21/09/2015

No Rasto de Fernão Mendes Pinto - VI


Crónica Sexta: De como os pegus e os siões usam cascavéis nas suas naturas

                – Elefantes iguais podem enganar (tâmil)
ou Com papas e bolos se enganam os tolos (português)
 
O estrangeiro recém-chegado disse:
– Nós gostaríamos de nos estabelecer aqui para fazer tratos.
Ao que o rei de Pegu respondeu:
– Eu tenho muitos inimigos. Os Shans atacam-nos constantemente. Se combaterdes ao nosso lado, para derrotar o inimigo, eu darei permissão para vos estabelecerdes aqui.
[Quando os Shans atacaram Pegu os portugueses combateram com as suas armas e artilharia, fazendo o inimigo bater em retirada]. Então, o capitão português fez  um pedido a el-rei:– Dai-nos apenas um pedaço de terra que uma pele de búfalo possa abarcar que com ela nos satisfaremos.
O rei de Pegu deu-lhes permissão para tomarem o terreno que pediam. O capitão mandou cortar a pele em tiras finíssimas [e liga-las umas às outras como uma corda], de modo a poder cercar um extenso território no Sirião.
 
– As casas que ficam no terreno circundado pela corda têm de ser desmanteladas e transferidas – ordenou aos moradores. –  Este lugar pertence ao território que el-rei nos concedeu.
Os desalojados bradaram contra a expulsão:
– Os Portugueses prometeram tomar um terreno do tamanho de uma pele de búfalo, mas cortando-a em tiras finas tomaram muitas terras!
O rei de Pegu respondeu-lhes:
– Nós prometemos dar aos Portugueses um pedaço de terra medida pela pele de um búfalo. Eles procederam com sabedoria, não há nada a dizer da sua conduta. Estes homens ajudaram os nossos guerreiros a combater o inimigo e concertámos com eles uma paz duradoura. Deixemos que se estabeleçam e construam a sua cidade.
 (Da crónica bramaa Potugui Yazawin)
Quando queriam fazer um juramente solene, os naturais punham-se de pé, levantavam a ponta do pano da parte direita, e descobrindo-se até meia coxa, punham a mão sobre a imagem de um ídolo que tinham gravada na pele, segundo a sua seita, confirmando com este gesto o que haviam dito. Faziam esta sorte de juramentos raras vezes e só quando era muito necessário. Assim juram várias nações gentílicas, como Mogos, Pegus, Bramas, Siamês, Calaminans, Champàs,Tunquines e outras muitas, que trazerem os ídolos, de quem são devotos, pintados nos braços, coxas ou espaldas.
O que resta de uma feitoria que, ao que parece, nem foi portuguesa

Eu lera em muitos escritos e ouvira contar a muitos viajantes um estranhíssimo costume destes povos que me deixara assaz maravilhado e muito desconfiado de serem patranhas de quem se quer fazer mais do que os outros, pelo muito que viu e andou pelo mundo. Ora escutai e pasmai do que aqui lerdes:

