22/12/2010

Ovos Moles de Aveiro - por Ollebama


"Gastrónomo é o que sabe comer. O que prefere, e como não, a qualidade à quantidade. Nada de parentesco vocabular ou real com o comilão, o glutão, o gargantão ou viandeiro. Nada. Antes o saboreador, anteposto ao deglutidor. A sensibilidade do gastrónomo está mais na boca e na língua, nos olhos e no olfacto, que no estômago. Comer, para o gastrónomo, é coisa tão sagrada como o sagrado sacrifício da missa para o cristão. Não há nada mais bulidor com a essência divina da besta humana, inteligente e sensível".

(...) "O gastrónomo é o grande maestro. Como ele sabe compor por exemplo essa peça orquestral que é uma caldeirada, em que a fífia de um figurante pode anular uma obra de mestre ou essa rapsódia nacional que é o cozido à portuguesa. Para a cozinha os mais sagrados elementos são colaboradores primários: o sol, a água, o lume, o tempo, o mar, a floresta, a ave, o fruto, tudo invenções de Deus e o Vinho que é invenção dos homens bem dignos de serem nomeados deuses. Mundo inteiro, do pão e do sal, do minúsculo crustáceo ou do pequeníssimo bago de pimenta ao potente boi doméstico e ao indomável javali!"

"A cozinha portuguesa, endeusada por Fialho nos Gatos, verificada a sua existência pelo Ramalho nas Farpas e proclamada revivedora, tónica e maravilhosa urbi et orbi por Eça de Queiroz, dos livros menores ao A Cidade e as Serras, teve em António Bello o seu melhor defensor, o seu cultor apaixonado. A sua obra, fundando a Sociedade de Gastronomia Portuguesa e escrevendo este livro (Culinária Portuguesa), o prova".
Albino Forjaz de Sampaio, no Prólogo de Culinária Portuguesa, 1933

António Maria de Oliveira Bello, aliás Olleboma, foi industrial e mineralogista distinto. E foi gastrónomo ilustre, fundador em 1933 da Sociedade de Gastronomia Portuguesa. "Pertencia infelizmente e devia ter horror a esta geração que não sabe comer e que vive apressadamente, devorada de incertezas e angústias, conhecendo do mundo as estradas e do prazer a superfície".

Escreveu pelo menos dois livros de cozinha, um de culinária internacional e outro de Culinária Portuguesa, de onde passo a tirar a receita original de uma verdadeira ambrósia dos deuses:

Ovos Moles de Aveiro

Tomam-se 500 gramas de açúcar refinado, juntam-se 250 gramas de água e, em estando em ponto de pasta, tiram-se do lume, deixando arrefecer. Juntam-se então 24 gemas de ovos bem limpas das claras, levemente mexidas para ficarem desfeitas, voltandoa o lume, mexendo sempre para não pegarem ao fundo. Estando cozidas e com consistência, junta-se uma colher, das de sobremesa, de canela em pó e deita-se na travessa ou prato de serviço, ou enchem-se pequenos envólucros de massa (obreia). Sendo para enchimento ou revestimento de pães de ló ou para pastéis, deve dar-se a maior consistência possível. Também, se podem juntar 5 a 6 colheres, das de sopa, de doce de gila.

Boas Festas!


Amigos leitores

Quero desejar a todos um belo Natal, de consumismo moderado, macio Bolo Rei, bacalhau com todos ou perú recheado de coisas boas e um Ano de 2011 cinzelado à medida dos vossos sonhos e com doces prazeres.
Ofereçam livros de autores portugueses e artigos de fabrico português.
Façam boas leituras e sejam felizes, por favor!

21/12/2010

Entrevista para o Radio Alfa - Paris

Ainda a propósito do caos nos aeroportos europeus, nomeadamente no Charles de Gaulle, em Paris, e da nossa (des)aventura do dia 8 (premonitória do maior caos em que se encontra hoje), o jornalista Artur Silva fez-me esta tarde uma entrevista sobre essa infeliz noite e as condições em que nos encontrámos nesse dito "aeroporto mais moderno da Europa (ou do Mundo?)". Ainda "fervo" ao recordar essas 24 horas de cansaço e desespero.
A entrevista

18/12/2010

Imagens do Japão: Beleza, Tanquilidade, Meditação

Parques e templos de Kyoto, para nosso deslumbramento! Não sou sequer fotógrafa amadora, mas gosto de registar as imagens ou os momentos que mais me marcaram e pelos mais desencontrados e às vezes absurdos motivos. Algumas foram tiradas em condições adversas ou com pouca luz e não têm tratamento, aliás a nebulosa dos meus olhos não me deixa ver o mundo com nitidez. Assim, ficareis mais próximos de mim e do meu modo de olhar. Já as pus no Facebook, mas como muitos dos meus leitores não passam por lá, gostaria de vos levar comigo até estes simulacros de memória e do meu prazer.

Aeroporto Charles de Gaulle, o nevão e os "hóspedes"


Fui, de 27 de Novembro a 8 de Dezembro, ao Japão, em viagem organizada pelo Centro Nacional de Cultura sob o tema "Os Portugueses ao encontro da sua História". O meu objectivo era o de encontrar vestígios de Fernão Mendes Pinto, da sua espantosa obra "Peregrinação" e dos portugueses que foram os primeiros ocidentais a visitar as terras do Império do Sol Nascente.

Uma viagem bafejada por sol, temperatura fresca sem ser gelada e os momiji ainda repletos de folhas, ora acobreadas como fogo, ora escarlates como sangue, criando ao modo impressionista os mais belos quadros que se possam imaginar.

Um país limpíssimo, de gente educadíssima que faz do seu trabalho uma missão, procurando sempre a perfeição e o bem-estar do seu próximo e a comunhão com o mundo que o rodeia. Espero poder descrever aqui algumas das minhas impressões.

Todavia, antes de falar do Japão, tenho de contar do regresso e do primeiro choque(não falo da tremenda queda que dei no último dia de viagem diante do templo Toshogu)que senti do confronto de mentalidades e civilizações, à nossa chegada ao aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, depois de mais de 9 h. de voo pela Air France.

Por mal de nossos pecados foi no dia 8 de Dezembro, a quarta-feira do nevão que paralisou o aeroporto e Paris. Não conseguimos aterrar na capital francesa, porque eles não tinham máquinas suficientes para limparem as pistas, e fomos desviados para Toulouse, voltando a Paris, duas ou três horas depois, aterrando por fim, mas ficando mais de uma hora dentro do avião, à espera que desimpedissem a pista.

Tudo isto seria até compreensível, devido às condições meteorológicas, porém não é possível aceitar ou compreender o modo como foram tratados os passageiros que tinham perdido as suas ligações com outros voos. Só no dia seguinte, à noite, teríamos avião (e não era seguro haver lugares para todos) e os hotéis estavam cheios, segundo disseram os responsáveis da companhia e do aeroporto, portanto, teríamos de passar ali a noite.

Então, como tinham de fechar as suas instalações - salas, saletas, restaurantes, cafés, tudo - o único sítio que tinham para acolher os trinta membros da embaixada cultural do CNC, e outros grupos que chegaram noite dentro, foi um corredor ou túnel sob a ponte do aeroporto, desabrigadíssimo apesar de não ser a céu aberto, gélido e quase às escuras, sem sequer uma cadeira para nos sentarmos, sem comer e sem beber . Deram-nos apenas um tapete de Yoga (bem a propósito!), uma fina manta e uma garrafa de água, para nos deitarmos no chão e passarmos ali a noite, com temperaturas negativas, independentemente da idade, das doenças, de nos conseguirmos deitar ou mesmo sentar no chão. Como vagabundos ou sem-abrigo. Como num campo de refugiados. Ou um rebanho à espera de embarque.

