29/11/2014

Cante - Património Imaterial da Humanidade

Diário do Alentejo
À hora que se anunciou que o cante alentejano foi reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade, mais de 400 crianças, da escola Mário Beirão, envolvidas no projecto "Cante na escola, Herança com raízes", cantaram a moda “Castelo de Beja”.


O Linchamento de José Sócrates

Vale a pena ler este excelente artigo de Miguel sousa Tavares, hoje, no Expresso sobre a detenção de José Socrates, cujo título é «O Linchamento de José Sócrates».
Blogue  "Narrativa Diária".
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 «Mal se anunciou a prisão de José Sócrates, o país saiu à rua em festa virtual... Fui testemunha, madrugada fora, da felicidade de milhares... O cidadão comum teme que José Sócrates acabe sem castigo. Eu também”.
Alberto Gonçalves, “DN”, 22.11.14.

O “cidadão comum” e o Alberto Gonçalves podem estar descansados: pior castigo do que aquele que José Sócrates já teve é difícil. Tratando-se do cidadão José Sousa, os danos sofridos por ora ficariam no estrito conhecimento de alguns familiares e amigos íntimos, aguardando ele, quase de certeza em liberdade, que o julgamento os agravasse ou não. Mas tratando-se do cidadão José Sócrates Pinto de Sousa, os danos — pessoais, familiares, políticos e profissionais, agora e para sempre — são irreversíveis. E à prisão preventiva soma-se a condenação preventiva e definitiva. Se a vontade do “cidadão comum” fosse bastante, nem haveria necessidade de julgamento: ele já está feito.

Ninguém, absolutamente ninguém de boa-fé, pode dizer neste momento se José Sócrates é culpado ou inocente das gravíssimas acusações de que foi alvo. Pela simples razão de que um processo-crime se divide em várias fases — inquérito e acusação, defesa e contraprova, pronúncia ou arquivamento, e julgamento — e apenas estamos na primeira. Se a “prisão” (como sintomaticamente escreve Alberto Gonçalves, em lugar de “detenção”) tivesse já por si o valor de uma sentença condenatória, estaríamos de regresso à barbárie. Mas os magistrados não são o “cidadão comum” e a sua justiça é a do Estado de direito e não a da turba linchadora. A sua primeira tarefa é exactamente essa, a de tornar clara a diferença.

Pessoas que respeito têm argumentado que a insistência na crítica aos “pormenores” que envolveram a detenção, interrogatório e prisão preventiva de Sócrates desviam as atenções do essencial, que é a gravidade das acusações contra ele. Estão errados, por várias razões: primeiro, porque isso pressupõe o tal julgamento prévio de condenação; segundo, porque, não se conhecendo em toda a sua extensão a acusação e, em extensão alguma, a defesa, a única coisa que pode ser seriamente discutida é exactamente a parte processual relativa à detenção, interrogatório e medidas de coacção; e, em terceiro lugar e sobretudo, porque, ao contrário do que afirmam, não se trata de pormenores, mas justamente da marca de água onde se encontra ou não o rasto do respeito pelos direitos de cidadania, justamente quando ele é mais necessário. Os meus leitores far-me-ão o favor de lembrar que há muito escrevo sobre a Justiça, não ocultando todas as críticas que crescentemente me mereceu o que vejo como uma deriva justiceira, muitas vezes assente no atropelo de leis e princípios básicos de um Estado de direito, e fundada num especialíssimo regime de absoluta irresponsabilidade e ausência de controlo externo, como seria recomendável em democracia. As circunstâncias da “Operação Marquês” não fizeram senão cimentar as minhas razões. 

