santos.

Numa das 3 cozinhas do Hospital que vemos desde o pátio pera onde nosso amo nos carreou, os oficiais de serviço andam mui azafamados na preparação das comidas e mezinhas pera os cerca de cento e quarenta enfermos que tem a seu cargo, pois se acerca a hora da ceia e o enfermeiro-mor tem neles grande vigia, não os deixando lazeirar . Ajudado pelo azemel do Hospital, meu amo não perde tempo em nos atrelar à carrocinha, a mim e à doce Esmeralda, lado a lado, pera minha maior ventura e prazer! Que bem que cheira a jumentita e como busca o calor de meu corpo, no arrepio da noite!

Nosso amo inda s’atarda pera duas canadas de tinto com o azemel e quando sobe pera a carrocinha, tem de ser com muito socorro, que já mal se sustém nas pernas, o que lhe dá grande risa, a ele e a todos os que correm a alá-lo pera riba do banco, onde só com muito trabalho logra manter-se assentado. “Uxtix, ‘Stalo,‘bora p’ra casa, home! Arre, m’nina!” De tão tartamelo nem o meu nome lhe sai escorreito e muito menos o seu famoso estalido de lingua, que faz por soltar, não logrando mais que um triste assopro que sembra deixá-lo sem fôlego. Boto-me a caminho, que me prezo de o saber d’olhos cerrados, sem mister de chibata ou açoute e bastas vezes tenho carreado meu amo adormecido, de Lisboa até Belém.

Agora é seguir a direito, tomando tento nos carreiros, que não hão-de oferecer perigo, pois a noite é de lua cheia, tão clara como se fora dia. Mal sinto o cansaço da jornada que meu coração vai ligeiro como a brisa e o sangue corre quente e grosso no meu corpo. Uma orelha d’Esmeralda roça-me por vezes o pescoço e eu sinto ânsias de zurrar à lua. Meu amo, como que adivinha o meu pensamento e, de lingua inda tartamela, solta em altíssimas vozes os versos da canção: “Mê padre é almocrebo / Vende castanhas e nozes/ Quem quiser casar comego / Alevante-me essas vozes”. Deus o guarde! Amen.


Finis

Memórias de Estalo - Capítulo XI

Na Ribeira

Esmeralda não sabe para onde olhar, com tanta estranheza que vai neste Mundo. Tudo vem dar aos portos de Lisboa e a Ribeira Velha é o melhor lugar para deixar a carga mais rara e o muito fato trazido de longes terras, enquanto se lhe não acha outro destino. Gentes das mais desvairadas raças, cores e trajos cruzam-se no terreiro e na praia, monstros terríveis, em gaiolas de ferro arrancam gritos de pasmo a todos os que se acercam a vê-los. Nomes de bichos fabulosos, como Unicórnio, Tigre, Jaguar, Pantera, Crocodilo ou Girafa correm de boca em boca, assim como os de lugares nunca antes ouvidos: Patane, Narsinga, Chaul, Pegú, Timor, Cantão, Liampo ou Tanegashima!

Esmeralda espanta-se, e zurra, cheia de terror ao ver um grupo de degredados a arrastar as correntes, carreados pelos beleguins para os barcos que os hão-de levar aos Brasis, Áfricas ou Índias, talvez para não mais volverem. Cruzam-se com um carregamento de escravos negros da Guiné, presos uns aos outros com grossos baraços e marcados a ferro em brasa como gado. Cheios de moléstias pela terrível viagem, magros e imundos, olham com assombro e medo o seu novo mundo. São inda menos do que nós!, murmura Esmeralda com dó.

Berros desesperados ouvem-se nos batéis que trazem uma caravana de arábios com seus camelos do deserto que, temerosos de tanta água, espinoteiam com as altíssimas pernas e mordem os matelotes que se lançam ao mar em grande alvoroto. Só a duras penas logram os homens trazer os bestigos para terra, com as corcovas a balançar d’aflição. Que pena tenho de não os poder entender! Quantas cousas me haveriam de dizer de suas terras e aventuras vividas! Ora, com tudo isto, minha doce Esmeralda, o sol está quase a pôr-se e é hora d’ir buscar nosso amo que, como sempre, deve estar de pinguela, a dormir debaixo daquelas árvores.

João do Restelo, como sabe bem do que a casa gasta e que sempre haverá d’acabar o dia bêbado (pois, como dizem os fradinhos Jerónimos escarnefuchando dele, “assi seco como é beberá a torre da sé”), nunca me deixa preso para que eu o possa recolher ao sol-posto e levar a Belém, depois de haver retomado a carrocinha no Hospital de Todos-os-Santos.

Assim, dou aviso a Esmeralda para beber mais um pouco d’água que o caminho é longo e não haverá tempo de paragens. Partimos então a buscar nosso amo e vou carreando com mil cuidados a minha jumentinha, por entre os ajuntamentos e azáfama das gentes que desarmam suas tendas e recolhem os pertences a fim de volver a casa. Um cego tange o seu arrabil e bandos de cachopos, enquanto esperam a ordem de marcha, saltam ao eixo berrando en cantilena desatada: Tonho medronho /Cabeça de conho / Fita amarela/ Rabo de cadela. E as meninas respondem em coro, saltando à corda: Una, duna trêna, condena / Txaca barraca / Catxapiz catxapez / Conta bem que são dez”.

