26/11/2020

1640 - UM RETRATO DA RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL

 


A poucos dias do 380º Aniversário da Restauração da Independência Portuguesa  do domínio espanhol

No romance «1640», ao escolher para guias do leitor, quatro dos maiores mestres e cultores da língua portuguesa, fui forçada a meter-me na pele (ou a meter sob a minha pele) o épico Brás Garcia de Mascarenhas, a poetisa lírica Soror Violante do Céu, o maior prosador ibérico seiscentista D. Francisco Manuel de Melo e o pregador António Vieira, que deslumbrava pelo virtuosismo da expressão. Quatro narrações feitas em 1ª pessoa, que constituíram, para a escritora, um tremendo desafio, mas também um prazer sem limites.

 O romance está construído como um puzzle ou uma teia de intertextualidades documentais, geográficas, literárias, filosóficas, religiosas, sociais e culturais, para envolver o leitor, de modo a que ele possa sentir o prazer estético da leitura, aprofundando em simultâneo o seu conhecimento da época em que decorre a acção. No século XVI, passada a euforia da grande odisseia dos descobrimentos de outros mundos até então encobertos aos europeus, a crise endémica portuguesa, provocada pelos problemas políticos, económicos e sociais, vai culminar no desastre de Alcácer-Quibir e na posterior anexação de Portugal por Espanha. 

O romance 1640 reflecte esses tempos de crise e da vida problemática das suas gentes. Sendo obra de ficção, tem como principal objectivo o prazer estético da leitura, por isso o escritor frui de uma liberdade criativa que é negada ao historiador; contudo, enquanto género histórico, o romance exige uma componente de informação e conhecimento da História que o distingue e singulariza em relação a todos os outros tipos de romance. O que, para ser feito com honestidade intelectual e respeito pelo leitor, implica da parte do seu autor um estudo de alguns anos, não só dos factos narrados, mas sobretudo da sua contextualização, nos múltiplos aspectos de cada época e da mentalidade dos seus actantes.  

O desastre de Alcácer-Quibir (com que termina o meu romance D. Sebastião e o Vidente), a crise dinástica, a guerra civil e a anexação do reino por Filipe II de Espanha, numa pretensa União Ibérica, são os antecedentes do romance 1640, em que Portugal foi arrastado para os conflitos do Império espanhol, em particular, da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma das mais destrutivas da Europa. A fim de alimentar a guerra em várias frentes, Filipe IV de Espanha e o conde-duque de Olivares, fazendo tábua-rasa dos acordos sobre a autonomia de Portugal, esgotaram os seus recursos humanos e materiais, destruindo a economia e esmagando o povo com impostos, que eram aplicados não em benefício dos portugueses mas dos espanhóis, transformando o reino numa das mais pobres províncias da Península Ibérica. Olivares contou com os serviços de funcionários portugueses submissos e interesseiros, como Diogo Soares, em Madrid, e Miguel de Vasconcelos, em Lisboa, os bons alunos do Ministro estrangeiro, que não só obedeceram às suas directrizes, como foram mais longe na imposição de sacrifícios aos seus compatriotas, reduzindo-os à miséria e à fome. Ao estudar a crise social, económica e política de Portugal, nos textos deste período, foi possível estabelecer um paralelismo entre este triunvirato de governantes seiscentistas e a Troika que nos veio governar, em 2011, imposta pelo FMI/instituições europeias, com os seus nefastos resultados. 

Nestes períodos de crise, Portugal procurou uma panaceia ou incentivo contra o pessimismo e a estagnação do país, na afirmação da sua nacionalidade e identidade colectiva. E nada melhor para valorizar a nação do que atribuir-lhe origens divinas ou tão antigas, que remontassem a um tempo anterior à sua criação, legitimando-a. Assim, como princípio fundador, mais remoto, surge a identificação de Portugal com a Lusitânia e dos portugueses com os Lusos ou Lusitanos, e consequente apropriação do herói Viriato e da sua luta pela autonomia do território, como matriz e origem histórica de Portugal, uma tese veiculada e exaltada pela Literatura, com expressão máxima nos Lusíadas, de Luís de Camões, no século XVI, e no Viriato Trágico, de Brás Garcia Mascarenhas, no XVII. 