Para começar, não acho normal nem saudável que todos os principais crimes mediáticos ou envolvendo os chamados “poderosos” tenham a instrução a cargo de um único juiz e um único procurador. É assim há dez anos no TCIC e nem a nomeação de outro juiz, em Setembro passado, fez com que Carlos Alexandre deixasse de chamar a si todos os processos principais: Ricardo Salgado, vistos gold, José Sócrates. Ora, isto contraria um princípio fundamental da justiça que é o do “juiz natural”: não são os juízes que escolhem os processos, mas os processos que escolhem os juízes — por escala ou por sorteio. Mas quando só há um juiz (e um procurador), este princípio é espezinhado e, pela ordem natural das coisas, o juiz passa a fazer parte da equipa de acusação com o Ministério Público e a polícia criminal — o que é um grave desvirtuamento da sua posição, que deve ser de equidistância entre as partes. E, em termos práticos, um tribunal onde só há um juiz e um procurador, podendo haver vários, é um tribunal especial — coisa que a Constituição proíbe, por razões que qualquer democrata compreende.

Depois, e como já muitas vezes disse, não aceito a figura agora em voga da detenção para interrogatório ou para investigação. Considero-a uma interpretação abusiva e intolerável da lei. Respondem que havia o perigo de Sócrates, desembarcado em Lisboa, ir directo a casa destruir provas. Pois que tivessem feito a busca antes, quando ele cá estava: bastava tocar à campainha e mostrar o mandado. Ou então esperavam-no discretamente no aeroporto e perguntavam-lhe se ele consentia numa busca imediata, evitando a detenção.

Nós, os que ainda não votámos nas redes sociais, precisamos de saber se, no final de um processo justo, José Sócrates é culpado ou inocente. Mas a verdade é que não tenho grandes dúvidas de que a detenção prévia, as filmagens após comunicação interna, o aparato policial no tribunal, a saída em carrinha celular, tudo foi feito com a clara intenção de o humilhar, num ajuste de contas que vem bem de trás e que já conhecera dois episódios absolutamente lamentáveis para a justiça: a tentativa de o incriminar por “atentado ao Estado de direito” e o vergonhoso processo Freeport. 

Não acho aceitável que a PGR faça sair um comunicado após a detenção em que logo se diz que esta foi fundada na análise de “movimentos bancários sem justificação conhecida ou legalmente admissível” — justamente o que cabia provar à acusação e sobre o que o arguido ainda nem sequer se tinha podido justificar. E não quero acreditar que o despacho com as medidas de coacção tenha as 236 páginas que vi referidas, pois que isso levaria a pensar que, mesmo com abundante copy-paste, a decisão já estaria na cabeça do juiz antes mesmo de ele escutar as explicações dos arguidos e os argumentos da defesa.

Acima de tudo, porém, aquilo que não é possível aceitar, sob pena de total capitulação perante o abuso, é a habitual, mas desta vez absolutamente escabrosa, violação do segredo de justiça. E não me refiro aos jornais de estimação do Ministério Público ou ao ‘jornalismo do botox’, mas sim a um jornal como o “Público”, que, citando “fonte próxima do processo”, pespega com toda a acusação do MP no jornal, tratando-a como verdade definitiva e sem ter ao menos o cuidado de perguntar à fonte quais os elementos de prova concretos em que se fundava tal verdade. Não vale a pena alongarmo-nos em considerações sobre a intolerável prepotência que representam estas grosseiras e sistemáticas violações do segredo de Justiça por parte das entidades de investigação criminal: quem não percebe é porque só vai perceber se um dia lhe tocar. 

Mas é de uma imensa hipocrisia a vigência de um sistema de segredo de Justiça que permite que na fase da instrução (que, compreensivelmente, é aquela em que é excepcionado o princípio da igualdade entre partes), essa desigualdade legal seja acrescentada por uma desigualdade ilegal que faz com que a defesa esteja obrigada ao silêncio, enquanto a acusação litiga publicamente nos jornais, fazendo passar a sua versão, sem contraditório. Além de mais, é de uma cobardia sem remissão. E que serve dois fins: instigar o tal julgamento do “cidadão comum” e ficar bem na fotografia, quando todos, temerosamente, vêm dizer que “a Justiça funciona”. Como se a simples prisão de suspeitos e a divulgação pública das suspeitas, sem lugar a defesa, fosse sinal de que a Justiça funciona! Porque será então que os armários estão cheios de processos assim iniciados e que, uma vez promovido o julgamento popular, nunca mais chegaram a julgamento num tribunal?