E falamos nós de Portugal! Quando, durante uma greve ou uma qualquer crise, os nossos jornalistas acodem às salas aquecidas e iluminadas - onde os passageiros se queixam, a comerem sandes e a tomarem bebidas quentes, quantas vezes com tendas de campanha -, ansiosos por mostrar "as péssimas condições dos nossos aeroportos", deviam olhar também para o que se passa "lá fora", nos países ditos desenvolvidos! No Charles de Gaulle, não entrou a imprensa francesa, garanto-vos!
Foi um comportamento, sem ponta de profissionalismo ou civismo. Infame!

Aqui tendes duas imagens do nosso "acampamento", peço desculpa pela má qualidade, mas a luz não ajudava...

15/12/2010

O que dizem os meus Leitores

Este meu espaço de Conversa com os Leitores é o lugar privilegiado para eu comunicar convosco, dizer-vos o que penso ou sinto, partilhar algumas mágoas e prazeres, dar-vos notícias sobre o meu trabalho e as minhas obras. Mas é ainda, ou principalmente, uma oportunidade para ouvir as vossas impressões, ideias e críticas que me ajudam a escrever melhor, além de me servir para vos agradecer o interesse e carinho com que me tratam e homenagear-vos, dando a conhecer as vossas palavras.

Poderá parecer uma atitude de certo modo narcisista da minha parte, transcrever apenas loas e elogios, mas que culpa tenho eu de que as vossas críticas, durante esta 1ª década da minha actividade de escritora, tenham sido sempre (com excepção de cinco, terão de se fiar na minha palavra e eu asseguro-vos de que não minto) abonatórias e até muitíssimo entusiáticas do meu trabalho?

Vem isto a propósito de um e-mail que recebi há poucos dias e vou cometer a indiscrição de publicar sem pedir autorização ao seu autor, por me vir de longe, de Angola, o que me emocionou muito, por isso desejo partilhá-lo com a minha comunidade de amigos leitores de que ele, afinal, também faz parte:
"Muito Obrigado pelas agradáveis horas de leitura que nos proporciona.

Fiquei encantado com o Navegador da Passagem e não mais larguei a leitura das suas obras.

De facto quis experimentar, levado pela curiosidade de como é vista a história de Portugal pelos olhos de alguém que não nasceu português.

Parabéns, estou à espera de mais, sou um português aficionado da nossa história e que aproveita todos os momentos e pretextos para falar dos nossos feitos. Estou com a familia a trabalhar em Angola e tenho visitado alguns dos lugares onde fomos nós os primeiros europeus a tocar estes solos (Soyo, Cabinda, Cabo da Boa-Esperança,...) ler sobre os acontecimentos nestes lugares leva-me a viajar no tempo, quando olho os nossos Padrões deixados pelos nossos navegadores encho-me de orgulho e não páro de repetir para os meus filhos vezes sem conta os nossos feitos. O mais estranho de tudo é que nas conversas com muitos indivíduos de outras nacionalidades com quem trabalho (sobretudo os americanos) é frustrante a falta de conhecimento da história, ninguém sabe que o mundo foi dividido em dois pelos reinos de Portugal e Espanha, quem foi Vasco da Gama, o que fez Fernão de Magalhães, o Brasil, etc.

Não a maço mais, desejo-lhe muita inspiração para nos continuar a presentear com as suas obras. Tenho-a indicada no meu facebook.

Best Regards
José Sardinha"

Segunda-feira, 13 de Dezembro de 2010 8:34
http://www.facebook.com/profile.php?id=1228238676#!/profile.php?id=1638162695

Obrigada, José Sardinha!

14/12/2010

O Espião de D. João II - 3ª edição

Saiu finalmente a 3ª edição deste romance, que alguns leitores se queixavam de não encontrar nas livrarias, com grande pena minha, por se estar a aproximar o Natal, época em que todos os autores desejam ter os seus livros disponíveis nas livrarias e grandes superfícies.

Agora O Espião de D. João II vai ter de competir com milhares de novidades. Como já disse no Facebook, não percebo a política das editoras que inundam o mercado livreiro com catadupas de obras repetitivas e, por vezes, de baixa qualidade que se abafam umas às outras e também soterram qualquer obra de qualidade que apareça, pois esta nem tem tempo para "aquecer" nas prateleiras, porque em poucos dias é substituída por outras novidades mais mediáticas.

11/12/2010

Livros em campanha de Natal

Na Wook, além do desconto de 10%, "O Romance da Bíblia" (http://www.wook.pt/ficha/o-romance-da-biblia/a/id/7295856) e "O Espião de D. João II" (http://www.wook.pt/product/facets?palavras=O+Espi%C3%A3o+de+D.+Jo%C3%A3o+II&restricts=8066&facetcode=temas&fsel=8066x5839) recebem um vale de 40% em futuras compras.

"O Navegador da Passagem" (http://www.wook.pt/ficha/o-navegador-da-passagem/a/id/202111) e o "D. Sebastião e o Vidente" (http://www.wook.pt/ficha/d-sebastiao-e-o-vidente/a/id/185353) dão direito a um vale de 50%.

Assim, caros leitores, se não conseguiram achar os meus livros, em corpo presente nas livrarias, poderão adquiri-lo com algum proveito na Wook, para uso próprio ou para oferta de Natal.

24/11/2010

Memórias de Estalo - Epílogo

Também do lado da Porta da Cruz, no Cais do Carvão e no Cais da Madeira, assim como nas Tercenas onde se fabrica a pólvora, dão por findo o trabalho mais três centos d’homens e mulheres, os quais começam a abandonar a Ribeira e nós com eles. A caminho do Hospital, seguimos pela rua da Fancaria e viramos à direita na de Julianes, até à Igreja de Santa Maria de Madanela e depois à esquerda, pela Rua da Correaria, bordeando a Judiaria Grande, cujas portas serão prestes cerradas, e vamos dar ao Convento das Carmelitas, no cruzamento da rua do Quebra-Costas com a dos Torneiros, a qual tomamos a rijo trote, que em Novembro mui prestes cai a noute. Chegados à Igreja de S, Nicolau, minha preciosa Esmeralda, não tem que saber, é sempre a direito pelas ruas das Arcas e da Palha até ao pátio de serventia do Hospital de Todos-os-Santos.

Numa das 3 cozinhas do Hospital que vemos desde o pátio pera onde nosso amo nos carreou, os oficiais de serviço andam mui azafamados na preparação das comidas e mezinhas pera os cerca de cento e quarenta enfermos que tem a seu cargo, pois se acerca a hora da ceia e o enfermeiro-mor tem neles grande vigia, não os deixando lazeirar . Ajudado pelo azemel do Hospital, meu amo não perde tempo em nos atrelar à carrocinha, a mim e à doce Esmeralda, lado a lado, pera minha maior ventura e prazer! Que bem que cheira a jumentita e como busca o calor de meu corpo, no arrepio da noite!

Nosso amo inda s’atarda pera duas canadas de tinto com o azemel e quando sobe pera a carrocinha, tem de ser com muito socorro, que já mal se sustém nas pernas, o que lhe dá grande risa, a ele e a todos os que correm a alá-lo pera riba do banco, onde só com muito trabalho logra manter-se assentado. “Uxtix, ‘Stalo,‘bora p’ra casa, home! Arre, m’nina!” De tão tartamelo nem o meu nome lhe sai escorreito e muito menos o seu famoso estalido de lingua, que faz por soltar, não logrando mais que um triste assopro que sembra deixá-lo sem fôlego. Boto-me a caminho, que me prezo de o saber d’olhos cerrados, sem mister de chibata ou açoute e bastas vezes tenho carreado meu amo adormecido, de Lisboa até Belém.

Agora é seguir a direito, tomando tento nos carreiros, que não hão-de oferecer perigo, pois a noite é de lua cheia, tão clara como se fora dia. Mal sinto o cansaço da jornada que meu coração vai ligeiro como a brisa e o sangue corre quente e grosso no meu corpo. Uma orelha d’Esmeralda roça-me por vezes o pescoço e eu sinto ânsias de zurrar à lua. Meu amo, como que adivinha o meu pensamento e, de lingua inda tartamela, solta em altíssimas vozes os versos da canção: “Mê padre é almocrebo / Vende castanhas e nozes/ Quem quiser casar comego / Alevante-me essas vozes”. Deus o guarde! Amen.