A reforçar essa legitimidade, uma tese posterior vai atribuir origem divina à fundação do reino de Portugal, por D. Afonso Henriques, sacralizada, em 1139, pelo milagre de Ourique, na sua anunciada visão de Cristo crucificado a prometer-lhe a vitória contra os cinco reis mouros. Um milagre que o consagra rei, em pleno campo de batalha, e que será descrito em futuras crónicas, servindo de argumento para a sua legitimação pelo papa. 

Sobrepondo-se à valorização política dos dois princípios fundadores, coexistiam três crenças messiânicas, que indicavam 1666 como o annus mirabilis: a dos judeus e cristãos-novos para a vinda do seu Messias; a dos sebastianistas para o regresso d’El-Rei Dom Sebastião; e a dos milenários à espera da destruição do Turco e da instauração de um Quinto Império, cristão e universal, que Bandarra mencionava nas suas Trovas. O povo oprimido começou a ansiar pelo regresso do rei D. Sebastião, desaparecido sem deixar rasto no campo de batalha e identificado com o Encoberto das profecias do sapateiro santo. Uma crença que foi crescendo, cada vez mais forte, durante o domínio dos três Filipes, alimentando a esperança do povo português na sua libertação. Padre António Vieira defenderá a deia do Quinto Império, o Império de Cristo, para um período de mil anos, que terá Portugal como guia, quando todos os pagãos, judeus e muçulmanos forem convertidos ao catolicismo, o reino do Deus único e verdadeiro. 

O romance 1640, apoiado em inúmeras fontes documentais coevas e actuais, procura fazer um retrato verosímil do Portugal seiscentista, dos seus conflitos internos e das suas difíceis relações internacionais, numa luta pela sobrevivência como nação independente. A acção decorre num período de cinquenta anos (1617-1667), riquíssimo em acontecimentos, dramas e personagens. No dia 1 de Dezembro de 1640, os portugueses dos três Estados – povo, clero e nobreza – soltaram o grito de liberdade e tomaram o destino do país nas suas mãos, iniciando uma intensa luta para sair da crise pelos seus próprios meios, num Portugal esgotado e acossado por nações inimigas – a Espanha e as suas aliadas –, mas também pelas «amigas», como a Inglaterra e a França, que impuseram condições esmagadoras em troca da sua ajuda. Tal como nos nossos dias.

 A estrutura formal da obra foi inspirada na Corte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, que, ao estilo da época barroca e em total sintonia com a intriga, recorre aos Diálogos entre várias personagens que discutem, comentam e problematizam os assuntos mais variados, introduzindo os capítulos narrativos dos sucessos que mais os marcaram, preocuparam ou divertiram. Durante a dominação filipina, os reis e a Corte residiam em Madrid, centro de acção e decisão sobre todos os assuntos do Império Espanhol e das suas relações com o mundo, mas também um lugar privilegiado de criação e promoção de progresso, cultura e entretenimento. Lisboa, a antiga residência da dinastia de Avis, perdeu assim o seu estatuto de Corte régia, transformando-se em mera capital de província. Cansada de correr para Espanha, a mendigar mercês, parte da nobreza de Portugal retirou-se para os seus domínios, no campo, onde fez florescer as «cortes de aldeia», que procuravam imitar, segundo o estatuto e as posses dos seus senhores, as Cortes régias, com mecenato a escritores, músicos e outros artistas. A mais fulgurante, em dimensão e importância, foi a dos duques de Bragança, em Vila Viçosa, cujo cerimonial cortês era idêntico ao de Madrid. Uma mentalidade barroca que, segundo Vitorino Magalhães Godinho, “anseia pelo fausto e pela exibição, nos círculos nobres como nos religiosos – uma religião de exuberância decorativa, aquietando-se nos ritos de subterrâneas inquietações, satisfazendo-se na exterioridade de uma insatisfeita interioridade”. Assim, nas cidades, essa função cultural e intelectual é assumida nos conventos pelas freiras, cultas e de nobre ascendência, alguns célebres quer pelos seus Outeiros (representações teatrais, concertos musicais, saraus de poesia e produção literária), quer pelos escândalos de cariz licencioso das suas religiosas. 

Na primeira parte do romance, o narrador é o poeta Brás Garcia de Mascarenhas, autor do Viriato Trágico, a grande epopeia seiscentista cujo herói é o pastor dos Montes Hermínios, com a sua luta contra os romanos, que simboliza a revolta dos portugueses contra a ocupação espanhola. Brás é a personagem de maior relevância, embora desconhecida dos portugueses, que pretendi resgatar ao limbo do esquecimento, restituindo-a a um merecido lugar entre os maiores vultos da cultura portuguesa. Nascido em Avô, amante traído, proscrito e aventureiro, Brás vai conduzir o leitor pelo dédalo de sucessos anteriores à Restauração, como as guerras do Brasil contra os holandeses, a sua amizade com António Vieira, as experiências com os índios e a sua complexa vida amorosa. 

