25/09/2015

No Rasto de Fernão Mendes Pinto - VII

Crónica Sétima: Uma escola num povoado de Myanmar

 Perdido o rasto de Fernão Mendes Pinto e dos portugueses aqui chegados no seu tempo e mesmo dos que vieram depois, como Sebastião Manrique, esmagados pela chuva torrencial da monção, alguns da desbaratada embaixada foram refugiar-se no alpendre de uma escola que mais parecia um armazém de mercadorias, mas de onde saía um coro de vozes de anjos, que me fizeram esquecer a desilusão das ruínas inexistentes e as vestes e corpo molhados até aos ossos.
  Espreitei pela abertura que servia de janela e vi mais de uma centena de crianças, meninos e meninas, sentados em filas de bancos, separados segundo as classes e idades, com diferentes professores, que prosseguiam com as suas lições, indiferentes ao enorme alvoroço que a presença de tantos estrangeiros causava aos seus alunos. Viram-me a espreitá-los e a debuxar a cena para futura memória e sorriram-me e acenaram-me, enquanto   a professora escrevia no quadro frases que pareciam todas feitas só de ós:
Sample text in Burmese (Article 1 of the Universal Declaration of Human Rights)

Não resisti e, chegando-me à porta, fiz uma súplica muda à professora, juntando as mãos ao modo da terra, para que me deixasse entrar para lhe falar. Conversámos por gestos pois ela não conhecia nenhuma das línguas que eu sabia, mas consegui dizer-lhe de onde vinha, que também era professor. Gesticulou informando-me de que tinha aquela classe dos mais pequenos e pouco mais. Desejámos-nos sorte e agradeci-lhe, juntando as mãos diante do peito e curvando-me. 
 
Virei-me para as dezenas de pequenitos  - que, boquiabertos, mantinham os seus belos olhos amendoados fixos em mim,  sem dizerem uma palavra - e saudei-os do mesmo modo que fizera à professora, curvando-me de mãos postas a agradecer.
 
Não se moveram, varados de espanto. Ouvi a professora, atrás de mim, falar com uma ponta de severidade. De imediato, todo o conjunto dos quarenta alunos se curvou na minha frente, unindo as mãos numa carinhosa despedida.
Já não fizeram nada, enquanto não partimos, pois os professores preferiram dar-lhes uma folga momentânea. Vieram ter comigo e rodearam-me, dando-me um papel e pediram-me para escrever na minha língua. Disse-lhes o meu nome repetidamente e escrevi-o no paopel, que desapareceu num engalfinhamento de braços pela  sua posse.
Despediram-se de nós com entusiásticos adeuses. Foi um dos melhores momentos da minha viagem.

21/09/2015

No Rasto de Fernão Mendes Pinto - VI


Crónica Sexta: De como os pegus e os siões usam cascavéis nas suas naturas

                – Elefantes iguais podem enganar (tâmil)
ou Com papas e bolos se enganam os tolos (português)
 
O estrangeiro recém-chegado disse:
– Nós gostaríamos de nos estabelecer aqui para fazer tratos.
Ao que o rei de Pegu respondeu:
– Eu tenho muitos inimigos. Os Shans atacam-nos constantemente. Se combaterdes ao nosso lado, para derrotar o inimigo, eu darei permissão para vos estabelecerdes aqui.
[Quando os Shans atacaram Pegu os portugueses combateram com as suas armas e artilharia, fazendo o inimigo bater em retirada]. Então, o capitão português fez  um pedido a el-rei:– Dai-nos apenas um pedaço de terra que uma pele de búfalo possa abarcar que com ela nos satisfaremos.
O rei de Pegu deu-lhes permissão para tomarem o terreno que pediam. O capitão mandou cortar a pele em tiras finíssimas [e liga-las umas às outras como uma corda], de modo a poder cercar um extenso território no Sirião.
 