Ora ali jaz nosso amo, como sempre dormindo a bom dormir, soltando grandes silvos e roncos de bácoro regalado. Cães e gatos engalfinham-se pelos restos do apisto que derramaram no chão e o um fedor azedo deixa-me mareado. Sopro-lhe na cara e dou-lhe uns empuxões, ao de leve c’os focinhos, não vá ele despertar de má catadura. Abre os olhos a contragosto e diz tartameleando: “Já é chegada a hora, ‘Stalo? Ora sus, que se faz noute e inda temos d’ir ao Hosprital a ver da carroça! Andor, andor!”

Dicionário de Escritoras Portuguesas


Porque não o têm à venda, Senhores Livreiros?

Foi apresentado, durante o mês de Outubro e em vários locais e cidades, o Dicionário de Escritoras Portuguesas, organizado por Constância Lima Duarte, Conceição Flores e Zenóbia Collares Moreira, com a chancela da editora Mulheres, do Brasil.

Fui convidada para o lançamento desta obra na Casa Fernando Pessoa, a que não me foi possível assistir. Saudei com muitíssimo agrado esta obra pioneira e tão necessária para resgatar as escritoras portuguesas do limbo para onde são remetidas sistematicamente (com raríssimas excepções se compararmos com os escritores no masculino) pelos críticos e estudiosos (homens) que fazem os Dicionários e as Histórias de Literatura.

Sendo um trabalho original e de enorme interesse não só para os estudiosos e estudantes das escolas e universidades, mas também para o leitor em geral, tendo tido honras de apresentação nos canais televisivos, em muitos jornais e com milhares de entradas na Internet, julguei que poderia adquirir o Dicionário de Escritoras Portuguesas em qualquer livraria da nossa Lisboa. Engano meu!

Ando há um mês a percorrer as Fnac, Bertrand, Bulhosa e muitas outras livrarias, incluindo as universitárias. Nada! Não está nas listas...Nunca ouviram falar... Por outro lado vejo resmas dos mesmos livros e dos seus clones ou sequelas que, muitas vezes, não passam de um chorrilho de banalidades em mau português ou em péssimas traduções de banalíssimos autores estrangeiros; ou catadupas de lições de felicidade, sucesso e riqueza instantâneas. Que esmagam qualquer obra (das poucas) de qualidade que sempre vão aparecendo e nem se vêm.

Como este Dicionário! Não interessa aos livreiros portugueses. Porquê? Acham que não há "mercado" para tal obra? Ninguém estuda nesta terra? Seremos todos analfabetos? Terei de o comprar no Brasil? Mandar vir pela Net?

Já agora gostava de saber se faço parte dessas 2000 mulheres, apesar da minha marginalidade. Disseram-me que sim. Pelos vistos não vou ter oportunidade de o confirmar, para me narcisar. Que belo momento perdido!


Apresentação

"A publicação deste Dicionário de Escritoras Portuguesas concretiza um antigo projeto, que teve início em 1985. Nessa época, três professoras de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de Natal, decidiram, por própria conta e risco, e muito entusiasmo, investigar a autoria feminina na literatura portuguesa. O grupo era constituído de Constância Lima Duarte, Diva Cunha Pereira de Macedo e Zenóbia Collares Moreira. Depois, à medida que os anos passavam, por diferentes razões a investigação foi sendo interrompida: uma hora era a tese de doutoramento que afastava as pesquisadoras; em outra, o acúmulo de tarefas acadêmicas que as ocupava integralmente. Recentemente, nos demos conta de que o trabalho que nos havia mobilizado por tanto tempo, e preenchido tantas horas e viagens até de nossas férias, estava abandonado há anos. Também nos demos conta da carência de um trabalho que permita fazer um balanço da produção literária feminina portuguesa, e ofereça uma listagem exaustiva de nomes e de obras, para auxiliar os estudantes e demais estudiosos. E decidimos retomar a pesquisa com o grupo assim configurado: Constância, Zenóbia, e Conceição Flores, açoriana residente em Natal, no lugar de Diva Cunha, que no momento dedica-se ao doutorado e à própria poesia.

O dicionário é composto de cerca de duas mil entradas e abarca escritoras consagradas pelo público e pela crítica e outras cujo nome é apenas conhecido em pequenas vilas ou pelos familiares. Resgata escritoras com vasta produção e acolhimento junto ao público da época e caídas, hoje, no ostracismo; identifica pseudónimos através de verbetes remissivos; colige informações dispersas de tempos diferentes, congregando mulheres que ao longo dos séculos têm publicado ou deixado seus textos manuscritos e, posteriormente, redescobertos por investigadores/as. Os verbetes reúnem informações biográficas e bibliográficas, munindo o leitor de dados que, regra geral, ele não encontra agrupados, o que constituí um instrumental indispensável para alunos, professores, investigadores e todos aqueles que se interessam pela literatura escrita por mulheres". (in Club Literário do Porto)

Link para o Vídeo de apresentação na Sic

Memórias de Estalo - Capítulo X


O Malcozinhado

O lanço de escadas do Celeiro e da Alfândega, com aquela formosa colunata que se estende até ao mar, abrigam o grande mercado de pescado (o Açougue do Pescado do Concelho) e de doces. Todos os dias aqui vêm muitos peixeiros, hortelãos, confeiteiros, cortadores, padeiros e doceiros a vender o que trazem para alimento da cidade. Nosso amo está bem mais satisfeito, por já lhe ter dado pelas ventas o cheiro do Malcozinhado, um lugar de dez cabanas onde grande soma de homens e mulheres estão de contínuo, com braseiros de fogo, a assar sardinhas e peixe de toda a outra sorte, segundo os chincheiros e linheiros os pescam. Para aí nos leva ele, pressuroso, e nos deixa junto à praia: “Vê lá se me aprontas mais alguma, meu tinhoso, que te vendo na Ribeira hoje mesmo! E toma-me tento na burrica…”