Na segunda parte, guia-o Soror Violante do Céu, desde o convento da Rosa, em Lisboa. Cultora do conceptismo e cultismo, tanto na poesia de temática religiosa como na de cariz secular/erótico. Celebrada pelos seus contemporâneos, como a Décima Musa e a Fénix dos Engenhos Portugueses, dará a conhecer a situação e vida das mulheres de seiscentos, enclausuradas sem vocação nos conventos, algumas desde a infância, uma prisão que, paradoxalmente, era para muitas uma libertação da tirania masculina castradora, permitindo-lhes estudar e exercer os seus talentos de artistas, letradas ou cientistas, o que de outro modo lhes era vedado pelos homens, sob o pretexto de serem intelectualmente inferiores. 

Na terceira parte, os conflitos de ordem militar serão relatados por D. Francisco Manuel de Melo, o grande prosador e poeta do século. Na prisão da Torre, este Fidalgo de Dom, aparentado com a Casa de Bragança, militar e marinheiro, foi vítima de uma Justiça corrupta (um traço comum às quatro personagens) que o condenou a doze anos de prisão e ao exílio no Brasil. O seu testemunho permite tomar conhecimento da intrincada rede de conspirações, espionagem e traições com que Portugal e D. João IV se debateram para ganhar a liberdade. 

Na quarta parte, o leitor é levado pelas palavras e reflexões do jesuíta António Vieira, o mais brilhante pensador e pregador de todos os tempos, que o guiará pelos meandros da diplomacia nacional e internacional, em que D. João IV se vai empenhar num dificílimo jogo de custosas alianças, para que Portugal possa recuperar o seu estatuto de nação independente. No cárcere da Inquisição, entre 1663 e 1667, ano em que termina o romance, Padre António Vieira, relembrando a sua vida passada, dará conta dos mais significativos sucessos em que participou até à crise política interna, do reinado de D. Afonso VI. 

A complexidade do assunto a tratar implicou o estudo de uma infinidade de temas, porque só no cruzamento de saberes se pode alcançar o multifacetado conhecimento de uma época, um trabalho que se arrastou por treze anos de investigação, embora alternando a sua escrita com a da trilogia dos Descobrimentos. 1640 é uma data fulcral da nossa História, que mudou o destino da nação, pois, sem a Restauração, Portugal não seria o mesmo e talvez não passássemos hoje de uma pobre província espanhola, a falar um dialecto e a sonhar com a independência, como a Catalunha, cuja revolta ajudou então à nossa libertação. Assim como, sem a Expansão Marítima Portuguesa, ou seja, sem os Descobrimentos portugueses dos séculos XV e XVI, os países da Lusofonia não existiriam como tal, nem falariam a Língua Portuguesa em todos os seus ricos matizes e este Colóquio não teria razão para existir. Deo gratias, por isso não ter acontecido.

Trabalhar a nossa língua em todos os seus registos é um prazer divino e a maior motivação da minha escrita. «1640», o meu último romance, levou esse exercício mais longe do que me permiti sonhar. Amo este país e a sua cultura por isso só escrevo romances históricos de temática nacional, a partir das histórias daqueles que souberam criar, desenvolver e manusear a nossa língua com infinita mestria e originalidade, de que nós hoje somos fracos herdeiros. Na minha trilogia dos Descobrimentos – O Navegador da Passagem, O Espião de D. João II e O Corsário dos Sete Mares – recorri ao estilo e linguagem dos cronistas dos séculos XV e XVI, em que a língua ainda se encontrava em processo de desenvolvimento, transbordante de criatividade; em D. Sebastião e o Vidente, mas, sobretudo, no «1640», que aqui venho apresentar, pude gozar com toda a plenitude a volúpia da Língua Portuguesa, que atingiu as maiores alturas no século XVII. 