– As casas que ficam no terreno circundado pela corda têm de ser desmanteladas e transferidas – ordenou aos moradores. –  Este lugar pertence ao território que el-rei nos concedeu.
Os desalojados bradaram contra a expulsão:
– Os Portugueses prometeram tomar um terreno do tamanho de uma pele de búfalo, mas cortando-a em tiras finas tomaram muitas terras!
O rei de Pegu respondeu-lhes:
– Nós prometemos dar aos Portugueses um pedaço de terra medida pela pele de um búfalo. Eles procederam com sabedoria, não há nada a dizer da sua conduta. Estes homens ajudaram os nossos guerreiros a combater o inimigo e concertámos com eles uma paz duradoura. Deixemos que se estabeleçam e construam a sua cidade.
 (Da crónica bramaa Potugui Yazawin)
Quando queriam fazer um juramente solene, os naturais punham-se de pé, levantavam a ponta do pano da parte direita, e descobrindo-se até meia coxa, punham a mão sobre a imagem de um ídolo que tinham gravada na pele, segundo a sua seita, confirmando com este gesto o que haviam dito. Faziam esta sorte de juramentos raras vezes e só quando era muito necessário. Assim juram várias nações gentílicas, como Mogos, Pegus, Bramas, Siamês, Calaminans, Champàs,Tunquines e outras muitas, que trazerem os ídolos, de quem são devotos, pintados nos braços, coxas ou espaldas.
O que resta de uma feitoria que, ao que parece, nem foi portuguesa

Eu lera em muitos escritos e ouvira contar a muitos viajantes um estranhíssimo costume destes povos que me deixara assaz maravilhado e muito desconfiado de serem patranhas de quem se quer fazer mais do que os outros, pelo muito que viu e andou pelo mundo. Ora escutai e pasmai do que aqui lerdes:

Os naturais da raça mon ou talaing eram gente fraca para pelejar, mais dada à sensualidade e aos prazeres da vida do que às agruras da guerra, bons trabalhadores. Meãos de corpos, com traços semelhantes aos chins, embora de cor mais baça, tinham os cabelos tosquiados em cercilhos, à roda da cabeça como tigela emborcada, ao modo dos antigos clérigos, com os cabelos mais crescidos na moleira. Andavam descalços e cingiam-se com uns panos, como as mulheres, por baixo de umas cabaias curtas e nas cabeças traziam beatilhas com as pontas levantadas para cima como carochas de bispo. As mulheres eram mais brancas do que os homens e as mais nobres e regaladas sobressaíam pela formosura, com as suas cabaias compridas e transparentes de linho e seda.
Embora não falassem a mesma língua, os pegus diziam que os siameses descendiam da sua linhagem, o que não era de estranhar porque usavam do mesmo modo, metidos no instrumento da sua geração entre a carne e a pele, de um até cinco, ou mesmo nove, cascavéis do tamanho de ameixas alvares – os dos fidalgos de ouro ou prata, os da gente baixa de chumbo e fuzileira – fazendo alegre som por onde quer que fossem, de maviosos tons de tiple, contralto e tenor, os preciosos, mais roufenhos e desafinados os de ouropel e fancaria, um uso que António Correia jamais vira a outro povo das Índias. Homens, mulheres e crianças usam estes amuletos para virem a ter uma vida feliz e grande geração, fazendo até umas grandes cerimónias e procissões, no chamado Phi Ta Khon festival.
Derivava este costume, segundo a lenda da sua criação, do ajuntamento de uma mulher com um cão, cuja prole povoara aquela terra que até então fora erma. A mulher e o cão haviam sido os únicos sobreviventes de um junco da China atirado por uma tormenta para aquelas costas e destruído; a mulher tivera então cópula com o cão e parira filhos que depois copularam com ela, gerando novos rebentos que se multiplicaram de contínuo, propagando-se depois pelas terras do Sião.
Os pegus usavam os guizos em memória do cão mítico e a razão das suas mulheres serem mais bem-parecidas do que os homens, segundo elas próprias diziam, devia-se às fêmeas terem saído à primeira mãe e os machos ao perro, o pai primordial. Em Malaca, António Correia preparara-se bem para a sua missão, informando-se dos costumes destes gentios com os malaios e judeus, que lhe tinham contado muitas história fantasiosas como a do coito da mulher com o cão e outras mais credíveis como Pegu e Arracão terem sido povoados por degredados, cujas autoridades impuseram o uso de cascavéis como castigo pelo pecado da sodomia que cometiam.
 