Finis

Memórias de Estalo - Capítulo XI

Na Ribeira

Esmeralda não sabe para onde olhar, com tanta estranheza que vai neste Mundo. Tudo vem dar aos portos de Lisboa e a Ribeira Velha é o melhor lugar para deixar a carga mais rara e o muito fato trazido de longes terras, enquanto se lhe não acha outro destino. Gentes das mais desvairadas raças, cores e trajos cruzam-se no terreiro e na praia, monstros terríveis, em gaiolas de ferro arrancam gritos de pasmo a todos os que se acercam a vê-los. Nomes de bichos fabulosos, como Unicórnio, Tigre, Jaguar, Pantera, Crocodilo ou Girafa correm de boca em boca, assim como os de lugares nunca antes ouvidos: Patane, Narsinga, Chaul, Pegú, Timor, Cantão, Liampo ou Tanegashima!

Esmeralda espanta-se, e zurra, cheia de terror ao ver um grupo de degredados a arrastar as correntes, carreados pelos beleguins para os barcos que os hão-de levar aos Brasis, Áfricas ou Índias, talvez para não mais volverem. Cruzam-se com um carregamento de escravos negros da Guiné, presos uns aos outros com grossos baraços e marcados a ferro em brasa como gado. Cheios de moléstias pela terrível viagem, magros e imundos, olham com assombro e medo o seu novo mundo. São inda menos do que nós!, murmura Esmeralda com dó.

Berros desesperados ouvem-se nos batéis que trazem uma caravana de arábios com seus camelos do deserto que, temerosos de tanta água, espinoteiam com as altíssimas pernas e mordem os matelotes que se lançam ao mar em grande alvoroto. Só a duras penas logram os homens trazer os bestigos para terra, com as corcovas a balançar d’aflição. Que pena tenho de não os poder entender! Quantas cousas me haveriam de dizer de suas terras e aventuras vividas! Ora, com tudo isto, minha doce Esmeralda, o sol está quase a pôr-se e é hora d’ir buscar nosso amo que, como sempre, deve estar de pinguela, a dormir debaixo daquelas árvores.

João do Restelo, como sabe bem do que a casa gasta e que sempre haverá d’acabar o dia bêbado (pois, como dizem os fradinhos Jerónimos escarnefuchando dele, “assi seco como é beberá a torre da sé”), nunca me deixa preso para que eu o possa recolher ao sol-posto e levar a Belém, depois de haver retomado a carrocinha no Hospital de Todos-os-Santos.

Assim, dou aviso a Esmeralda para beber mais um pouco d’água que o caminho é longo e não haverá tempo de paragens. Partimos então a buscar nosso amo e vou carreando com mil cuidados a minha jumentinha, por entre os ajuntamentos e azáfama das gentes que desarmam suas tendas e recolhem os pertences a fim de volver a casa. Um cego tange o seu arrabil e bandos de cachopos, enquanto esperam a ordem de marcha, saltam ao eixo berrando en cantilena desatada: Tonho medronho /Cabeça de conho / Fita amarela/ Rabo de cadela. E as meninas respondem em coro, saltando à corda: Una, duna trêna, condena / Txaca barraca / Catxapiz catxapez / Conta bem que são dez”.

Ora ali jaz nosso amo, como sempre dormindo a bom dormir, soltando grandes silvos e roncos de bácoro regalado. Cães e gatos engalfinham-se pelos restos do apisto que derramaram no chão e o um fedor azedo deixa-me mareado. Sopro-lhe na cara e dou-lhe uns empuxões, ao de leve c’os focinhos, não vá ele despertar de má catadura. Abre os olhos a contragosto e diz tartameleando: “Já é chegada a hora, ‘Stalo? Ora sus, que se faz noute e inda temos d’ir ao Hosprital a ver da carroça! Andor, andor!”

Dicionário de Escritoras Portuguesas


Porque não o têm à venda, Senhores Livreiros?

Foi apresentado, durante o mês de Outubro e em vários locais e cidades, o Dicionário de Escritoras Portuguesas, organizado por Constância Lima Duarte, Conceição Flores e Zenóbia Collares Moreira, com a chancela da editora Mulheres, do Brasil.

Fui convidada para o lançamento desta obra na Casa Fernando Pessoa, a que não me foi possível assistir. Saudei com muitíssimo agrado esta obra pioneira e tão necessária para resgatar as escritoras portuguesas do limbo para onde são remetidas sistematicamente (com raríssimas excepções se compararmos com os escritores no masculino) pelos críticos e estudiosos (homens) que fazem os Dicionários e as Histórias de Literatura.

Sendo um trabalho original e de enorme interesse não só para os estudiosos e estudantes das escolas e universidades, mas também para o leitor em geral, tendo tido honras de apresentação nos canais televisivos, em muitos jornais e com milhares de entradas na Internet, julguei que poderia adquirir o Dicionário de Escritoras Portuguesas em qualquer livraria da nossa Lisboa. Engano meu!

Ando há um mês a percorrer as Fnac, Bertrand, Bulhosa e muitas outras livrarias, incluindo as universitárias. Nada! Não está nas listas...Nunca ouviram falar... Por outro lado vejo resmas dos mesmos livros e dos seus clones ou sequelas que, muitas vezes, não passam de um chorrilho de banalidades em mau português ou em péssimas traduções de banalíssimos autores estrangeiros; ou catadupas de lições de felicidade, sucesso e riqueza instantâneas. Que esmagam qualquer obra (das poucas) de qualidade que sempre vão aparecendo e nem se vêm.

Como este Dicionário! Não interessa aos livreiros portugueses. Porquê? Acham que não há "mercado" para tal obra? Ninguém estuda nesta terra? Seremos todos analfabetos? Terei de o comprar no Brasil? Mandar vir pela Net?

Já agora gostava de saber se faço parte dessas 2000 mulheres, apesar da minha marginalidade. Disseram-me que sim. Pelos vistos não vou ter oportunidade de o confirmar, para me narcisar. Que belo momento perdido!


Apresentação

"A publicação deste Dicionário de Escritoras Portuguesas concretiza um antigo projeto, que teve início em 1985. Nessa época, três professoras de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de Natal, decidiram, por própria conta e risco, e muito entusiasmo, investigar a autoria feminina na literatura portuguesa. O grupo era constituído de Constância Lima Duarte, Diva Cunha Pereira de Macedo e Zenóbia Collares Moreira. Depois, à medida que os anos passavam, por diferentes razões a investigação foi sendo interrompida: uma hora era a tese de doutoramento que afastava as pesquisadoras; em outra, o acúmulo de tarefas acadêmicas que as ocupava integralmente. Recentemente, nos demos conta de que o trabalho que nos havia mobilizado por tanto tempo, e preenchido tantas horas e viagens até de nossas férias, estava abandonado há anos. Também nos demos conta da carência de um trabalho que permita fazer um balanço da produção literária feminina portuguesa, e ofereça uma listagem exaustiva de nomes e de obras, para auxiliar os estudantes e demais estudiosos. E decidimos retomar a pesquisa com o grupo assim configurado: Constância, Zenóbia, e Conceição Flores, açoriana residente em Natal, no lugar de Diva Cunha, que no momento dedica-se ao doutorado e à própria poesia.