17/11/2020

História dos Paladares - Crítica gastronómica

 pelo  Prof. Virgílio Nogueiro Gomes

História dos Paladares - Sedução 

 «Surgiu-me, inesperadamente, este volumoso livro que foi uma leitura agradável durante a semana passada. Não conhecia a autora, e talvez por isso, dediquei-lhe uma atenção especial. Este é o primeiro volume de “História dos Paladares” com o subtítulo “Sedução”. Do Prefácio transcrevo: 

A erudição muitas vezes tolhe o espírito, pois provoca sobrecargas incontroláveis. Felizmente, Deana Barroqueiro é uma sábia fecunda que, depois de décadas de uma vida profissional dedicada aos alunos e a uma cidadania activa, prossegue essa mesma dedicação à grei oferecendo-nos pedaços da sua sabedoria. … A melhor forma de agradecermos a sua generosidade é lermos o seu texto para nos enriquecermos… 

Só isto bastaria para definir a autora! 

O livro tem onze capítulos e a estrutura que lhe arquitectei nada tem de convencional, na pena da própria autora. Ora esta forma de organizar o livro é uma das atracções da obra. Mas primeiro, antes dos capítulos anunciados, tem um conjunto de textos aos quais chama “História do Paladar”: No princípio era o gosto…; Paladares Planetários; Paladares Míticos; Paladares Primordiais; Paladares Ancestrais; Paladares Mediterrânicos; Paladares Científicos e Paladares Certificados. Seguem-se agora os onze capítulos que não irei anunciar, pois são 488 páginas de puro prazer de leitura e aprendizado. 

Quem gosta de entender a história da alimentação através de receitas tem duzentas e cinquenta para se distrair e comer, com a vantagem de dispor no final de um índice alfabético. Estas receitas estão integradas nos textos como que a ilustrá-los. E as histórias vêm desde as tradições populares à cozinha mais requintada. Trabalhadas com o mesmo nível para o conhecimento e ambas integradas nos conceitos de que a alimentação é, de facto, Património Imaterial da Humanidade. 

Surpreendente este livro com uma escrita clara e compreensível, e que revela o estudo e grande critério de investigação da autora, a quem envio os meus Parabéns. Se já temos o primeiro volume, lido com muito entusiasmo, o segundo “Perdição” já nos abre o apetite e apetece perguntar quando o teremos. 

Este é um livro que seguramente recomendarei aos meus alunos. 

© Virgílio Nogueiro Gomes

Título: História dos Paladares - Sedução 

Autor: Deana Barroqueiro 

Editora: PRIME Books 

ISBN: 9789896554293 

VIRGILIOGOMES.COM História dos Paladares - Sedução 
Compra através da Editora PRIME BOOKS  ou nas livrarias

15/11/2020

História dos Paladares, de Deana Barroqueirto

CARLOS FIOLHAIS 
13/11/2020 14:35
Jornal i

A História dos Paladares apresenta a história da alimentação em Portugal e no mundo, com grande foco em Portugal e nas suas interações alimentares com o resto do mundo. 

 Deana Barroqueiro (New Haven, 1945) é uma romancista portuguesa, oriunda de uma família da Murtosa que emigrou para os Estados Unidos. Cursou Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo feito parte do grupo de teatro onde pontificaram Maria do Céu Guerra, Jorge de Silva Melo e Luís Miguel Cintra. Foi por genuína vocação professora de Português na Escola Passos Manuel, em Lisboa, o mais antigo liceu português, onde desenvolveu vários trabalhos pedagógicos relacionados com os Descobrimentos, encontrando-se hoje na situação de reforma. Na literatura portuguesa, preferindo os séculos XVI a XVII, tem dado livre curso à sua paixão por contar algumas das histórias desse tempo, embebendo-as numa trama ficcional. 

 Começou por escrever romances históricos juvenis: são sete os seus livros da colecção “Cruzeiro do Sul”, da Livros Horizonte, dos quais o primeiro foi Uraçá: O índio branco (2002). Publicou depois contos e romances inspirados na Bíblia, enfatizando as figuras femininas: Contos Eróticos do Velho Testamento, com prefácio de Maria Teresa Horta (Livros Horizonte, 2003; reedição: Planeta Manuscrito, 2018), publicado em Espanha, Itália e Brasil; Novos Contos Eróticos do Antigo Testamento (Livros Horizonte, 2004); e O Romance da Bíblia: Um olhar feminino do Antigo Testamento (Ésquilo, 2012; reedição: Tentação da Serpente, Ésquilo, 2012). 
Abalançou-se depois a romances históricos de grande fôlego. Uma das linhas que cultivou diz respeito à expansão portuguesa: O Navegador da Passagem: A história de um descobridor de mundos que o mundo ignorou (Porto Editora, 2008); O Espião de D. João ii: Na demanda dos segredos do Oriente e do misterioso Reino do Preste João (Ésquilo, 2009; reedição: Casa das Letras, 2015); e O Corsário dos Sete Mares: Fernão Mendes Pinto (Casa das Letras, 2012) 
Numa outra linha, focou a crise da independência nacional: D. Sebastião e o Vidente: Um romance de conspiração, mistério e revelação (Porto Editora, 2006; reedição: Casa das Letras, 2016), que recebeu o Prémio Máxima de Literatura 2007 - Prémio especial do júri e se tornou um best-seller; e 1640. O poeta, a professa, o prosador, o pregador (Casa das Letras, 2017), onde entra o Padre António Vieira. 