Ah, disso não há mister dar-me aviso, qu’ Esmeralda protejo eu com minha vida e sem sermão encomendado! E lá vai João do Restelo a buscar lugar a uma mesa que já oiço seus brados pedindo de beber, salvado com muita festa de todos os comensais, que só os estrangeiros o não conhecem. Aí comem, à mistura, homens e mulheres, negros e negras, trabalhadores que ganham na Ribeira, estrangeiros que saem dos navios sem destino certo, também estudantes de pouco dinheiro e poetas, como aquele zarolho, ali, de cara repuxada pela cicatriz, que me conhece e me fala sempre com bondade. Ao que dizem, do muito que viajou e sofreu tudo escreveu em poemas qu’ inda hão-de espantar o mundo. Não sei se será verdade, que por ora anda sempre depenado, mas o certo é que me apraz muito ouvi-lo.

O Poeta acerca-se de mim com um sorriso. O sol da tarde, a descer sobre o mar, dá-lhe uma cor de cobre, como se duma medalha se tratasse: “Com que então, Estalo, um novo amor? Espero que não seja um amor louco: tu por ela e ela por outro! Mui graciosa, sem dúvida, tal como uma jumentinha de Presépio!” - e a mão fina e nervosa do poeta guerreiro afaga docemente o pescoço d’Esmeralda que cerra os olhos de prazer. Remexo-me inquieto, de coração apertado. Dizem que mesmo desfigurado o Poeta continua a encantar as fêmeas… “Desejo-te melhor sorte do que a minha, velho amigo. Acaso, serão as jumentitas mais fiéis do que as mulheres…”

Isto foi já dito para duas donas que passavam e riam, mirando o Poeta. A maior delas falou com sanha: “Que quer o Cara-sem-olhos? Melhor fora que se escondera!” A mão do Poeta ficou queda, um instante, no pescoço d’Esmeralda e o seu riso soou triste. Disse rijo para as damas que se afastavam:
“Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu,
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam:
Vendo-vos, olhos sobejam;
Não vos vendo, olhos não são.”

Elas, rindo, atiram-lhe de longe com um “Sois sempre o mesmo!”. O Poeta dá-me uma palmadita amiga no lombo e diz, amargo: “O mesmo, Estalo, ouviste?! Só por escárnio me podem dizer tal! Uma máscara de causar medo ou horror! Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha! Pois foi assi, meu amigo, num momento perdi a pena de voar e ganhei a pena do tormento… Mas nada de tristezas, meu bom Estalo, pois tu estás namorado, que é como se deve andar no mundo e eu vou beber uma canada à saúde dos vossos amores. Tomai de presente, um torrãozinho de açúcar desse Brasil que eu espero ver um dia!”
E, com a liberalidade de um príncipe, o pobre Poeta botou em nossas bocas um seixito branco da doçura dos deuses.

23/11/2010

Numa aula de escrita criativa


Na semana passada, a convite do jornalista e escritor José Couto Nogueira, fui a uma das suas aulas de Escrita Criativa para conversar com os seus alunos. É um privilégio estar com pessoas que gostam tanto de livros, têm tanto prazer na leitura e na escrita que se dispõem a frequentar um curso, depois do seu horário de trabalho, sacrificando o descanso, o jantar e o tempo da família, para se dedicarem a esse gosto da escrita, uns apenas por puro deleite do acto de escrever e de criar um texto seu, alguns com a ambição de se tornarem melhores escritores, outros apenas pela convivência com as obras literárias e os seus autores.

Não sei se lhes dei aquilo que esperavam; já não dou lições e só me atreveria a dá-las aos meus jovens alunos. Aos leitores adultos gosto de lhes contar histórias e falar-lhes dessa imensa paixão da escrita que foi desde sempre a essência do meu ser, a minha perdição e a minha salvação, tão necessária à minha vida como respirar. Quando falo com os leitores desnudo a alma por completo, eles vêem, então, mais de mim do que a minha família ou os meus amigos viram em muitos anos.

Gosto da partilha, da comunhão desta nossa Língua de Poetas, tão antiga e, por isso mesmo, tão rica, poderosa, dolorida e sábia. E da nossa memória colectiva, que contribuiu para fazer de mim o que sou hoje e para a transformação da poetisa que eu quis ser na escritora que sou de romance histórico.

Foi tão bom estar com esses amigos de leituras e escrevinhações! Melhor seria ainda se esse prazer foi recíproco. Porém, isso, só eles o poderão dizer.


Perdoem-me o atrevimento, queridos amigos (professor e alunos), mas não resisti a pôr aqui as vossas fotos, embora não vos tenha pedido prévia autorização. É a minha homenagem ao vosso trabalho.