Quanto a nós, os da nova embaixada, tenho de vos confessar que, pelo menos eu, não ouvi nenhum som de cascavéis, guizos ou badalos, vindos das naturas dos siões, pegus ou bramás que se cruzaram connosco em todos os lugares por onde passámos, mas não deixo de imaginar que devia ser cousa assaz bonita de se ouvir, só comparável ao chilreio dos muitos passarinhos que povoam aquelas selvas.
E embora não tivéssemos achado nenhuns vestígios visíveis da antiga feitoria portuguesa (apenas um monte de pedras coberto de ervas, impossível de se achar se não se soubesse que fora ali), umas meninas, naturais do lugar, fizeram questão de saber, com muitos sorrisos, sinais e chamamentos, se os homens da nossa embaixada também usavam cascavéis, como os da sua nação.
Antes que passe adiante, quero dar-vos uma descrição de Arracão, esta Régia Cidade, a qual toma o nome do Reino, segundo descreveu Sebastião Manrique na sua Relação. Metrópole dos Reinos de Arracão, no séc. XV, sujeitos à sua coroa, esteve esta grande Cidade edificada em um formoso vale, que terá de circuito quinze léguas, e todo circundado de altas e ásperas montanhas que, servindo-lhe de naturais muralhas escusaram as artificiais. A estas montanhas, as foram igualando ao picão e, abrindo-as de alto abaixo, fabricaram portas para as entradas e saídas, e sobre elas alguns baluartes providos de Artilharia com o que queda a Cidade naturalmente inexpugnável, se estivera em poder de outra nação mais beligerante.
Está a Cidade cortada por meio de um grande, e caudaloso Rio o qual repartindo-se por várias partes dela, faz que a maior parte de seus canais sejam navegáveis de váriassortes de embarcações grandes, e pequenas, nas quais consiste o maior peso do serviço comum e particular. Em estas se trazem a vender por as aquáticas ruas toda sorte de mantimentos e provisões, assim de arrozes, vinhos da terra, carnes, pescados, fresco, salgado, e seco, manteigas, hortaliças, frutas, e outras cousas comestíveis e como também várias mercancias, e cousas utensílias; e todas estas cousas, maxime as comestíveis, por preços mui baratos. Afora esta comodidade, há também muitas praças, a que chamam Bazares, donde se vendem as mesmas cousas. Sai este Rio ao mar por duas partes, uma pelo porto de Oriatan, outra pela parte do Dobazi, onde habitam mercadores de várias nações.
Foi sob uma pesada chuva de monção, viajámos numa embarcação local, desde o Golfo de Bengala até à capital Mrauk-U.

17/09/2015

No rasto de Fernão Mendes Pinto – V

Crónica Quinta: 

António Correia e o Tratado de Pegu (1519)