O dicionário é composto de cerca de duas mil entradas e abarca escritoras consagradas pelo público e pela crítica e outras cujo nome é apenas conhecido em pequenas vilas ou pelos familiares. Resgata escritoras com vasta produção e acolhimento junto ao público da época e caídas, hoje, no ostracismo; identifica pseudónimos através de verbetes remissivos; colige informações dispersas de tempos diferentes, congregando mulheres que ao longo dos séculos têm publicado ou deixado seus textos manuscritos e, posteriormente, redescobertos por investigadores/as. Os verbetes reúnem informações biográficas e bibliográficas, munindo o leitor de dados que, regra geral, ele não encontra agrupados, o que constituí um instrumental indispensável para alunos, professores, investigadores e todos aqueles que se interessam pela literatura escrita por mulheres". (in Club Literário do Porto)

Link para o Vídeo de apresentação na Sic

Memórias de Estalo - Capítulo X


O Malcozinhado

O lanço de escadas do Celeiro e da Alfândega, com aquela formosa colunata que se estende até ao mar, abrigam o grande mercado de pescado (o Açougue do Pescado do Concelho) e de doces. Todos os dias aqui vêm muitos peixeiros, hortelãos, confeiteiros, cortadores, padeiros e doceiros a vender o que trazem para alimento da cidade. Nosso amo está bem mais satisfeito, por já lhe ter dado pelas ventas o cheiro do Malcozinhado, um lugar de dez cabanas onde grande soma de homens e mulheres estão de contínuo, com braseiros de fogo, a assar sardinhas e peixe de toda a outra sorte, segundo os chincheiros e linheiros os pescam. Para aí nos leva ele, pressuroso, e nos deixa junto à praia: “Vê lá se me aprontas mais alguma, meu tinhoso, que te vendo na Ribeira hoje mesmo! E toma-me tento na burrica…”

Ah, disso não há mister dar-me aviso, qu’ Esmeralda protejo eu com minha vida e sem sermão encomendado! E lá vai João do Restelo a buscar lugar a uma mesa que já oiço seus brados pedindo de beber, salvado com muita festa de todos os comensais, que só os estrangeiros o não conhecem. Aí comem, à mistura, homens e mulheres, negros e negras, trabalhadores que ganham na Ribeira, estrangeiros que saem dos navios sem destino certo, também estudantes de pouco dinheiro e poetas, como aquele zarolho, ali, de cara repuxada pela cicatriz, que me conhece e me fala sempre com bondade. Ao que dizem, do muito que viajou e sofreu tudo escreveu em poemas qu’ inda hão-de espantar o mundo. Não sei se será verdade, que por ora anda sempre depenado, mas o certo é que me apraz muito ouvi-lo.

O Poeta acerca-se de mim com um sorriso. O sol da tarde, a descer sobre o mar, dá-lhe uma cor de cobre, como se duma medalha se tratasse: “Com que então, Estalo, um novo amor? Espero que não seja um amor louco: tu por ela e ela por outro! Mui graciosa, sem dúvida, tal como uma jumentinha de Presépio!” - e a mão fina e nervosa do poeta guerreiro afaga docemente o pescoço d’Esmeralda que cerra os olhos de prazer. Remexo-me inquieto, de coração apertado. Dizem que mesmo desfigurado o Poeta continua a encantar as fêmeas… “Desejo-te melhor sorte do que a minha, velho amigo. Acaso, serão as jumentitas mais fiéis do que as mulheres…”

Isto foi já dito para duas donas que passavam e riam, mirando o Poeta. A maior delas falou com sanha: “Que quer o Cara-sem-olhos? Melhor fora que se escondera!” A mão do Poeta ficou queda, um instante, no pescoço d’Esmeralda e o seu riso soou triste. Disse rijo para as damas que se afastavam:
“Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu,
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam:
Vendo-vos, olhos sobejam;
Não vos vendo, olhos não são.”

Elas, rindo, atiram-lhe de longe com um “Sois sempre o mesmo!”. O Poeta dá-me uma palmadita amiga no lombo e diz, amargo: “O mesmo, Estalo, ouviste?! Só por escárnio me podem dizer tal! Uma máscara de causar medo ou horror! Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha! Pois foi assi, meu amigo, num momento perdi a pena de voar e ganhei a pena do tormento… Mas nada de tristezas, meu bom Estalo, pois tu estás namorado, que é como se deve andar no mundo e eu vou beber uma canada à saúde dos vossos amores. Tomai de presente, um torrãozinho de açúcar desse Brasil que eu espero ver um dia!”
E, com a liberalidade de um príncipe, o pobre Poeta botou em nossas bocas um seixito branco da doçura dos deuses.

23/11/2010

Numa aula de escrita criativa


Na semana passada, a convite do jornalista e escritor José Couto Nogueira, fui a uma das suas aulas de Escrita Criativa para conversar com os seus alunos. É um privilégio estar com pessoas que gostam tanto de livros, têm tanto prazer na leitura e na escrita que se dispõem a frequentar um curso, depois do seu horário de trabalho, sacrificando o descanso, o jantar e o tempo da família, para se dedicarem a esse gosto da escrita, uns apenas por puro deleite do acto de escrever e de criar um texto seu, alguns com a ambição de se tornarem melhores escritores, outros apenas pela convivência com as obras literárias e os seus autores.

Não sei se lhes dei aquilo que esperavam; já não dou lições e só me atreveria a dá-las aos meus jovens alunos. Aos leitores adultos gosto de lhes contar histórias e falar-lhes dessa imensa paixão da escrita que foi desde sempre a essência do meu ser, a minha perdição e a minha salvação, tão necessária à minha vida como respirar. Quando falo com os leitores desnudo a alma por completo, eles vêem, então, mais de mim do que a minha família ou os meus amigos viram em muitos anos.

Gosto da partilha, da comunhão desta nossa Língua de Poetas, tão antiga e, por isso mesmo, tão rica, poderosa, dolorida e sábia. E da nossa memória colectiva, que contribuiu para fazer de mim o que sou hoje e para a transformação da poetisa que eu quis ser na escritora que sou de romance histórico.

Foi tão bom estar com esses amigos de leituras e escrevinhações! Melhor seria ainda se esse prazer foi recíproco. Porém, isso, só eles o poderão dizer.


Perdoem-me o atrevimento, queridos amigos (professor e alunos), mas não resisti a pôr aqui as vossas fotos, embora não vos tenha pedido prévia autorização. É a minha homenagem ao vosso trabalho.

22/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo IX

Para o Terreiro do Trigo

Pela Rua da Misericórdia da Porta do Terreiro iremos dar à Ribeira Velha e passamos agora pela Igreja e Casa da Misericórdia, construída ao mesmo tempo que o Mosteiro dos Jerónimos (onde hás-de viver mui feliz de ora em diante, asninha preciosa!), nos terrenos que El-Rei D. Manuel deu por troca aos Cavaleiros da Ordem de Cristo. Nesta obra laboraram arquitectos e escultores estrangeiros mui famosos. Tem um portal mui bem lavrado na sua fachada, a sul, com a Senhora da Misericórdia a estender o manto da Justiça por sobre ricos e pobres.
Da porta travessa tem aquela larga escaleira que desce até à praia. Por trás da Igreja, há dois recolhimentos d’órfãos, um hospital e casas de serviço para socorro d’enjeitados, presos e enfermos pobres, enterro de mortos desamparados e dotes para casar orphãs, tudo sustentado por esmolas de pessoas generosas e dádivas da Casa Real. Às quartas-feiras, sextas e Domingos, os irmãos fazem mesa e dão comida aos presos e necessitados. As procissões da Casa da Misericórdia são as mais belas e solenes de Lisboa.

Finalmente o Largo do Terreiro do Trigo! Encostado ao vestíbulo da Igreja da Misericórdia, no lado do nascente, está o Celeiro de Portugal que dá o nome ao Terreiro do Trigo, mandado fazer por El-Rei D. Manuel para agasalhar todo o pão de que há mister a cidade e mais o termo, dar franquia a quem o traz de fora do Rei no e aliviar o povo quando há fome. É mui famosa edifício, composto por dous lanços de casas que tem 24 braças de comprido e 62palmos de largo, com 32 arcos de pedraria por banda e entre cada arco tem uma loja que leva 50 moios de trigo.

As 48 lojas formam duas ruas abobadadas e ladrilhadas, tendo ao centro um pátio liso e estreito. Nele se encosta o assento da Alfândega Nova (onde se arrecadam os direitos das mercadorias), estendendo-se até à beirinha do mar, todo feito em pedra escorada com grandes estacas espetadas a maço no mar, fazendo espanto a quem o vê.