22/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo IX

Para o Terreiro do Trigo

Pela Rua da Misericórdia da Porta do Terreiro iremos dar à Ribeira Velha e passamos agora pela Igreja e Casa da Misericórdia, construída ao mesmo tempo que o Mosteiro dos Jerónimos (onde hás-de viver mui feliz de ora em diante, asninha preciosa!), nos terrenos que El-Rei D. Manuel deu por troca aos Cavaleiros da Ordem de Cristo. Nesta obra laboraram arquitectos e escultores estrangeiros mui famosos. Tem um portal mui bem lavrado na sua fachada, a sul, com a Senhora da Misericórdia a estender o manto da Justiça por sobre ricos e pobres.
Da porta travessa tem aquela larga escaleira que desce até à praia. Por trás da Igreja, há dois recolhimentos d’órfãos, um hospital e casas de serviço para socorro d’enjeitados, presos e enfermos pobres, enterro de mortos desamparados e dotes para casar orphãs, tudo sustentado por esmolas de pessoas generosas e dádivas da Casa Real. Às quartas-feiras, sextas e Domingos, os irmãos fazem mesa e dão comida aos presos e necessitados. As procissões da Casa da Misericórdia são as mais belas e solenes de Lisboa.

Finalmente o Largo do Terreiro do Trigo! Encostado ao vestíbulo da Igreja da Misericórdia, no lado do nascente, está o Celeiro de Portugal que dá o nome ao Terreiro do Trigo, mandado fazer por El-Rei D. Manuel para agasalhar todo o pão de que há mister a cidade e mais o termo, dar franquia a quem o traz de fora do Rei no e aliviar o povo quando há fome. É mui famosa edifício, composto por dous lanços de casas que tem 24 braças de comprido e 62palmos de largo, com 32 arcos de pedraria por banda e entre cada arco tem uma loja que leva 50 moios de trigo.

As 48 lojas formam duas ruas abobadadas e ladrilhadas, tendo ao centro um pátio liso e estreito. Nele se encosta o assento da Alfândega Nova (onde se arrecadam os direitos das mercadorias), estendendo-se até à beirinha do mar, todo feito em pedra escorada com grandes estacas espetadas a maço no mar, fazendo espanto a quem o vê.

Já te vês perdida, formosa Esmeralda? não tardarás em saber o caminho, que to hei-de mostrar outras muitas vezes, que aqui vimos sempre nos dias de fazer a mercar todo o fato de que hão mister os nossos fradinhos Jerónimos. Não te quero enfadar, minha frol, com esta aravia, porém levo já tanto ano a sós comigo que já nem sei falar a uma asninha assi moça e çucarenta como tu… Gostas?! Que te conte mais?! Hufá!!!

20/11/2010

O que dizem os meus Leitores

Sobre O Espião de D. João II

"Este livro traz-nos a história do fabuloso Pêro da Covilhã, uma personagem do renascimento português que, pelos vistos, foi muito mais importante para a nossa história do que se pudesse pensar à primeira vista.
Não é por acaso que o seu nome é desconhecido da maior parte das pessoas uma vez que ele foi um espião secreto de D. João II.
Este livro representou para mim uma série de descobertas extraordinárias e foi uma verdadeira caixinha de surpresas que, confesso, adorei.
A ideia que tenho da espionagem é a moderna que os filmes nos transmite, ao pensar em
espionagem à centenas de anos pensei que esta fosse feita por pessoas com um ar minimamente discreto (para se poderem misturar com a multidão) e o que o fariam apenas por dinheiro traindo muitas vezes o seu próprio patrono.
Ora nada podia estar mais longe da verdade relativamente a Pêro da Covilhã (ou para qualquer outro dos nomes que tenha usado) que era um homem de uma grande inteligência e cultura que nos faz lembrar algumas das mentes mais brilhantes do Renascimento, tão grandes são os seus talentos e que ao ler a sua história trazida à luz do dia graças a esta fantástica autora e ao seu rigoroso trabalho de pesquisa histórica, não nos deixa dúvidas que foi uma das mentes mais brilhantes do Renascimento português.
Não nos surpreende apenas sua boa memória ou facilidade com que aprende línguas ou muda de identidade, mas pela sua extrema fidelidade e lealdade não apenas ao seu patrono, como aos seus amigos que nos surpreende por ser extramente rara nos espiões da época.
Com este fabuloso espião somos levados a viajar por diferentes países e culturas, que não o suprendem apenas ele, mas ao próprio leitor sendo por vezes difícil mesmo acreditar na veracidade de certos factos relatos sobre ele.
Um livro delicioso, que nos proporciona uma viagem, no tempo e no espaço ao sabor de uma escrita cuidada e requintada.
Joana Dias (Páginas com Memória)16/11/2010

"Ofereci este livro à minha mãe, depois de ter conhecido a autora na Feira do livro do porto, e espero em breve lê-lo pois parece bastante interessante e o pouco que li, gostei".
Ana C. Nunes 17/11/2010

Sobre O Romance da Bíblia

"Quando tive oportunidade de conhecer e falar com a autora d'O Romance da Bíblia, fiquei com imensa curiosidade em descobrir a sua obra. E ainda bem que decidi ler este livro!
Trata-se de uma narrativa na qual desfilam as personagens mais conhecidas (e outras nem tanto) do Antigo Testamento, sempre descritas com traços de ironia e humor negro.As personalidades masculinas apresentam-se-nos fatalmente humanas e manipuláveis pelas femininas que, tendo em conta as circunstâncias que lhes são oferecidas, tentam guiar o curso da história.Esta é uma história que não tem um carácter puramente ficcional, atingindo-nos a violência, a sexualidade e a maldade por vezes descritas, levando-nos a reflectir uma vez mais sobre o papel da mulher ao longo da História.
Gostei!"
Patrícia Pereira (Segredo dos Livros) 19/11/2010

19/11/2010

Tigelada do Alvaiade (Castelo Branco)

Para os que gostam da doçaria antiga da nossa terra, uma receita de Tigelada, do cardápio da minha sogra Maria Fernandes Pires, uma cozinheira-de-mão-cheia, da airosa aldeia de Alvaiade, Vila Velha de Ródão. O nome deste doce deve-se a ser feito nessas grandes tigelas de barro, típicas da região.