Templo de Shwedagon

 Os pegus não queriam consentir os feringhis, os estrangeiros, nos seus portos e António Correia enviara ricos presentes ao rei – em que sobressaíam uma tapeçaria de Veneza, pimenta no valor de alguns contos de reis, peças de brocado, drogas, essências e porcelanas da China –, assim como ao toledão barja que era uma espécie de primeiro ministro, com cerca de metade da valia do presente real e, embora mais modestas, a outros mandarins influentes de Pegu.
Contudo, se Malaca não podia dispensar a aliança com Pegu, que a provia de alimentos, principalmente de arroz, e também de ajuda militar contra os assaltos do rei de Bintão ou dos achens, em caso de necessidade, o contrário também era verdadeiro, pois este reino tão pouco poderia prosperar sem os portugueses. Os Governadores da Índia e os Capitães de Malaca estavam muito mais interessados na aliança com o reino de Pegu do que com o de Sião, que começava a ser engolido pelas nações vizinhas.
António Correia fizera tudo para que o tratado fosse assinado e o seu esforço fora recompensado: el-rei acedera a concertar as pazes com os portugueses e o tratado ia ser assinado em cerimónia soleníssima no templo da cidade que se enchera de gente.
  – A cidade engalanou-se com toda a pompa – veio dizer-lhe o espia que Correia enviara ao templo, para não ser apanhado de surpresa por qualquer ardil de última hora. – O pagode reluz de ouro e pedraria e até os livros sagrados são dourados. O sacerdote e o ministro já vos esperam.
As varredeiras do Templo, descritas pelos nossos viajantes quinhentistas
          O embaixador percebeu que os pegus esperavam deslumbrá-lo com o fausto e a riqueza da parafernália usada no ritual.   Escreviam da esquerda para a direita, como na Europa, gravando com estilete de ferro as folhas de palma, ou em placas de marfim finas como folhas de papel e também de bambu, chapeadas e envernizadas, com a superfície revestida de folha de ouro e pintadas e com iluminuras nas margens a vermelho e verde com letras a negro brilhante.
– Esses livros dos templos são preciosos e nós não trazemos Bíblia ou missal com iluminuras que se lhes possa comparar – lamentou-se.
Ao ver um singelo breviário nas mãos do capelão da nau, que o iria acompanhar na função de Rolim, disse-lhe numa voz que não admitia réplica:
– Não posso fazer o juramento sobre esse livro, meu padre, porque haveria de parecer de pouca valia aos gentios, como se não nos importasse a nossa religião. Temos aí outra obra que servirá melhor a este propósito.
Desembarcaram com grande aparato, trajados com as suas melhores galas e exibindo espadas e punhais de cerimónia com os punhos dourados e, os dos mais nobres, cravejados de pedras preciosas. Abriam o cortejo dois capitães que transportavam, à maneira de relicário, uma almofada de brocado dourado, onde repousava um grande livro coberto por um pano de veludo carmesim; a seguir ia o embaixador, de chapéu emplumado e vestido como para uma audiência com o Papa, ladeado pelo capelão, de sobrepeliz branca e com uma cruz de prata nas mãos; por último, formando uma lustrosa comitiva, os oficiais, os mercadores principais e um corpo de guardas armados. 
 No templo havia uma gigantesca estátua de Buda deitado, com um braço por cima do rosto. Diante dela, no chão, tinham estendido um espesso tapete onde fizeram sentar o embaixador e o padre, junto do Rolim-mor e do Cemim Bolegão que já os esperavam. 
 O ministro tirou de uma caixa de marfim a folha de ouro batido onde vinham escritas as capitulações, que um dos seus oficiais leu em voz alta, em língua mon, por duas vezes para ser entendido pela assistência, tendo António Correia dado a sua folha também de ouro escrita em português. Assinadas ambas pelo ministro e pelo embaixador, procedeu-se ao juramento, feito com muita reverência e ouvido pela assistência com tal acatamento e silêncio, que deixaram os portugueses pasmados com a sua devoção.
O Rolim leu no magnífico livro, trabalhado a folha de ouro, a lenda da origem de Pegu que o língua trasladou; acabada a leitura queimou uns papéis amarelos perfumados, com inscrições, sobre cujas cinzas o ministro pôs as mãos, dizendo:
– Em nome d’el-Rei juro que tudo o que aqui foi assentado é firme e valioso.
Chegara a vez do embaixador do reino de Portugal de prestar o seu. O capelão tomou o livro da almofada e levou-o para junto do Rolim, abrindo-o à sorte para António Correia ler. Era a única obra de folha de papel inteira que tinham na nau, um Cancioneiro de trovas de fidalgos e pessoas principais que Garcia de Resende, o escrivão da puridade d’el-rei D. João II, tinha mandado imprimir e servia nas viagens para desenfadamento da tripulação, sendo lido aos serões ou por ocasião de alguma festa, pelo capelão ou por quem o soubesse fazer.