Já te vês perdida, formosa Esmeralda? não tardarás em saber o caminho, que to hei-de mostrar outras muitas vezes, que aqui vimos sempre nos dias de fazer a mercar todo o fato de que hão mister os nossos fradinhos Jerónimos. Não te quero enfadar, minha frol, com esta aravia, porém levo já tanto ano a sós comigo que já nem sei falar a uma asninha assi moça e çucarenta como tu… Gostas?! Que te conte mais?! Hufá!!!

20/11/2010

O que dizem os meus Leitores

Sobre O Espião de D. João II

"Este livro traz-nos a história do fabuloso Pêro da Covilhã, uma personagem do renascimento português que, pelos vistos, foi muito mais importante para a nossa história do que se pudesse pensar à primeira vista.
Não é por acaso que o seu nome é desconhecido da maior parte das pessoas uma vez que ele foi um espião secreto de D. João II.
Este livro representou para mim uma série de descobertas extraordinárias e foi uma verdadeira caixinha de surpresas que, confesso, adorei.
A ideia que tenho da espionagem é a moderna que os filmes nos transmite, ao pensar em
espionagem à centenas de anos pensei que esta fosse feita por pessoas com um ar minimamente discreto (para se poderem misturar com a multidão) e o que o fariam apenas por dinheiro traindo muitas vezes o seu próprio patrono.
Ora nada podia estar mais longe da verdade relativamente a Pêro da Covilhã (ou para qualquer outro dos nomes que tenha usado) que era um homem de uma grande inteligência e cultura que nos faz lembrar algumas das mentes mais brilhantes do Renascimento, tão grandes são os seus talentos e que ao ler a sua história trazida à luz do dia graças a esta fantástica autora e ao seu rigoroso trabalho de pesquisa histórica, não nos deixa dúvidas que foi uma das mentes mais brilhantes do Renascimento português.
Não nos surpreende apenas sua boa memória ou facilidade com que aprende línguas ou muda de identidade, mas pela sua extrema fidelidade e lealdade não apenas ao seu patrono, como aos seus amigos que nos surpreende por ser extramente rara nos espiões da época.
Com este fabuloso espião somos levados a viajar por diferentes países e culturas, que não o suprendem apenas ele, mas ao próprio leitor sendo por vezes difícil mesmo acreditar na veracidade de certos factos relatos sobre ele.
Um livro delicioso, que nos proporciona uma viagem, no tempo e no espaço ao sabor de uma escrita cuidada e requintada.
Joana Dias (Páginas com Memória)16/11/2010

"Ofereci este livro à minha mãe, depois de ter conhecido a autora na Feira do livro do porto, e espero em breve lê-lo pois parece bastante interessante e o pouco que li, gostei".
Ana C. Nunes 17/11/2010

Sobre O Romance da Bíblia

"Quando tive oportunidade de conhecer e falar com a autora d'O Romance da Bíblia, fiquei com imensa curiosidade em descobrir a sua obra. E ainda bem que decidi ler este livro!
Trata-se de uma narrativa na qual desfilam as personagens mais conhecidas (e outras nem tanto) do Antigo Testamento, sempre descritas com traços de ironia e humor negro.As personalidades masculinas apresentam-se-nos fatalmente humanas e manipuláveis pelas femininas que, tendo em conta as circunstâncias que lhes são oferecidas, tentam guiar o curso da história.Esta é uma história que não tem um carácter puramente ficcional, atingindo-nos a violência, a sexualidade e a maldade por vezes descritas, levando-nos a reflectir uma vez mais sobre o papel da mulher ao longo da História.
Gostei!"
Patrícia Pereira (Segredo dos Livros) 19/11/2010

19/11/2010

Tigelada do Alvaiade (Castelo Branco)

Para os que gostam da doçaria antiga da nossa terra, uma receita de Tigelada, do cardápio da minha sogra Maria Fernandes Pires, uma cozinheira-de-mão-cheia, da airosa aldeia de Alvaiade, Vila Velha de Ródão. O nome deste doce deve-se a ser feito nessas grandes tigelas de barro, típicas da região.

Tigelada (2)

1 litro de Leite;
8 ovos;
2 c. de sopa (rasas) de farinha de trigo;
8 c. de sopa de açúcar;
Sal, canela e raspa de casca de limão.

Aquece-se bem o forno e duas tigelas (de cerca de 23 cm de diâmetro por 7 cm de fundo.
Bate-se os ovos inteiros com a farinha, o açúcar, o sal e a canela. Depois de bem batido, vai-se adicionando o leite, batendo sempre.
Deita-se a massa em duas tigelas que têm de estar bem quentes (a massa deve "fervilhar" em contacto com o barro). Vai a cozer em forno quente até tomar cor vermelha. Baixa-se a temperatura e coze cerca de 1 hora. Servem-se frias.

Nota: As da foto ainda estavam quentes, acabadinhas de fazer pela minha querida colaboradora Ana Maria Pereira Gonçalves.

15/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VIII

A Caminho da Ribeira

"- Chamas-te Esmeralda, minha asninha de Belém?! Hui, pudera eu ser o teu burrico de Jericó, ó preciosa, e não haveria sendeiro mais feliz neste mundo! - Atardo o passo para que me acompanhe sem fadiga e ela arreganha-me os beiços num sorriso que me faz arrepios na espinhela: - Nem a jumentinha da fuga para o Egipto foi mais generosa do que tu, minha flor, nem mais merecedora de Presépio. não entendes o que te digo, minha bela? Que nunca ouviste um burro falar tais cousas? Perdoa-me, formosa, que isto d’ estar sempre com os fradinhos já m’ amoldou o pensar e o sentir à sua guisa. Ah, gostas que te fale assi? Pardeos, eu cuido sonhar…".

Mal escuto nosso amo resmoneando em voz lastimeira: - Guai! Se não foras tão garanhão, estaria eu est’hora na Mancebia[1] ou em casa da Preta da Mina, à Porta Nova, havendo muito prazer, de refestela com uma bela mocetona cheirando a benjoim! Agora só na Ribeira Velha, onde são mais feias e custam o mesmo, sem falar nos rufiões delas sempre prestes a armar requesta[2] ! Of’reço-te companha para o Inverno e assi me pagas tu, meu tratante!

E de acinte ferra-me com as biqueiras dos borzeguins na pança, mas eu nem faço caso, todo aceso a descrever à minha Esmeralda os tesouros de Lisboa que ela vê por vez primeira, com olhos de rasgado assombro. Não é çafea[3], muito pelo contrário, bem pertelhoa me parece, porém nunca té hoje havia botado as çapatas fora da quinta de seus donos e tudo parece encantá-la e assustá-la.

Damos uma espreitadela à Rua Nova d’El-Rei, cheia de ourives d’ouro e prata, onde não nos deixam passar com medo dos tabuleiros de jóias preciosas que têm às portas e cruzamos a Rua Nova dos Mercadores, de 130 braças de comprido e 4 de largo, tendo de uma e outra banda 45 moradas, de casas de 3 e 4 sobrados e ricas lojas e tendas com mercancias de todas as partes do Mundo: panos, caixeria (com todas as sortes de sedas) e marçarias; 11 livreiros, 9 boticas, 60 sirgueiros e muitos mercadores de sobrado que vivem no alto das lojas e são os mais abastados.

Porém, no Arco dos Barretes, finco os cascos no chão e, ateimando com meu amo, viro para o Pelourinho Velho, livrando Esmeralda da Rua da Confeitaria, para que a não piquem as moscas e abelhas que ali tudo enxameiam, pela grande fartura de doces e bolos feitos com os finos açúcares do Brasil e da Madeira.