Tigelada (2)

1 litro de Leite;
8 ovos;
2 c. de sopa (rasas) de farinha de trigo;
8 c. de sopa de açúcar;
Sal, canela e raspa de casca de limão.

Aquece-se bem o forno e duas tigelas (de cerca de 23 cm de diâmetro por 7 cm de fundo.
Bate-se os ovos inteiros com a farinha, o açúcar, o sal e a canela. Depois de bem batido, vai-se adicionando o leite, batendo sempre.
Deita-se a massa em duas tigelas que têm de estar bem quentes (a massa deve "fervilhar" em contacto com o barro). Vai a cozer em forno quente até tomar cor vermelha. Baixa-se a temperatura e coze cerca de 1 hora. Servem-se frias.

Nota: As da foto ainda estavam quentes, acabadinhas de fazer pela minha querida colaboradora Ana Maria Pereira Gonçalves.

15/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VIII

A Caminho da Ribeira

"- Chamas-te Esmeralda, minha asninha de Belém?! Hui, pudera eu ser o teu burrico de Jericó, ó preciosa, e não haveria sendeiro mais feliz neste mundo! - Atardo o passo para que me acompanhe sem fadiga e ela arreganha-me os beiços num sorriso que me faz arrepios na espinhela: - Nem a jumentinha da fuga para o Egipto foi mais generosa do que tu, minha flor, nem mais merecedora de Presépio. não entendes o que te digo, minha bela? Que nunca ouviste um burro falar tais cousas? Perdoa-me, formosa, que isto d’ estar sempre com os fradinhos já m’ amoldou o pensar e o sentir à sua guisa. Ah, gostas que te fale assi? Pardeos, eu cuido sonhar…".

Mal escuto nosso amo resmoneando em voz lastimeira: - Guai! Se não foras tão garanhão, estaria eu est’hora na Mancebia[1] ou em casa da Preta da Mina, à Porta Nova, havendo muito prazer, de refestela com uma bela mocetona cheirando a benjoim! Agora só na Ribeira Velha, onde são mais feias e custam o mesmo, sem falar nos rufiões delas sempre prestes a armar requesta[2] ! Of’reço-te companha para o Inverno e assi me pagas tu, meu tratante!

E de acinte ferra-me com as biqueiras dos borzeguins na pança, mas eu nem faço caso, todo aceso a descrever à minha Esmeralda os tesouros de Lisboa que ela vê por vez primeira, com olhos de rasgado assombro. Não é çafea[3], muito pelo contrário, bem pertelhoa me parece, porém nunca té hoje havia botado as çapatas fora da quinta de seus donos e tudo parece encantá-la e assustá-la.

Damos uma espreitadela à Rua Nova d’El-Rei, cheia de ourives d’ouro e prata, onde não nos deixam passar com medo dos tabuleiros de jóias preciosas que têm às portas e cruzamos a Rua Nova dos Mercadores, de 130 braças de comprido e 4 de largo, tendo de uma e outra banda 45 moradas, de casas de 3 e 4 sobrados e ricas lojas e tendas com mercancias de todas as partes do Mundo: panos, caixeria (com todas as sortes de sedas) e marçarias; 11 livreiros, 9 boticas, 60 sirgueiros e muitos mercadores de sobrado que vivem no alto das lojas e são os mais abastados.

Porém, no Arco dos Barretes, finco os cascos no chão e, ateimando com meu amo, viro para o Pelourinho Velho, livrando Esmeralda da Rua da Confeitaria, para que a não piquem as moscas e abelhas que ali tudo enxameiam, pela grande fartura de doces e bolos feitos com os finos açúcares do Brasil e da Madeira.

Ao Pelourinho Velho, sempre com muita gente, vem dar a rua Nova dos Ferros ou dos Mercadores, a do Aver-do-Peso (com a Casa do Conselho para vigiar os instrumentos de medir e de pesar dos mercadores, para estes não fazerem burla), as dos Ourives da Prata, de Julianes, da Fancaria e do Inferno, com o seu Beco do Espera-me Rapaz.

Há no Pelourinho Velho, e posto que o Natal se acerca, também muitas mulheres com suas mesas de mantéus mui alvos, cobertos de gergelim, pinhoada, nogada, marmelada, laranjada, cidrada e fartéis[4], bem como toda outra sorte e maneira de conservas, capazes de fazer salivar até a quem não é lambaz[5]. Outrosim, sendo a praça um chão de venda em almoeda[6], aqui se vendem com pregão móveis, panos de linho, ouro e prata.

- Se dão ali pregão dos homens negros como se de bestas se tratara? Si, Esmeralda, também se vendem muitos homens para escravos, os quais estão agora mui caros, o que mete medo a toda esta gente, pois em Portugal ninguém quer fazer nada e não há miserável que não tenha um escravo ou escrava a trabalhar para ele.

Neste Largo, como no Rossio, há sempre 10 escrivães com suas mesas a escrever cartas e petições a quem lhas pede e nunca estão vagos, ganhando cerca de 200 rs. ao dia, isto segundo fala sempre nosso amo que os inveja muito.


Notas da Autora

A primeira imagem mosta uma panorâmica da Ribeira; a segunda é a Rua Nova dos Mercadores, a mais cosmopolita da Lisboa do Século XVI.
[1] Bordéis, nas traseiras dos Estáus.
[2] Zaragata.
[3] Ignorante, grosseira.
[4] Bolos de açúcar e amêndoas.
[5] Guloso.
[6] Venda pública; em leilão.