Tenho entre mãos a sua primeira obra de não ficção, História dos Paladares, Vol. I,  Sedução (Prime Books, 2020). É um volume enorme, de 486 páginas, aproximadamente o mesmo tamanho dos seus romances históricos. Está prometido para breve o Vol. ii, com o subtítulo Perdição, que incidirá sobre a relação da gastronomia com o cinema, a moda, a religião, etc. A História dos Paladares apresenta a história da alimentação em Portugal e no mundo, com grande foco em Portugal e nas suas interacções alimentares com o resto do mundo. Inclui mais de 250 receitas de época. 

 A minha primeira impressão quando comecei a folhear o livro foi o atraente design: seduz desde logo a capa, baseada num quadro de Pieter Bruegel. Mas o que mais me impressionou foi a quantidade e a qualidade da informação do livro. O índice elenca os 11 capítulos do livro após o prefácio do historiador João Paulo Oliveira e Costa, da Universidade Nova de Lisboa (também ele autor de romances históricos de grande circulação) e de uma Carta ao Leitor, assinada pela autora. As divisões foram feitas pelo tipo de paladares, devidamente adjetivados: I Elementais/ Tradicionais/ Orais; II Lêvedos/ Fintos/ Alentadores; III Viscerais/ Sanguinosos/ Telúricos; IV Silvestres/ Bravios/ Monteses; V Salgados/ Marinhos/ Curados; VI Doces/ Melosos/ Sacarinos; VII Amaros/ Amargos/ Amargosos; VIII Acres/ Ácidos/ Acerbos; IX Espirituosos/ Encorpados/ Alcoólatras; X Cremosos/ Coalhados/ Bolorentos; e XI Aromáticos/ Pungentes/ Ardentes. 

O prefaciador chama à obra “suculenta.” E acrescenta: “Viajamos pelo tempo, mas também pelo mundo, fruto das aventuras ultramarinas dos povos mediterrâneos e depois dos portugueses e dos seus seguidores da Europa do Norte”. Não poupa nos encómios: “Entenda o leitor que tem em mãos um depósito de sabedoria rara. Um livro deste tipo corresponde à sedimentação de conhecimentos variados que só podem ser expressos por uma pessoa ao cabo de uma vida longa; nenhum jovem tem arcaboiço para compilar e apresentar de modo claro e inteligível tamanha informação”. 

 O propósito da obra está bem expresso na Carta ao Leitor: “A estrutura que arquitectei nada tem de convencional. Porque a minha intenção foi, sobretudo, articular a história com os diversos ramos da cultura, ciência e civilização universais (dando particular relevo a Portugal), através de anedotas, acontecimentos e personalidades mais relevantes para a evolução do paladar e da gastronomia, desde a Idade da Pedra aos nossos dias”. Mais adiante, a autora fala das camarinhas que apanhava nas dunas de Aveiro, da arte da xávega em São Jacinto e dos doces da ria aveirense (ovos-moles e pão-de-ló de Ovar). Ficamos emocionados ao saber da “sopa de pedra” que fazia em criança para as suas amigas que, ao contrário dela, passavam fome. Ficamos a saber que quando, aos sete anos, veio morar para Lisboa, ganhou o gosto pela culinária: “Sentia-me como uma aprendiz de feiticeira que, por artes mágicas, de uma colher de pau ou de um batedor de claras, empunhados pela minha mão, podia criar iguarias perfumadas e saborosas que, ante os meus olhos, e pela força alquímica do fogo, ganhavam vida própria a partir da mistura de matérias inertes e comezinhas, como água, farinha e ovos e açúcar. Ganhei a minha coroa de glória, aos 12 anos, com uns coscorões dourados e estaladiços para a ceia de Natal”. Por via do marido, que é professor de Física Nuclear na Universidade de Lisboa, descobriu a extraordinária cozinha de Beira Baixa (declaração de interesses: conheço o simpático casal, mas comprei o livro!). O livro é, para ela, um “contributo para preservação da memória do nosso riquíssimo património gastronómico.” E é - digo eu - um grande contributo!