Ao Pelourinho Velho, sempre com muita gente, vem dar a rua Nova dos Ferros ou dos Mercadores, a do Aver-do-Peso (com a Casa do Conselho para vigiar os instrumentos de medir e de pesar dos mercadores, para estes não fazerem burla), as dos Ourives da Prata, de Julianes, da Fancaria e do Inferno, com o seu Beco do Espera-me Rapaz.

Há no Pelourinho Velho, e posto que o Natal se acerca, também muitas mulheres com suas mesas de mantéus mui alvos, cobertos de gergelim, pinhoada, nogada, marmelada, laranjada, cidrada e fartéis[4], bem como toda outra sorte e maneira de conservas, capazes de fazer salivar até a quem não é lambaz[5]. Outrosim, sendo a praça um chão de venda em almoeda[6], aqui se vendem com pregão móveis, panos de linho, ouro e prata.

- Se dão ali pregão dos homens negros como se de bestas se tratara? Si, Esmeralda, também se vendem muitos homens para escravos, os quais estão agora mui caros, o que mete medo a toda esta gente, pois em Portugal ninguém quer fazer nada e não há miserável que não tenha um escravo ou escrava a trabalhar para ele.

Neste Largo, como no Rossio, há sempre 10 escrivães com suas mesas a escrever cartas e petições a quem lhas pede e nunca estão vagos, ganhando cerca de 200 rs. ao dia, isto segundo fala sempre nosso amo que os inveja muito.


Notas da Autora

A primeira imagem mosta uma panorâmica da Ribeira; a segunda é a Rua Nova dos Mercadores, a mais cosmopolita da Lisboa do Século XVI.
[1] Bordéis, nas traseiras dos Estáus.
[2] Zaragata.
[3] Ignorante, grosseira.
[4] Bolos de açúcar e amêndoas.
[5] Guloso.
[6] Venda pública; em leilão.

Eu, pecadora, me confesso

Testemunho de Bárbara Wong, jornalista do "Público"

Pergunto-me muitas vezes como é que é possível um professor não ter o controlo da sala de aula. Como é que é possível? Se fosse eu... A minha experiência com crianças e na qualidade de "professora" é diminuta e feita em circunstâncias muito especiais, de maneira que me parece que se eu consigo, qualquer pessoa consegue! Muito enganada. Há dias lia sobre uma professora de uma determinada escola de Lisboa que desistiu de dar aulas quando um aluno se dirigiu a ela e espetou um murro com imensa força contra o quadro, mesmo ao lado da sua cabeça. Nem de propósito, nesse mesmo dia passei à porta dessa escola e vivi uma situação que me recordou a docente, a diferença é que os murros foram dados no meu carro e eu estava dentro dele.Os miúdos vinham descontraidamente no meio da estrada, com dois passeios vazios, de um lado e do outro e eles calmamente, vagarosamente, e eu, de frente para eles, cautelosa não fosse atropelar algum porque nenhum se desviava. Com o desafio nos olhos e a boca num meio sorriso lá vinham eles na minha direcção e eu já com o carro completamente parado, à espera que passassem de uma vez. Eram uma dezena, todos rapazes, alguns pequenotes, mas a maioria enormes.Eis que, quando passam começam a bater no capot e nos vidros, imediatamente apito-lhes e começo a andar, com cautela para não os atropelar, mas o meu cérebro envia-me mensagens diferentes: de um lado diz-me "calma, Bárbara, calma, eles são maiores do que tu mas são menores, não atropeles nenhum"; do outro a indignação verbalizada com uns "estúpidos, não têm educação, não merecem nada, não percebem nada, não se ajudam a si próprios e depois espantam-se quando tomamos a parte pelo todo e chamam-nos racistas e sentem-se vítimas da sociedade, idiotas", ok, mentalmente também os mandei para uns sítios impróprios.Mais à frente, um grupo de miúdas, com o mesmo desafio no rosto. Há uma que dança no meio da estrada, virada de costas para o carro, rodopiando e rindo, outra que espeta a perna em direcção ao veículo, desvio-me como posso, não lhes toco. "Anormais", murmuro entre dentes, com as janelas fechadas e um calor de morrer.E voltei a lembrar-me da professora daquela escola, dos professores que aturam estes miúdos diariamente. Dos que têm sorte ou jeito e conseguem estabelecer pontes com eles; dos que passam mais de metade da aula a tentar sentá-los e acalmá-los, dos que têm esperança de contribuir para a diferença, dos que já entregaram as armas e só querem que o dia acabe, dos que também se passam e agridem os alunos. Tento pôr-me no lugar destes professores, não consigo.Em muitos destes casos, os professores perderam, a escola perdeu, a sociedade perdeu. Os miúdos são os que mais perderam mas não sabem, nem querem saber. O que fazer com eles?

(A crónica foi-me enviada por e-mail pelo amigo Fernando Couto e Santos)

09/11/2010

Desafio ao Leitor das "Memórias de Estalo"

Obrigada aos que participaram na minha brincadeira e adivinharam a identidade do Estalo e a sua qualidade asinina. Já convidei no Facebook e gostaria de renovar aqui esse convite aos que acertaram e que estejam perto de Lisboa, para virem tomar um chá ou um "Porto" em minha casa, em dia que servisse a todos.

Deixo-vos aqui outro desafio:

No Capítulo X, Estalo vai encontrar um poeta que costumava frequentar o Malcozinhado.

- O que era o Malcozinhado? (É referido no "Navegador da Passagem" e no "Espião de D. João II").

- Quem é o poeta? (Também é personagem do "D. Sebastião e o Vidente")

Fico à espera das vossas respostas.
Um grande abraço.

08/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VII

Zacapela no Rossio

Hui! Como João do Restelo vem em boa companha! Que fêmeazinha de estalo traz ele consigo, capaz de fazer perder o siso ao mais sisudo! Um longo pescoço, delicado e nervoso, com gentil e formosa cabeça de finas orelhas móvedas[1]. E aqueles olhos negros?! Só de judia ou moura encantada, assi grandes e misteriosos, bordeados de pestanas assedadas[2] e bastas! Formas airosas e cheias, de músculos ágeis a aperceberem-se sob uma pele firme e macia. E, por minha fé, pese embora os anos que já cá cantam, que nunca vi pernas mais guapas (como dizem os meus amigos galegos)! Delgadas, das sapatas té aos joelhos de ossinhos delicados e salientes quanto baste, cobertos de um pelinho ruço e aveludado como o terciopelo da opa de um fidalgo, a terminar numas soberbas pospernas[3], de fazer perder o tino a um velho sábio, quanto mais a mi, que não passo dum pobre diabo, um bestigo de d’almocreve de convento!

E aqui confesso-me asno chapado, azémola sem tento nem talante, pois que, sem me poder suster, de cabeça perdida e todo aceso de paixão, solto os mais vibrantes e alongados zurros jamais ouvidos em toda a historia do Rossio! Com o ímpeto e a força do som, as minhas pernas traseiras parecem remoçar e lanço-as para trás e para os lados, em saltos de gigante ou de louco, botando a fugir tresmontadas[4] e com grande grita as gentes que por ali se achavam: “O fideputa do burro ensandeceu!”, “Deitai-lhe a mão ou inda acaece desgraça!”, “Ave Maria, que o bicho raivou!”.

Um mancebelhão arreeiro arremete com valentia: “Uxte, uxte, sendeiro! Uxtix[5], burrico!” e, por má sina minha, solta uns sonoros estalidos de língua, qu’inda me são de mor acinte. Quiçá por isso me hajam dado o nome de Estalo, pois se adrego ouvir o estralejar de uns dedos, língua ou chibata, toma-me logo um formigueiro nas pernas, uma coceira nas mãos, que me deixam com ânsias de ginete em picadeiro que só assossega depois de corrida desatada! Ai, se meu amo não m’acode…

Sinto as mãos de João do Restelo no meu pescoço e a sua voz amiga acalmando-me: “Então, Estalo, assossega! Que bicho te mordeu, home, para t’amostrares assi tavanés[6]e armando uma tal zacapela[7]?” Aquieto-me, por fim, tremendo e resfolgando, como tomado de quartãs, enquanto meu amo m’alimpa o suor com um trapo e as gentes, recobradas do susto, m’empipinam[8] sem dó nem piedade: “Abrenúncio, tiozinho, qu’o sendeiro é perigoso!”; “Foi o cheiro da burrica, meu bestigo, que te fez entortegar[9]?” lança o azemel[10] numa risota despegada e uma velha grita inda toda abrasiada: “Tomai tento no bicho, que é fagueiro[11], não arme ele mais escândola!” Meu amo vai pondo água na fervura: “Também não há razão para tamanho alvoroto, dona, que o bicho não quebrou nada…”, e logo, de um salto, se escarrancha nos meus lombos (pois que a carrocinha ficou no Hospital) e, prendendo pelo baracinho a preciosa e assustada burrinha ao meu atafal, arrasta-nos dali para fora, a bom trote, caminho da Ribeira.