Eu, pecadora, me confesso

Testemunho de Bárbara Wong, jornalista do "Público"

Pergunto-me muitas vezes como é que é possível um professor não ter o controlo da sala de aula. Como é que é possível? Se fosse eu... A minha experiência com crianças e na qualidade de "professora" é diminuta e feita em circunstâncias muito especiais, de maneira que me parece que se eu consigo, qualquer pessoa consegue! Muito enganada. Há dias lia sobre uma professora de uma determinada escola de Lisboa que desistiu de dar aulas quando um aluno se dirigiu a ela e espetou um murro com imensa força contra o quadro, mesmo ao lado da sua cabeça. Nem de propósito, nesse mesmo dia passei à porta dessa escola e vivi uma situação que me recordou a docente, a diferença é que os murros foram dados no meu carro e eu estava dentro dele.Os miúdos vinham descontraidamente no meio da estrada, com dois passeios vazios, de um lado e do outro e eles calmamente, vagarosamente, e eu, de frente para eles, cautelosa não fosse atropelar algum porque nenhum se desviava. Com o desafio nos olhos e a boca num meio sorriso lá vinham eles na minha direcção e eu já com o carro completamente parado, à espera que passassem de uma vez. Eram uma dezena, todos rapazes, alguns pequenotes, mas a maioria enormes.Eis que, quando passam começam a bater no capot e nos vidros, imediatamente apito-lhes e começo a andar, com cautela para não os atropelar, mas o meu cérebro envia-me mensagens diferentes: de um lado diz-me "calma, Bárbara, calma, eles são maiores do que tu mas são menores, não atropeles nenhum"; do outro a indignação verbalizada com uns "estúpidos, não têm educação, não merecem nada, não percebem nada, não se ajudam a si próprios e depois espantam-se quando tomamos a parte pelo todo e chamam-nos racistas e sentem-se vítimas da sociedade, idiotas", ok, mentalmente também os mandei para uns sítios impróprios.Mais à frente, um grupo de miúdas, com o mesmo desafio no rosto. Há uma que dança no meio da estrada, virada de costas para o carro, rodopiando e rindo, outra que espeta a perna em direcção ao veículo, desvio-me como posso, não lhes toco. "Anormais", murmuro entre dentes, com as janelas fechadas e um calor de morrer.E voltei a lembrar-me da professora daquela escola, dos professores que aturam estes miúdos diariamente. Dos que têm sorte ou jeito e conseguem estabelecer pontes com eles; dos que passam mais de metade da aula a tentar sentá-los e acalmá-los, dos que têm esperança de contribuir para a diferença, dos que já entregaram as armas e só querem que o dia acabe, dos que também se passam e agridem os alunos. Tento pôr-me no lugar destes professores, não consigo.Em muitos destes casos, os professores perderam, a escola perdeu, a sociedade perdeu. Os miúdos são os que mais perderam mas não sabem, nem querem saber. O que fazer com eles?

(A crónica foi-me enviada por e-mail pelo amigo Fernando Couto e Santos)

09/11/2010

Desafio ao Leitor das "Memórias de Estalo"

Obrigada aos que participaram na minha brincadeira e adivinharam a identidade do Estalo e a sua qualidade asinina. Já convidei no Facebook e gostaria de renovar aqui esse convite aos que acertaram e que estejam perto de Lisboa, para virem tomar um chá ou um "Porto" em minha casa, em dia que servisse a todos.

Deixo-vos aqui outro desafio:

No Capítulo X, Estalo vai encontrar um poeta que costumava frequentar o Malcozinhado.

- O que era o Malcozinhado? (É referido no "Navegador da Passagem" e no "Espião de D. João II").

- Quem é o poeta? (Também é personagem do "D. Sebastião e o Vidente")

Fico à espera das vossas respostas.
Um grande abraço.

08/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VII

Zacapela no Rossio

Hui! Como João do Restelo vem em boa companha! Que fêmeazinha de estalo traz ele consigo, capaz de fazer perder o siso ao mais sisudo! Um longo pescoço, delicado e nervoso, com gentil e formosa cabeça de finas orelhas móvedas[1]. E aqueles olhos negros?! Só de judia ou moura encantada, assi grandes e misteriosos, bordeados de pestanas assedadas[2] e bastas! Formas airosas e cheias, de músculos ágeis a aperceberem-se sob uma pele firme e macia. E, por minha fé, pese embora os anos que já cá cantam, que nunca vi pernas mais guapas (como dizem os meus amigos galegos)! Delgadas, das sapatas té aos joelhos de ossinhos delicados e salientes quanto baste, cobertos de um pelinho ruço e aveludado como o terciopelo da opa de um fidalgo, a terminar numas soberbas pospernas[3], de fazer perder o tino a um velho sábio, quanto mais a mi, que não passo dum pobre diabo, um bestigo de d’almocreve de convento!

E aqui confesso-me asno chapado, azémola sem tento nem talante, pois que, sem me poder suster, de cabeça perdida e todo aceso de paixão, solto os mais vibrantes e alongados zurros jamais ouvidos em toda a historia do Rossio! Com o ímpeto e a força do som, as minhas pernas traseiras parecem remoçar e lanço-as para trás e para os lados, em saltos de gigante ou de louco, botando a fugir tresmontadas[4] e com grande grita as gentes que por ali se achavam: “O fideputa do burro ensandeceu!”, “Deitai-lhe a mão ou inda acaece desgraça!”, “Ave Maria, que o bicho raivou!”.