Sabendo como aquele povo só guardava juramento enquanto lhe convinha o negócio, para mais depois da leitura que o Rolim fizera da lenda como se fora um texto sagrado, o Cancioneiro Geral até vinha a propósito. O embaixador pôs os olhos na página aberta e começou a ler a trova de Luís da Silveira, o Conde de Sortelha:
Vaidade das vaidades
e tudo é vaidade,
assi passam as vontades
com’às cousas da vontade.
Tudo se já desejou
e tudo s’avorreceu
e tudo se já ganhou
e tudo se já perdeu.
O poeta glosava a sentença de Salomão, no Eclesiastes, Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade e, à medida que ia lendo as palavras da trova, o embaixador sentia um arrepio de medo supersticioso a trespassar-lhe o corpo. Não fora talvez por acaso que o livro se abrira naquela precisa página, pois o poema soava-lhe aos ouvidos como um aviso ou uma censura por estar a fazer uma farsa daquele juramento. Esforçou-se para que a voz não tremesse, prosseguindo com a leitura:
(…) O sisudo e o sandeu
tudo vi que tinha fim,
e disse então entre mim:
– Que me presta o saber meu?
Ignorantes e prudentes
todos têm ūa medida,
na morte nem nesta vida
não nos vejo diferentes.
Um suor frio corria da testa de António Correia, parecendo-lhe estas palavras tão poderosas como se estivesse a jurar sobre as da Bíblia. Leu a última estrofe, com uma voz que ressumava de emoção que não logrou conter, enquanto prometia para si próprio, a fim de apaziguar o bater assustado do coração, que cumpriria o seu juramento com custo da sua vida, porque não podia invocar a Deus com falsidade e enganos, mesmo em negócios com gentios de outra fé:
(…) O justo, o sabedor
e o mais cheio de fé
nenhum não sabe se é
dino d’ ódio se d’ amor.
Quantos isto faz perder,
porqu’ a quem a fé não dura
encomenda-s’ à ventura
e deixa de merecer.
Palavras proféticas, as do poeta, decerto inspiradas por esse sopro divino que dizem ser o alento dos vates. O silêncio que se fizera no templo era quase religioso, talvez devido à emoção com que lera os versos e que encontrara eco no coração dos pegus. Porém, no coração de alguns mouros mercadores que estavam presentes ao acto do juramento, a paixão era outra, de puro ódio, com medo de perderem os grandes lucros que tinham com os tratos das suas fazendas se os portugueses começassem a vir ao Pegu. E logo juraram de fazer quebrar as pazes assinadas pelos seus inimigos.
 (Adaptado de "O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto". Fotos do templo Shwedagon Paya ou Pagode de Degom, por Deana Barroqueiro)

No rasto de Fernão Mendes Pinto – IV

Crónica Quarta

No dia 31 de Agosto, segunda-feira, partimos manhã cedo, em carroça, para Thanlyin (a feitoria dos portugueses no Sirião, onde, no meu século XVII, se instalou Filipe de Brito e Nicote (c. 1566-1613), achando-se já em 1590 na região como comerciante de sal e tendo depois ficado ao serviço do rei de Arracão (que, nos vossos dias, se denomina Rackine e cuja capital é Mrauk-u), a quem serviu bem e lealmente, trazendo bem-estar ao povo. 

Depois de muitas lutas e rivalidades entre os senhores da guerra, foi proclamado rei do Pegu ou de Sirião (Thanlyin), conhecido como Nga Zingar, após ter tomado a cidade, com o apoio dos naturais que lhe chamavam Changá ou Homem Bom. Com a tomada da praça pelos bramás, em 1613, Filipe de Brito foi empalado e degolado. 

Neste vosso futuro, que me é dado ver por ter encarnado num dos seguidores da embaixada, a igreja portuguesa há muito deixou de existir, as três paredes que vimos (umas tristes ruínas abandonadas na floresta e que os naturais desconhecem) são de construção italiana em tijolo, de meados do século XVIII, que pouco ou nada tem a vr com a nossa herança e património. Vale a placa, enquanto memória «Antiga Igreja portuguesa / Era cristã (1749-1750) e dois túmulos de luso-descendentes da mesma época.
As relações com Pegu estabeleceram-se após a tomada de Malaca, por Afonso de Albuquerque, que tratou imediatamente de enviar embaixadores a estes reinos, assim como à China. Destes primeiros encontros chegou notícia a Portugal.
 