Empachado[12]e cheio de merencória[13], mal atino com as ruas pejadas de gente, fazendo seus tratos e parando para ver as foliadas dos ranchos que cantam e dançam, sem que os moleste a lama mal cheirosa que tudo cobre, onde as minhas çapatas se enterram té aos artelhos, fazendo-me escorregar e sacudir a meu amo que me cobre de maldições, ao mesmo tempo que vigia e anima a Rucinha: “Chax, Esmeralda! Uxte, menina!” E ela, assustada com o arroído, vem colar-se à minha posperna, acendendo-me de paixão.


Notas da Autora:
A primeira ilustração do almocreve com o burro parece banda desenhada, mas é uma ilustração de um livro do Século XV.

[1] Móveis.
[2] Macias como seda.
[3] Parte superior das pernas de um animal.
[4] Tresmalhadas.
[5] Uxte e uxtix – termos onomatopeicos usados pelos arrieiros de Gil Vicente para os burros.
[6] Turbulento, doidivanas.
[7] Contenda com ruído, barulho.
[8] Vexar com ditos.
[9] Torcer com violência.
[10] O que guia azémolas, almocreve.
[11] Traiçoeiro.
[12] Embaraçado.
[13] Melancolia, tristeza.

07/11/2010

A Sociedade da Língua Portuguesa vai ser exterminada?

Embora tenha havido recuos da ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, nos cortes previstos para o sector da Cultura, a prestigiada Sociedade da Língua Portuguesa vai deixar de receber o subsídio do Estado imprescidível para a sua existência:
«Apesar de contar com 61 anos de actividade, os apoios à SLP têm vindo a ser reduzidos. E se há 10 anos o instituto recebia 1500 euros por mês, o subsídio de 2009 ficou-se por um total de 2500 euros, além do apoio concedido ao Prémio Internacional de Linguística Lindley Cintra. "Temos três mil euros mensais de despesas fixas", queixa-se Elsa Rodrigues dos Santos. A única fonte de receita da SLP é a quota dos associados, que rondam os 33 mil euros anuais. "Só que o número de sócios é cada vez menor, sobretudo porque perdemos a nossa biblioteca", sublinha. A SLP tem um espólio de mais de 20 mil títulos, que estão encaixotados na cave da Academia das Ciências de Lisboa, porque "as actuais instalações são velhas e não permitem recebê-los", lamenta a presidente. Para fazer face às dificuldades, a SLP vai concorrer, pela primeira vez, a fundos comunitários.» (Jornal I - 3/08/2010).

Fundada em 14 de Novembro de 1949, a Sociedade da Língua Portuguesa (SLP) nasce vocacionada para a investigação, difusão e defesa da Língua Portuguesa. Em 1979, passa a Instituição de Utilidade Pública e, em 1982, a Membro Honorário da Ordem do Infante Dom Henrique. Em 2009 festejou o seu 60º aniversário de uma vida de intensa actividade na promoção e defesa da Língua Portuguesa, tão maltratada e desrespeitada pelos seus falantes, nomeadamente os que teriam por obrigação defendê-la.

A SLP afirma-se pelo modo continuado qualitativo como desenvolve o seu trabalho. As suas actividades são diárias e abarcam não só a área específica da língua portuguesa como outras da cultura. Citam-se os seus três programas fixos:
- Ciclos de palestras às 3.as feiras, o Curso Anual de Língua Portuguesa para Estrangeiros, o Curso de Verão de Língua Portuguesa para Estrangeiros (Agosto), e ainda, em horário pós-laboral, Oficina de Escrita, Árabe, Expressão Dramática, Inglês, Francês e Alemão.
- Com o Ciberdúvidas na Internet dá resposta a milhares de perguntas vindas de Portugal e das várias partes do mundo.
- Tem ainda um programa semanal na RDP Internacional, repetido 5 vezes por semana, intitulado Falar Português onde, para além de uma crónica de gramática ou de língua portuguesa, se fala de livros.
- Publica a revista anual Língua e Cultura e tem um boletim trimestral com uma tiragem de 1500 exemplares que os sócios da SLP recebem gratuitamente e chega a todos os concelhos do país.
- Atribuição de três prémios internacionais: Grande Prémio Internacional de Linguística Lindley Cintra, Prémio Internacional de Tradução e Prémio da Crónica João Carreira Bom / SLP.

A SPL está há décadas à espera que lhe dêem um espaço adequado às suas necessidades, como lhe foi prometido, quando foi forçada a deixar as instalações degradadas da sua velha sede.
Agora o Estado, além de lhe cortar o subsídio, quer expulsá-la do edifício em que está, sem lhe dar qualquer alternativa, o que resultará na extinção desta tão prestigiada e útil Instituição.

Com os políticos incultos e medíocres que temos, este país cada vez se afunda mais na ignorância e na boçalidade, mascaradas por um leve verniz cultural (ou já nem isso!), de pura fachada, "para a UE ver", com uma gestão de dinheiros públicos incompetente e quase sempre incompreensível.
A morte desta nobre Sociedade da Língua Portuguesa-Instituto de Cultura, é um crime e uma vergonha, porque é castigar que trabalha bem e esforçadamente, dignificando Portugal e os Portugueses.

Quem quiser saber mais sobre esta instituição, consulte a Página da SPL

01/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VI


Feira no Rossio

Junto ao chafariz do Rossio, onde meu amo me deixou, enquanto mastigo consolado a comidinha saborosa, não perco nada do que se passa na Feira da vastíssima Praça. Aqui mesmo ao lado, grande soma de mulheres, vindas dos montes, vendem em suas bancas pães-de-ló, queijinhos frescos, requeijão e marmelada. Além, sapateiros, aljabebes[1] e carapuceiros gritam suas mercancias, lado a lado com ferro-velhos e batefolhas[2] a amostrar os seus caldeiros, bacias, castiçais, almofarizes e muitas outras cousas d’arame, latão e cobre. A seguir, as tendeiras de louça de barro disputam o seu lugar aos cesteiros com suas gigas e cestos para vindima e apanha da azeitona. Mais ao sul são os mercados das especiarias, das bestas e dos escravos.


No alpendre do Hospital, as tendinhas de vestimentas e enfeites são de maior luxo, com fanqueiras e mercadores que vendem linhos, veludos e brocados de Flandres, Paris e Veneza, sedas da China e finos panos de desvairadas cores, da Índia; jóias e plumas para as donas e donzelas fidalgas que não desdenham de os vir mercar a esta Feira. Muitas compram aos passarinheiros aves raras, de lindas penas que falam como homens ou cantam como anjos (isto dizem os fradinhos Jerónimos que eu nunca ouvi um anjo, nem sei que cousa é!).


Pedintes de ofício, mostrando suas chagas e pedindo esmola “per mor de Deos”; mariolas[3] à cata de serviço, lançando chufas[4] às moças; ranchos de ciganos fazendo seus jogos, danças e cantares; pregões sem conto das mais desvairadas e estranhas cousas que a memória não alcança, fazem uma tal zoeira que não há quem se possa entender. Alguns, por demais ociosos ou descontentes da vida e da corte, foram escrevendo suas queixas, acusações e aleivosias pelas paredes do Hospital, que são bastas e branquinhas. Enfim, já se sabe: paredes caiadas… papel de loucos! Loucos ou estudantes que é a mesma cousa e não lhes serve d’emenda as cargas de pancadaria que lhes dão os beleguins e soldados, se adregam caçá-los.