Um mancebelhão arreeiro arremete com valentia: “Uxte, uxte, sendeiro! Uxtix[5], burrico!” e, por má sina minha, solta uns sonoros estalidos de língua, qu’inda me são de mor acinte. Quiçá por isso me hajam dado o nome de Estalo, pois se adrego ouvir o estralejar de uns dedos, língua ou chibata, toma-me logo um formigueiro nas pernas, uma coceira nas mãos, que me deixam com ânsias de ginete em picadeiro que só assossega depois de corrida desatada! Ai, se meu amo não m’acode…

Sinto as mãos de João do Restelo no meu pescoço e a sua voz amiga acalmando-me: “Então, Estalo, assossega! Que bicho te mordeu, home, para t’amostrares assi tavanés[6]e armando uma tal zacapela[7]?” Aquieto-me, por fim, tremendo e resfolgando, como tomado de quartãs, enquanto meu amo m’alimpa o suor com um trapo e as gentes, recobradas do susto, m’empipinam[8] sem dó nem piedade: “Abrenúncio, tiozinho, qu’o sendeiro é perigoso!”; “Foi o cheiro da burrica, meu bestigo, que te fez entortegar[9]?” lança o azemel[10] numa risota despegada e uma velha grita inda toda abrasiada: “Tomai tento no bicho, que é fagueiro[11], não arme ele mais escândola!” Meu amo vai pondo água na fervura: “Também não há razão para tamanho alvoroto, dona, que o bicho não quebrou nada…”, e logo, de um salto, se escarrancha nos meus lombos (pois que a carrocinha ficou no Hospital) e, prendendo pelo baracinho a preciosa e assustada burrinha ao meu atafal, arrasta-nos dali para fora, a bom trote, caminho da Ribeira.

Empachado[12]e cheio de merencória[13], mal atino com as ruas pejadas de gente, fazendo seus tratos e parando para ver as foliadas dos ranchos que cantam e dançam, sem que os moleste a lama mal cheirosa que tudo cobre, onde as minhas çapatas se enterram té aos artelhos, fazendo-me escorregar e sacudir a meu amo que me cobre de maldições, ao mesmo tempo que vigia e anima a Rucinha: “Chax, Esmeralda! Uxte, menina!” E ela, assustada com o arroído, vem colar-se à minha posperna, acendendo-me de paixão.


Notas da Autora:
A primeira ilustração do almocreve com o burro parece banda desenhada, mas é uma ilustração de um livro do Século XV.

[1] Móveis.
[2] Macias como seda.
[3] Parte superior das pernas de um animal.
[4] Tresmalhadas.
[5] Uxte e uxtix – termos onomatopeicos usados pelos arrieiros de Gil Vicente para os burros.
[6] Turbulento, doidivanas.
[7] Contenda com ruído, barulho.
[8] Vexar com ditos.
[9] Torcer com violência.
[10] O que guia azémolas, almocreve.
[11] Traiçoeiro.
[12] Embaraçado.
[13] Melancolia, tristeza.

07/11/2010

A Sociedade da Língua Portuguesa vai ser exterminada?

Embora tenha havido recuos da ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, nos cortes previstos para o sector da Cultura, a prestigiada Sociedade da Língua Portuguesa vai deixar de receber o subsídio do Estado imprescidível para a sua existência:
«Apesar de contar com 61 anos de actividade, os apoios à SLP têm vindo a ser reduzidos. E se há 10 anos o instituto recebia 1500 euros por mês, o subsídio de 2009 ficou-se por um total de 2500 euros, além do apoio concedido ao Prémio Internacional de Linguística Lindley Cintra. "Temos três mil euros mensais de despesas fixas", queixa-se Elsa Rodrigues dos Santos. A única fonte de receita da SLP é a quota dos associados, que rondam os 33 mil euros anuais. "Só que o número de sócios é cada vez menor, sobretudo porque perdemos a nossa biblioteca", sublinha. A SLP tem um espólio de mais de 20 mil títulos, que estão encaixotados na cave da Academia das Ciências de Lisboa, porque "as actuais instalações são velhas e não permitem recebê-los", lamenta a presidente. Para fazer face às dificuldades, a SLP vai concorrer, pela primeira vez, a fundos comunitários.» (Jornal I - 3/08/2010).

Fundada em 14 de Novembro de 1949, a Sociedade da Língua Portuguesa (SLP) nasce vocacionada para a investigação, difusão e defesa da Língua Portuguesa. Em 1979, passa a Instituição de Utilidade Pública e, em 1982, a Membro Honorário da Ordem do Infante Dom Henrique. Em 2009 festejou o seu 60º aniversário de uma vida de intensa actividade na promoção e defesa da Língua Portuguesa, tão maltratada e desrespeitada pelos seus falantes, nomeadamente os que teriam por obrigação defendê-la.