Carta de Garcia de Sá (?) a El-Rei D. Manuel:


(…) “O ano passado foi daqui por mandado do capitão-mor Francisco Lampreia e Jorge de Pina a Pegu por embaixadores, e depois partiu daqui António Correia na [nau] Brandoa para Malaca e de lá havia d’ir a Pegu, onde foi e se acharam lá todos, donde vieram desavindos e mal aviados com a gente da terra, e assi [com] guzarates que lá estavam com suas naus. Dizem ser terra muito rica e abastada de todalas riquezas, ouro, almíscar, beijoim, rubis, outras e muitas cousas ricas, aos quais se não quis consentir na terra que se vendesse nada porque têm já sabido se tratarem com nosco que logo serão destruídos, e por este respeito se mostraram pobres e tiranos e de pouco gasalhado, depois que receberam [os portugueses]. É gente de pouco poder e muita, por que lhe parecia que fazendo o que faziam que lhe não tornássemos lá mais;(…) faça V. Alteza bom fundamento desta terra e aproveite-se cedo dela, antes que se dane com nosco, e de fazer fundamento de pousar gente nela e grandes defesas ainda que já lá vão fustas de João Moreno.” Malaca, 1520.
 Foi, porém, António Correia – que chegou a Pegu em 1519 – quem logrou concertar o primeiro tratado…graças a um poema.  Sim, um poema, crede que não zombo de vós, meus estimados leitores e caríssimas leitoras!


Os primeiros encontros com os pegus não foram muito auspiciosos, apesar de os pilotos locais terem acorrido em paraus a remos para rebocarem a nau, onde tinha deflagrado fogo, pelo impetuoso rio Saluém até à barra. Ali esperaram treze dias pela autorização do rei, trazida pelo mandarim Cemim Bolegão, para poderem desembarcar. Por aquelas bandas nada se fazia sem peitas ou odiás – os presentes oferecidos não só ao rei como aos ministros, oficiais e a quem quer que mexesse uma palha ao serviço do requerente –, a fim de amaciar vontades, afastar escolhos e acelerar os negócios.


Sempre que a nossa embaixada desembarcava para tratar dos negócios ou das suas visitas, éramos rodeados por um enxame de vendilhões, pegadiços como moscas, zumbindo à nossa volta a oferecer os seus produtos. E mal partíamos de um lugar, corriam com as suas montadas atrás da nossa carroça, até ao lugar onde sabiam que havíamos de ir e ali nos esperavam e cercavam de novo até lhe comprarmos qualquer cousa. 


Só não vieram os alcovetos a oferecer esposas a prazo, como a António Correia e aos seus homens, apresentando-lhes moças de vários tamanhos, formas e idades, que os saudavam com muitos sorrisos e meneios provocantes, saracoteando-se de modo a que os panos que lhes cobriam as vergonhas, se abrissem na frente e permitissem vislumbrar os seus tesouros mais íntimos, fazendo gala em provocar desejo nos homens com uma descarada promessa de delícias e prazeres. 
Os alcovetos apresentavam-nas uma a uma, enunciando os predicados e dons das beldades, a fim de acrescentarem o interesse dos clientes que olhavam embasbacados para o magote de filhas de gente honrada que, com licença de seus pais, vinham oferecer-se seminuas, como vulgares mulheres de partido, para maridar com eles, durante uns dias ou meses, em troca de dinheiro, sem que por isso se sentissem desonradas. Desde que fizessem um contrato com os pais das moças que mais lhes agradassem, pelo tempo que ali estivessem, que elas os serviriam dia e noite como esposas no navio ou na pousada em terra; antes de partir, os portugueses pagariam a quantia acordada. 


Mas este conto, que é cousa de muito espanto, deixo para a próxima crónica, onde o poderei narrar com mais lazer e menos desprazer de vossas mercês...

À Conversa com os Leitores

Clube de Leitores da Bulhosa de Entrecampos 


Estarei na livraria à conversa com os meus amigos leitores, sobre o romance O Espião de D. João II - Pêro da Covilhã, edição da Casa das Letras/Leya, e outras histórias:

 Dia 22 de Setembro, Terça-feira, às 18 horas 

 Livraria Bulhosa de Entrecampos
Campo Grande, 10-B
(Metro de Entrecampos, saída do jardim do Campo Grande)

Estar convosco, com pessoas que amam os livros e gostam de conversar sobre eles, é um dos maiores prazeres que a escrita me dá. Lá vos espero.

No rasto de Fernão Mendes Pinto – III



Crónica Terceira


Fizemos uma curta escala em Krung Thep Maha Nakhon (Bangkok), cerca de Ayutthaya, no reino do Sião, mas não nos permitiram desembarcar e deixar as instalações do porto, por estarem de novo às avessas com o inimigo reino do Sirião (Pegu e Arracão).