 Em cada capítulo, a Deana, que escreve muito bem, vai saltando entre paladares do mesmo tipo, não se importando nem com a ordem cronológica nem com a ordem geográfica, pois uns sabores evocam outros. O texto é cortado por “histórias de pasmar,” citações e receitas. No capítulo dos “Elementais”, aprendi que o livro de receitas mais antigo são três tabuletas de argila da Suméria, de há 4 mil anos, que contêm mais de duas dúzias de pratos (no livro está a receita do “caldo vermelho”). Outros pratos desse capítulo são a sopa de peixe à moda do rei Wamba, um rei visigodo do séc. vii, de Vila Velha de Ródão, e a galinha mourisca do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, o mais antigo livro de cozinha português (séc. xv). No capítulo “Lêvedos” aprendi como foi inventada a piza Margherita no século xix, em Itália, e como se faz o bolo do caco, da ilha da Madeira. No capítulo dos “Viscerais” aprendi como se preparam as papas de sarrabulho, do Minho, e o cozido à portuguesa segundo o gastrónomo Olleboma (António Maria de Oliveira Bello, o autor de Culinária Portuguesa, 1928). No capítulo “Silvestres” fiquei a saber como se faz a feijoada de lebre, um sabor feudal, e o leitão assado, um sabor setecentista da Bairrada. No capítulo dos “Salgados” inteirei-me da confeção da caldeirada de enguias, tão típica da Murtosa, e das choras de bacalhau, uma sopa de arroz e caras de bacalhau comida pelos pescadores da Terra Nova. No capítulo dos “Doces” vi como era feito o manjar-branco do referido Livro de Cozinha e os pastéis de nata de Macau, introduzidos na Ásia por um espião inglês. No capítulo dos “Amaros” vem o pudim de chá, uma influência oriental, e o bolo-rei de Olleboma. No capítulo dos “Acres” reparei no peixe no seu molho de escabeche e no bacalhau alabardado, que tão bem aproveita o azeite português. No capítulo dos “Espirituosos” achei curioso o “meio de tornar velho vinho novo (manual do destilador)”. No capítulo dos “Cremosos” encontrei as queijadas de Sintra, que Eça de Queirós refere n’Os Maias. No capítulo dos “Aromáticos” chamou-me a atenção a muamba de galinha à angolana. A secção final intitula-se “É manha de Portugal comer bem, dizer bem e dizer mal”. Eu, cheio de água na boca, digo bem. 

 No livro abundam as referências às trocas alimentares ocorridas com a expansão marítima. A autora cita a BBC Travel: “De facto, a cozinha portuguesa, que se mantém fortemente ofuscada pelas cozinhas de Itália, Espanha e França, talvez seja a cozinha mais influente do mundo”. 

 Na lista bibliográfica encontrei livros muito úteis de referência como, além dos já referidos, o imponente À Mesa dos Reis de Portugal (Círculo de Leitores, 2011), de Ana Isabel Buescu e David Felismino. Encontrei clássicos como as Notas de Cozinha de Leonardo da Vinci, tiradas da internet (há em livro: Althum, 2012), e a Cozinha Arqueológica, de Eça de Queiroz, embora sem referenciação completa (há uma edição da Colares Editora, 2007). Mas não encontrei a aparentada trilogia de livros de José Quitério (Livro de Bem Comer, Assírio & Alvim, 1987; História e Curiosidades, idem, 1992; e Bem Comer & Curiosidades, Documenta, 2015). O único senão do livro é alguma falta de cuidado da bibliografia: por exemplo, a Fisiologia do Gosto, de Jean Brillat-Savarin, está traduzida em português (Relógio d’Água, 2010). Pelo preço de uma refeição num restaurante médio podemos comprar um livro que nos faz comer e chorar por mais!

13/11/2020

Deana Barroqueiro e os Paladares

 Recensão de Carlos Fiolhais à História dos Paladares

de Deana Barroqueiro

 (Jornal i, 12 de Novembro 2020)