Os naturais da raça mon ou talaing eram gente fraca para pelejar, mais dada à sensualidade e aos prazeres da vida do que às agruras da guerra, bons trabalhadores. Meãos de corpos, com traços semelhantes aos chins, embora de cor mais baça, tinham os cabelos tosquiados em cercilhos, à roda da cabeça como tigela emborcada, ao modo dos antigos clérigos, com os cabelos mais crescidos na moleira. Andavam descalços e cingiam-se com uns panos, como as mulheres, por baixo de umas cabaias curtas e nas cabeças traziam beatilhas com as pontas levantadas para cima como carochas de bispo. As mulheres eram mais brancas do que os homens e as mais nobres e regaladas sobressaíam pela formosura, com as suas cabaias compridas e transparentes de linho e seda.
Embora não falassem a mesma língua, os pegus diziam que os siameses descendiam da sua linhagem, o que não era de estranhar porque usavam do mesmo modo, metidos no instrumento da sua geração entre a carne e a pele, de um até cinco, ou mesmo nove, cascavéis do tamanho de ameixas alvares – os dos fidalgos de ouro ou prata, os da gente baixa de chumbo e fuzileira – fazendo alegre som por onde quer que fossem, de maviosos tons de tiple, contralto e tenor, os preciosos, mais roufenhos e desafinados os de ouropel e fancaria, um uso que António Correia jamais vira a outro povo das Índias. Homens, mulheres e crianças usam estes amuletos para virem a ter uma vida feliz e grande geração, fazendo até umas grandes cerimónias e procissões, no chamado Phi Ta Khon festival.
Derivava este costume, segundo a lenda da sua criação, do ajuntamento de uma mulher com um cão, cuja prole povoara aquela terra que até então fora erma. A mulher e o cão haviam sido os únicos sobreviventes de um junco da China atirado por uma tormenta para aquelas costas e destruído; a mulher tivera então cópula com o cão e parira filhos que depois copularam com ela, gerando novos rebentos que se multiplicaram de contínuo, propagando-se depois pelas terras do Sião.
Os pegus usavam os guizos em memória do cão mítico e a razão das suas mulheres serem mais bem-parecidas do que os homens, segundo elas próprias diziam, devia-se às fêmeas terem saído à primeira mãe e os machos ao perro, o pai primordial. Em Malaca, António Correia preparara-se bem para a sua missão, informando-se dos costumes destes gentios com os malaios e judeus, que lhe tinham contado muitas história fantasiosas como a do coito da mulher com o cão e outras mais credíveis como Pegu e Arracão terem sido povoados por degredados, cujas autoridades impuseram o uso de cascavéis como castigo pelo pecado da sodomia que cometiam.
 
Quanto a nós, os da nova embaixada, tenho de vos confessar que, pelo menos eu, não ouvi nenhum som de cascavéis, guizos ou badalos, vindos das naturas dos siões, pegus ou bramás que se cruzaram connosco em todos os lugares por onde passámos, mas não deixo de imaginar que devia ser cousa assaz bonita de se ouvir, só comparável ao chilreio dos muitos passarinhos que povoam aquelas selvas.
E embora não tivéssemos achado nenhuns vestígios visíveis da antiga feitoria portuguesa (apenas um monte de pedras coberto de ervas, impossível de se achar se não se soubesse que fora ali), umas meninas, naturais do lugar, fizeram questão de saber, com muitos sorrisos, sinais e chamamentos, se os homens da nossa embaixada também usavam cascavéis, como os da sua nação.
Antes que passe adiante, quero dar-vos uma descrição de Arracão, esta Régia Cidade, a qual toma o nome do Reino, segundo descreveu Sebastião Manrique na sua Relação. Metrópole dos Reinos de Arracão, no séc. XV, sujeitos à sua coroa, esteve esta grande Cidade edificada em um formoso vale, que terá de circuito quinze léguas, e todo circundado de altas e ásperas montanhas que, servindo-lhe de naturais muralhas escusaram as artificiais. A estas montanhas, as foram igualando ao picão e, abrindo-as de alto abaixo, fabricaram portas para as entradas e saídas, e sobre elas alguns baluartes providos de Artilharia com o que queda a Cidade naturalmente inexpugnável, se estivera em poder de outra nação mais beligerante.
Está a Cidade cortada por meio de um grande, e caudaloso Rio o qual repartindo-se por várias partes dela, faz que a maior parte de seus canais sejam navegáveis de váriassortes de embarcações grandes, e pequenas, nas quais consiste o maior peso do serviço comum e particular. Em estas se trazem a vender por as aquáticas ruas toda sorte de mantimentos e provisões, assim de arrozes, vinhos da terra, carnes, pescados, fresco, salgado, e seco, manteigas, hortaliças, frutas, e outras cousas comestíveis e como também várias mercancias, e cousas utensílias; e todas estas cousas, maxime as comestíveis, por preços mui baratos. Afora esta comodidade, há também muitas praças, a que chamam Bazares, donde se vendem as mesmas cousas. Sai este Rio ao mar por duas partes, uma pelo porto de Oriatan, outra pela parte do Dobazi, onde habitam mercadores de várias nações.
Foi sob uma pesada chuva de monção, viajámos numa embarcação local, desde o Golfo de Bengala até à capital Mrauk-U.

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