Assim, como sempre queremos estar de bem com todos os povos, seguimos logo nossa derrota para o porto de Yangon (Rangum), onde desembarcámos com a embaixadora e, já livres de disfarces, nos mostrámos como bons portugueses e fomos conduzidos por oficiais bramás, numa confortável carroça que nos abrigou de uma terrível chuvada de monção, até uma formosa e luxuosa hospedaria de ingleses, conhecida por The Strand, onde costumam pousar regaladamente os emissários estrangeiros e os viajantes mais nobres e ricos que peregrinam ou espiam estas nações.

Foram, porém, portugueses os primeiros ocidentais a estabelecerem tratos de paz e amizade, assim como de mercancia, com estes povos e também a participar nas suas guerras, por serem os mais expertos arcabuzeiros e mosqueteiros que no mundo havia.
Lembro alguns incidentes nos primeiros encontros dos portugueses com os reis bramás, sobretudo um escrito anónimo de um dos muitos aventureiros, mercenários, comerciantes e piratas que por aqui buscaram melhoria de vida, dando a conhecer a estes mundos (umas vezes bem, outras mal) o nosso pequeno Portugal, a nossa preciosa língua e costumes, assim como os produtos da Europa.
Para estes povos éramos (e em algumas partes ainda o somos hoje) uma gente estranha, um Outro que pouco tinha a ver com eles, como podeis ver neste texto:


«Chegámos onde el-rei estava assentado em um muito grande catre, assim mesmo dourado, com muito grande soma de coxins grandes e pequenos todos lavrados e por eles muita pedraria e aljôfar. E chegados diante dele lhe fizemos nossa reverência segundo o costume da terra, que é com as mãos cruzadas sobre os peitos e a cabeça quão baixa possa ser. E el-rei por nos fazer grande honra se assentou na cama direito e se riu para nós; e então lhe amostrámos as armas (…).
Depois de tudo isto apresentado lhe mostrámos o cavalo que levávamos, que era arábio ruço pombo, em o qual el-rei mandou cavalgar e que o passeassem. E depois de bem passeado, el-rei ficou mui contente dele, porque era formoso e bem arrendado. Isto assim acabado, fomos todos tomados e levados por certos homens fidalgos que nos meteram em uma câmara que debaixo deste cadafalso estava e nos vestiram a cada um sua roupa de brocadilho, feitas à usança da terra, e também nos deram cada um sua touca.
E isto vestido sobre os nossos vestidos que levávamos e com uns cingidouros que nos deram, cingidos por cima, parecíamos bestas mal albardadas. E assim nos tomaram a levar perante el-rei, o qual desde que nos viu com tão más disposições começou-se de rir, perguntando a esses fidalgos que lhes pareciam os portugueses vestidos à sua arte.
E eu, que não estava muito contente com tal zombaria, fiz que não atentava nisso e olhei se podia ver alguma cousa do aparato d’el-rei; e contei os homens da guarda que estavam dentro.»

Quanto à nossa embaixada, não tivemos mãos a medir, pois não há fome que não dê em fartura.
Assim, na hospedaria, por volta das seis horas da tarde, nos serviram um lauto banquete de boas-vindas, que nos tirou a barriga das misérias da triste comida do navio, feita de biscoito e viandas mal gisadas e sem sabor.

Porém, a embaixadora tinha aprazado um encontro com o cardeal Charles Bo e o seu bispo auxiliar Saw Yaw Han que celebrou missa em nossa intenção e nos serviu, em seguida, uma ainda mais lauta ceia do que a da pousada, na casa episcopal, onde, apesar de estarmos de pança cheia, todos nos esforçámos em comer o mais que pudemos, para não ofender a quem se havia dado a tão grandes trabalhos, cuidados e gentilezas para nos homenagear. Como o padre Peter, um descendente de portugueses de Mandalei, cujos antepassados faziam parte da guarda e escolta do rei.

Com tantas comezainas e, por causa da monção, a embaixada ficou desconcertada e com o itinerário alterado, de forma que da cidade de Rangum nada vimos, além de um fraco vislumbre através das janelas da carroça, batidas pela chuva.