Tudo isto são pormenores? Pois, talvez. Mas preparem-se para muitos mais pormenores destes, porque, como diz o povo, o que começa torto, raramente se endireita. E nós precisamos de saber, sem uma dúvida razoável, se, no final de um processo justo, José Sócrates é culpado ou inocente. Nós, isto somos: os que ainda não votámos nas redes sociais nem celebrámos madrugada fora a sentença que queremos. Nós os que ainda acreditamos que se fez um longo caminho desde os tempos em que o imperador consultava a turba para que ela decidisse a sorte dos condenados.»

Miguel Sousa Tavares, Expresso , 29 de novembro de 2014

23/11/2014

A Justiça a que temos direito

Subscrevo na totalidade as palavras de Clara Ferreira Alves, incluindo a indiferença por José Sócrates. Mas assusta-me a Justiça (ou falta dela) que se pratica em Portugal, a qual mais parece fruto de filmes Western Spaghetti, de cowboys da Série B, do que um dos pilares fundamentais de uma democracia!
A uns suspeitos deixam-se durante meses nas empresas e lugares que se presume terem desfalcado e criminosamente aproveitado para enriquecer, permitindo-lhes acabar de sacar o pouco que escapara à rapina de anos; a outros, por razões que me parecem mais políticas do que de apuramento da verdade, faz-se uma espécie de caça e quase linchamento em praça pública.
E não consigo compreender como se entrega a um único juíz, por muito competente que seja, mais de meia-dúzia de processos de corrupção, dos mais complexos que surgiram no nosso país, nestes últimos anos!



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A Justiça é antes de mais um código e um processo na sua fase de aplicação. Ou seja, obediência cega, essa sim cega, a um conjunto de regras que protegem os cidadãos da arbitrariedade. Do abuso de poder. Do uso excessivo da força. Essas regras têm, no seu nó central, uma ética. Toda e qualquer violação dessa ética é uma violação da Justiça. E uma negação dos princípios do Direito e da ordem jurídica que nos defendem.  
Num caso de tanta gravidade como este, o da suspeita de crimes graves e detenção de um ex-primeiro-ministro do Partido Socialista, verifico imediatamente que o processo foi grosseiramente violado. Praticou-se, já, o linchamento público. Como?
1) Detendo o suspeito numa operação de coboiada cinemática, parecida com as de Carlos Cruz e Duarte Lima, a uma hora noturna e tardia, num aeroporto, quando não havia suspeita de fuga, pelo contrário. O suspeito chegava a Portugal. Porque não convocá-lo durante o dia para interrogatório ou levá-lo de casa para detenção?
2) Convidou-se uma cadeia de televisão a filmar o acontecimento. Inacreditável.   
  