A SLP afirma-se pelo modo continuado qualitativo como desenvolve o seu trabalho. As suas actividades são diárias e abarcam não só a área específica da língua portuguesa como outras da cultura. Citam-se os seus três programas fixos:
- Ciclos de palestras às 3.as feiras, o Curso Anual de Língua Portuguesa para Estrangeiros, o Curso de Verão de Língua Portuguesa para Estrangeiros (Agosto), e ainda, em horário pós-laboral, Oficina de Escrita, Árabe, Expressão Dramática, Inglês, Francês e Alemão.
- Com o Ciberdúvidas na Internet dá resposta a milhares de perguntas vindas de Portugal e das várias partes do mundo.
- Tem ainda um programa semanal na RDP Internacional, repetido 5 vezes por semana, intitulado Falar Português onde, para além de uma crónica de gramática ou de língua portuguesa, se fala de livros.
- Publica a revista anual Língua e Cultura e tem um boletim trimestral com uma tiragem de 1500 exemplares que os sócios da SLP recebem gratuitamente e chega a todos os concelhos do país.
- Atribuição de três prémios internacionais: Grande Prémio Internacional de Linguística Lindley Cintra, Prémio Internacional de Tradução e Prémio da Crónica João Carreira Bom / SLP.

A SPL está há décadas à espera que lhe dêem um espaço adequado às suas necessidades, como lhe foi prometido, quando foi forçada a deixar as instalações degradadas da sua velha sede.
Agora o Estado, além de lhe cortar o subsídio, quer expulsá-la do edifício em que está, sem lhe dar qualquer alternativa, o que resultará na extinção desta tão prestigiada e útil Instituição.

Com os políticos incultos e medíocres que temos, este país cada vez se afunda mais na ignorância e na boçalidade, mascaradas por um leve verniz cultural (ou já nem isso!), de pura fachada, "para a UE ver", com uma gestão de dinheiros públicos incompetente e quase sempre incompreensível.
A morte desta nobre Sociedade da Língua Portuguesa-Instituto de Cultura, é um crime e uma vergonha, porque é castigar que trabalha bem e esforçadamente, dignificando Portugal e os Portugueses.

Quem quiser saber mais sobre esta instituição, consulte a Página da SPL

01/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VI


Feira no Rossio

Junto ao chafariz do Rossio, onde meu amo me deixou, enquanto mastigo consolado a comidinha saborosa, não perco nada do que se passa na Feira da vastíssima Praça. Aqui mesmo ao lado, grande soma de mulheres, vindas dos montes, vendem em suas bancas pães-de-ló, queijinhos frescos, requeijão e marmelada. Além, sapateiros, aljabebes[1] e carapuceiros gritam suas mercancias, lado a lado com ferro-velhos e batefolhas[2] a amostrar os seus caldeiros, bacias, castiçais, almofarizes e muitas outras cousas d’arame, latão e cobre. A seguir, as tendeiras de louça de barro disputam o seu lugar aos cesteiros com suas gigas e cestos para vindima e apanha da azeitona. Mais ao sul são os mercados das especiarias, das bestas e dos escravos.


No alpendre do Hospital, as tendinhas de vestimentas e enfeites são de maior luxo, com fanqueiras e mercadores que vendem linhos, veludos e brocados de Flandres, Paris e Veneza, sedas da China e finos panos de desvairadas cores, da Índia; jóias e plumas para as donas e donzelas fidalgas que não desdenham de os vir mercar a esta Feira. Muitas compram aos passarinheiros aves raras, de lindas penas que falam como homens ou cantam como anjos (isto dizem os fradinhos Jerónimos que eu nunca ouvi um anjo, nem sei que cousa é!).


Pedintes de ofício, mostrando suas chagas e pedindo esmola “per mor de Deos”; mariolas[3] à cata de serviço, lançando chufas[4] às moças; ranchos de ciganos fazendo seus jogos, danças e cantares; pregões sem conto das mais desvairadas e estranhas cousas que a memória não alcança, fazem uma tal zoeira que não há quem se possa entender. Alguns, por demais ociosos ou descontentes da vida e da corte, foram escrevendo suas queixas, acusações e aleivosias pelas paredes do Hospital, que são bastas e branquinhas. Enfim, já se sabe: paredes caiadas… papel de loucos! Loucos ou estudantes que é a mesma cousa e não lhes serve d’emenda as cargas de pancadaria que lhes dão os beleguins e soldados, se adregam caçá-los.


Aqui, deste lado do chafariz onde faz menos ruído, a escritura é outra e arrecebe sua paga. Sentados a umas mesinhas d’armar, há uns homens que ganham dinheiro por pena, escrevendo ofícios, petições, louvores, cartas, mensagens d’amores e versos, tudo aquilo de que as gentes hão mister e lhes vêm ditar e que tantas vezes me tem causado muita risa e outras muito dó, segundo a cor de suas histórias. Aqui, se fazem por escrito tratos de compras e vendas, préstimos de dinheiro ou pagamentos de dívidas e grossas bolsas de moedas d’ ouro ou pedraria mudam de mãos a cada instante, acabando por vezes na sacola d’algum ladrãozeco, com o lídimo[5] dono a bradar, alpavardo[6], “A que d’el-rei”.


Gentes de muitos mundos e de um sem conto de raças, em seus raros trajos e estranhas aravias[7] que só com os línguas[8] se podem entender, causam susto e espanto aos bufarinheiros e almocreves pouco avezados[9] a tais usos e costumes, fazendo muitas vezes fugir as mulheres, desatinadas e em grande grita. Uma cidade sem par, se não fossem os seus maus cheiros e as danadas moscas e moscardos que me entram pela boca e pelas ventas, me atanazam a vida e me hão-de ensandecer. Sacudo-me raivoso e eis que afemenço meu amo…




[1] Ou algibebes, que vendem roupas feitas e baratas. [2] Bate-chapas. [3] Moços de fretes. [4] Piadas, graçolas. [5] Legítimo. [6] Aparvalhado. [7] Línguas árabes, mas também línguas incompreensíveis, desconhecidas. [8] Intérprete. [9] Acostumados.