Aqui, deste lado do chafariz onde faz menos ruído, a escritura é outra e arrecebe sua paga. Sentados a umas mesinhas d’armar, há uns homens que ganham dinheiro por pena, escrevendo ofícios, petições, louvores, cartas, mensagens d’amores e versos, tudo aquilo de que as gentes hão mister e lhes vêm ditar e que tantas vezes me tem causado muita risa e outras muito dó, segundo a cor de suas histórias. Aqui, se fazem por escrito tratos de compras e vendas, préstimos de dinheiro ou pagamentos de dívidas e grossas bolsas de moedas d’ ouro ou pedraria mudam de mãos a cada instante, acabando por vezes na sacola d’algum ladrãozeco, com o lídimo[5] dono a bradar, alpavardo[6], “A que d’el-rei”.


Gentes de muitos mundos e de um sem conto de raças, em seus raros trajos e estranhas aravias[7] que só com os línguas[8] se podem entender, causam susto e espanto aos bufarinheiros e almocreves pouco avezados[9] a tais usos e costumes, fazendo muitas vezes fugir as mulheres, desatinadas e em grande grita. Uma cidade sem par, se não fossem os seus maus cheiros e as danadas moscas e moscardos que me entram pela boca e pelas ventas, me atanazam a vida e me hão-de ensandecer. Sacudo-me raivoso e eis que afemenço meu amo…




[1] Ou algibebes, que vendem roupas feitas e baratas. [2] Bate-chapas. [3] Moços de fretes. [4] Piadas, graçolas. [5] Legítimo. [6] Aparvalhado. [7] Línguas árabes, mas também línguas incompreensíveis, desconhecidas. [8] Intérprete. [9] Acostumados.

31/10/2010

Made in Portugal ou Produto Estrangeiro?

Caros amigos, estamos todos cansados de ouvir falar na nossa desastrosa economia, que Portugal não produz, importando muito mais do que exporta, que os portugueses gastam mais do que ganham, que o investimento e a iniciativa são baixos e o desemprego alto, que não somos competitivos, etc.

Os políticos são em grande parte culpados deste estado da nação, a crise mundial também... todos sabemos isso. E nós, os cidadãos comuns, estaremos isentos de pecado?
Os produtos e marcas portuguesas são quase sempre preteridos em relação às marcas estrangeiras, mesmo quando são de melhor qualidade, quer nos materiais quer na execução. Temo que isso seja fruto do síndrome, muito nosso, de mostrar desprezo por tudo o que é nacional e babar-se por tudo o que vem de fora, por mais "bacoco" que seja. Só se tem valor "cá dentro", depois de se vencer e ser conhecido "lá fora".
Por alguma razão os nossos criadores de sapatos têm de lançar as suas marcas de óptima qualidade, com nomes ingleses, italianos, franceses... para se venderem entre nós.

Este texto vem a propósito de um artigo que vi numa dessas revistas sobre televisão que acompanham os jornais, que passo a citar. Uma apresentadora de TV, chamada Júlia Pinheiro, "só veste criações de estilistas famosos", como Valentino, Cavalli, Armani e Gucci que "custam uma fortuna" - entre 1300 e 3000 euros -, que ela escolhe e a cadeia televisiva compra para as suas actuações e que ficam a pertencer ao guarda-roupa do dito canal. E, quanto a sapatos só Stivalli (cujo custo equivale ao dos vestidos). Nada a argumentar, trata-se de uma empresa privada, livre de gastar o seu dinheiro como quiser.

O que me pareceu ridículo e me trouxe a falar do assunto, foi a manifestação dessa espécie de novo-riquismo deslumbrado, contida na justificação da autora do artigo - "a escolha de estilistas de gabarito internacional não acontece por acaso" - e na frase lapidar de Júlia Pinheiro:
"Não encontro em Portugal alguém que tenha olho para me vestir".

Achei esta afirmação espantosa. E extremamente ofensiva para os talentosos estilistas portugueses que temos actualmente no mundo da Moda e são reconhecidos "lá fora", alguns com lojas nas grandes capitais e exposição de peças no MUDE. São aplaudidíssimos em New York, Paris ou em Milão os desfiles de Ana Salazar, Fátima Lopes, de José António Tenente, Pedro Pedro, Buchinho ou Nuno Gama (que me perdoem os que não cito e são igualmente bons). Bom gosto, sofisticação, elegância, materiais de qualidade, acabamentos perfeitíssimos (tenho peças de Ana Salazar que são prova do que afirmo).
E as criações dos nossos estilistas já surgem nos shows internacionais dos Óscares e outros. Contudo, nenhum deles serve para vestir Júlia Pinheiro ou para os "reality shows" de requintada elegância da TVI. Só de Armani para cima...

Faço-vos um apelo, queridos leitores: Quando pensarem nas prendas de Natal, se quiserem oferecer aos famíliares e amigos outra coisa que não seja livros (tenho de puxar a brasa à minha sardinha!), lembrem-se das peças de cortiça da Pelcor (lindíssimas e originais em que a cortiça parece veludo, já tem loja na Baixa lisboeta); ou da Casa das Peles (das malas, cintos e carteiras aos coletes e casacos de cabedal e peles, loja na Praça do Campo Pequeno); os vidros do Depósito da Marinha Grande ou a rústica cerâmica da Fábrica de Bordalo Pinheiro; a Vista Alegre; a Atlantis, a SPAL ou a Fábrica Jasmim com a delicadeza colorida dos seus copos.
E tantos e tantos outros...

Vamos comprar português (ou para soar mais "in" - made in Portugal)?

30/10/2010

o Outono visto pela janela, in "a verdade dói e pode estar errada"

Recebi esta notícia que o poeta João Negreiros me enviou pelo Facebook, a qual não posso deixar de partilhar com os meus leitores, sobretudo os que não conheçam este talentoso mágico das palavras, que é também um belíssimo intérprete da sua poesia. É bom ver reconhecido, a nível internacional, o valor dos nossos escritores. Não deixem de ver este vídeo, por favor.

A Mensagem do Poeta:

Há poucos dias recebi uma notícia fantástica. O vídeo “o Outono visto pela janela”, um dos poemas que faz parte do meu livro galardoado com o Prémio Nuno Júdice, foi seleccionado entre os 10 melhores por um júri de um festival internacional de poesia em vídeo, tendo ficado em 6º lugar na votação on-line. Foi fantástico! Nunca pensei que isso pudesse acontecer, pela simples razão de eu estar muito limitado do ponto de vista financeiro para produzir os vídeos. No entanto, contei com a preciosa ajuda do cineasta chileno Pedro Juan Alvarez. Talvez por isso, possa ter dado ao trabalho uma mais-valia estética que eu ainda não tinha almejado. Partilho esta notícia, porque acho que as coisas boas devem ser sempre partilhadas com quem nos apoia e nos dá ânimo. Não tinha pretensões de ganhar, mas visto que era o único português em prova, acho representei a literatura portuguesa da melhor maneira possível e, com a vossa ajuda, obtive uma percentagem de votos honrosa.

Deixo-vos o link para assistirem ao vídeo com melhor qualidade e para poderem partilhar com outros amigos.http://www.facebook.com/l/05dd5ab5CjsX1WHdjOTDPVR1GfA;www.youtube.com/joaonegreiros#p/a/u/0/UQ8H2e0I79UMais uma vez obrigado por tudo! Grande abraço,

João Negreiros

Para adquirir o livro - http://www.facebook.com/l/05dd5YSmf1qfGr2_D41DH4iisZQ;www.saidadeemergencia.com/index.php?page=Books.BookView&book_id=535&genre=

Parabéns, João Negreiros!