3) Deram-se elementos que, a serem verdadeiros, deviam constar em segredo de Justiça. Deram-se a dois jornais sensacionalistas, o "Correio de Manhã" e o "Sol", que nada fizeram para apurar o que quer que seja. Nem tal trabalho judicial lhes competia. Ou seja, a Justiça cometeu o crime de violação do segredo de Justiça ou pior, de manipulação do caso, que posso legitimamente suspeitar ser manipulação política dadas as simpatias dos ditos jornais pelo regime no poder. Suspeito, apenas. Tenho esse direito.
4) Leio, pela mão da jornalista Felícia Cabrita, no site do "Sol", pouco passava da hora da detenção, que Sócrates (entre outros crimes graves) acumulou 20 milhões de euros ilícitos enquanto era primeiro-ministro. Alta corrupção no cargo. Milhões colocados numa conta secreta na Suíça. Uma acusação brutal que é dada como certa. Descrita como transitada em julgado. Base factual? Fontes? Cuidado no balanço das fontes, argumentos e contra-argumentos? Enunciado mínimo dos cuidados deontológicos de checking e fact-checking? Nada. Apenas "o Sol apurou junto de investigadores". O "Sol" não tem editores. Tem denúncias. Violações de segredo de Justiça. Certezas. E comenta a notícia chamando "trituradora" de dinheiro aos bolsos de Sócrates. Inacreditável.
5) Verificamos apenas, num estilo canhestro a que a biógrafa de Passos Coelho nos habituou (caso Casa Pia, entre outros) que a notícia sai como confirmada e sustentada. Se o Watergate tivesse sido assim conduzido, Nixon teria ido preso antes de se saber se era culpado ou inocente. No jornalismo, como na justiça, há um processo e uma ética. Não neste jornalismo.
6) Neste momento, não sei nem posso saber se Sócrates é inocente ou culpado. Até prova em contrário é inocente. In dubio pro reo. A base de todo o Direito Penal.
7) Espero pelo processo e exijo, como cidadã, que seja cumprido à risca. Não foi, até agora. Nem neste caso nem noutros. Isto assusta-me. Como me assustou no caso Casa Pia. Esta Justiça de terceiro mundo aterroriza-me. Isto não acontece num país civilizado com jornais civilizados. Isto levanta-me suspeitas legítimas sobre o processo e a Justiça, e neste caso, dada a gravidade e ataque ao regime que ele representa, a Justiça ou age perfeitamente ou não é Justiça.
8) Verifico a coincidência temporal com o Congresso do PS. Verifico apenas. Não suspeito. Aponto. E recordo que há pouco tempo um rumor semelhante, detenção no aeroporto à chegada de Paris, correu numa festa de embaixada onde eu estava presente. Uma história igual. Por alturas da suspeita de envolvimento de José Sócrates no caso Monte Branco. Aponto a coincidência. Há um comunicado da Procuradoria a negar a ligação deste caso ao caso Monte Branco. A Justiça desmente as suas violações do segredo de Justiça. Aponto.
9) E não, repito, não gosto de José Sócrates. Nem desgosto. Sou indiferente à personagem e, penso, a personagem não tem por mim a menor simpatia depois da entrevista que lhe fiz no Expresso há um ano. Não nos cumprimentamos. Não sou amiga nem admiradora. É bizarro ter de fazer este ponto deslocado e sentimental mas sei donde e como partem as acusações de "socratismo" em Portugal.
10) As minhas dúvidas são as de uma cidadã que leu com atenção os livros de Direito. E que, por isso mesmo, acha que a única coisa que a Justiça tem a fazer é dar uma conferência de imprensa onde todos, jornalistas, possamos estar presentes e fazer as perguntas em vez de deixar escorregar acusações não provadas para o "Correio da Manhã" e o "Sol". E quejandos. Não confio nestes tabloides para me informarem. Exijo uma conferência de imprensa. Tenho esse direito. Vivo num Estado de Direito.
11) Há em Portugal bom jornalismo. Compete-lhe impedir que, mais uma vez, as nossas liberdades sejam atropeladas pelo mau jornalismo e a manipulação política.
12) Vou seguir este processo com atenção. Muita. Ou ele é perfeito, repito, ou é a Justiça que se afundará definitivamente no justicialismo. Na vingança. No abuso de poder. Na proteção própria.

O teste é maior para a Justiça porque é o teste do regime democrático. E este é mais importante que os crimes atribuídos a quem quer que seja. Não quero que um dia, como no poema falsamente atribuído a Brecht, venham por mim e não haja ninguém para falar por mim. A minha liberdade, a liberdade dos portugueses, é mais importante que o descrédito da Justiça. A Justiça reforma-se. A liberdade perde-se. E com ela a democracia.