Crónica Sexta: De como os pegus e os siões usam cascavéis nas suas naturas
– Elefantes iguais podem enganar (tâmil)
ou Com papas e
bolos se enganam os tolos (português)
O estrangeiro recém-chegado disse:
– Nós gostaríamos de nos estabelecer aqui para fazer
tratos.
Ao que o rei de Pegu respondeu:
– Eu tenho muitos inimigos. Os Shans atacam-nos
constantemente. Se combaterdes ao nosso lado, para derrotar o inimigo, eu darei
permissão para vos estabelecerdes aqui.
[Quando os Shans atacaram Pegu os portugueses
combateram com as suas armas e artilharia, fazendo o inimigo bater em
retirada]. Então, o capitão português fez
um pedido a el-rei:– Dai-nos apenas um pedaço de terra que uma pele de
búfalo possa abarcar que com ela nos satisfaremos.
O rei de Pegu deu-lhes permissão para tomarem o
terreno que pediam. O capitão mandou cortar a pele em tiras finíssimas [e
liga-las umas às outras como uma corda], de modo a poder cercar um extenso
território no Sirião.
– As casas que ficam no terreno circundado pela corda
têm de ser desmanteladas e transferidas – ordenou aos moradores. – Este lugar pertence ao território que el-rei
nos concedeu.
Os desalojados bradaram contra a
expulsão:
– Os Portugueses prometeram tomar um terreno do
tamanho de uma pele de búfalo, mas cortando-a em tiras finas tomaram muitas
terras!
O rei de Pegu respondeu-lhes:
– Nós prometemos dar aos Portugueses um pedaço de
terra medida pela pele de um búfalo. Eles procederam com sabedoria, não há nada
a dizer da sua conduta. Estes homens ajudaram os nossos guerreiros a combater o
inimigo e concertámos com eles uma paz duradoura. Deixemos que se estabeleçam e
construam a sua cidade.
(Da crónica
bramaa Potugui Yazawin)
Quando queriam fazer um juramente
solene, os naturais punham-se de pé, levantavam a ponta do pano da parte direita,
e descobrindo-se até meia coxa, punham a mão sobre a imagem de um ídolo que
tinham gravada na pele, segundo a sua seita, confirmando com este gesto o que haviam
dito. Faziam esta sorte de juramentos raras vezes e só quando era muito necessário.
Assim juram várias nações gentílicas, como Mogos, Pegus, Bramas, Siamês,
Calaminans, Champàs,Tunquines e outras muitas, que trazerem os ídolos, de quem são
devotos, pintados nos braços, coxas ou espaldas.
Eu lera em muitos escritos e ouvira contar a muitos viajantes um estranhíssimo costume destes povos que me deixara assaz maravilhado e muito desconfiado de serem patranhas de quem se quer fazer mais do que os outros, pelo muito que viu e andou pelo mundo. Ora escutai e pasmai do que aqui lerdes:
O que resta de uma feitoria que, ao que parece, nem foi portuguesa |
Eu lera em muitos escritos e ouvira contar a muitos viajantes um estranhíssimo costume destes povos que me deixara assaz maravilhado e muito desconfiado de serem patranhas de quem se quer fazer mais do que os outros, pelo muito que viu e andou pelo mundo. Ora escutai e pasmai do que aqui lerdes:
Os naturais da raça
mon ou talaing eram gente fraca para pelejar, mais dada à sensualidade e
aos prazeres da vida do que às agruras da guerra, bons trabalhadores. Meãos de
corpos, com traços semelhantes aos chins, embora de cor mais baça, tinham os
cabelos tosquiados em cercilhos, à roda da cabeça como tigela emborcada, ao
modo dos antigos clérigos, com os cabelos mais crescidos na moleira. Andavam
descalços e cingiam-se com uns panos, como as mulheres, por baixo de umas
cabaias curtas e nas cabeças traziam beatilhas com as pontas levantadas para
cima como carochas de bispo. As mulheres eram mais brancas do que os homens e
as mais nobres e regaladas sobressaíam pela formosura, com as suas cabaias
compridas e transparentes de linho e seda.
Embora não falassem a mesma língua, os
pegus diziam que os siameses descendiam da sua linhagem, o que não era de
estranhar porque usavam do mesmo modo, metidos no instrumento da sua geração
entre a carne e a pele, de um até cinco, ou mesmo nove, cascavéis do tamanho de
ameixas alvares – os dos fidalgos de ouro ou prata, os da gente baixa de chumbo
e fuzileira – fazendo alegre som por onde quer que fossem, de maviosos tons de
tiple, contralto e tenor, os preciosos, mais roufenhos e desafinados os de
ouropel e fancaria, um uso que António Correia jamais vira a outro povo das
Índias. Homens, mulheres e crianças usam estes
amuletos para virem a ter uma vida feliz e grande geração, fazendo até umas
grandes cerimónias e procissões, no chamado Phi Ta Khon
festival.
Derivava este costume, segundo a lenda
da sua criação, do ajuntamento de uma mulher com um cão, cuja prole povoara
aquela terra que até então fora erma. A mulher e o cão haviam sido os únicos
sobreviventes de um junco da China atirado por uma tormenta para aquelas costas
e destruído; a mulher tivera então cópula com o cão e parira filhos que depois
copularam com ela, gerando novos rebentos que se multiplicaram de contínuo,
propagando-se depois pelas terras do Sião.
Os pegus usavam os guizos em memória do
cão mítico e a razão das suas mulheres serem mais bem-parecidas do que os
homens, segundo elas próprias diziam, devia-se às fêmeas terem saído à primeira
mãe e os machos ao perro, o pai primordial. Em Malaca, António Correia
preparara-se bem para a sua missão, informando-se dos costumes destes gentios
com os malaios e judeus, que lhe tinham contado muitas história fantasiosas
como a do coito da mulher com o cão e outras mais credíveis como Pegu e Arracão
terem sido povoados por degredados, cujas autoridades impuseram o uso de
cascavéis como castigo pelo pecado da sodomia que cometiam.
Quanto a nós, os da nova embaixada, tenho de vos confessar que, pelo menos eu, não ouvi nenhum som de
cascavéis, guizos ou badalos, vindos das naturas dos siões, pegus ou bramás que
se cruzaram connosco em todos os lugares por onde passámos, mas não deixo de
imaginar que devia ser cousa assaz bonita de se ouvir, só comparável ao
chilreio dos muitos passarinhos que povoam aquelas selvas.
E embora não
tivéssemos achado nenhuns vestígios visíveis da antiga feitoria portuguesa
(apenas um monte de pedras coberto de ervas, impossível de se achar se não se
soubesse que fora ali), umas meninas, naturais do lugar, fizeram questão de
saber, com muitos sorrisos, sinais e chamamentos, se os homens da nossa
embaixada também usavam cascavéis, como os da sua nação.
Antes que passe adiante, quero dar-vos uma descrição de Arracão, esta Régia
Cidade, a qual toma o nome do Reino, segundo descreveu Sebastião Manrique na
sua Relação. Metrópole dos Reinos de Arracão, no séc. XV, sujeitos à sua coroa, esteve esta grande Cidade edificada em um formoso vale, que terá de
circuito quinze léguas, e todo circundado de altas e ásperas montanhas que,
servindo-lhe de naturais muralhas escusaram as artificiais. A estas
montanhas, as foram igualando ao
picão e, abrindo-as de alto abaixo, fabricaram portas para as entradas e
saídas, e sobre elas alguns baluartes providos de Artilharia com o que queda a
Cidade naturalmente inexpugnável, se estivera em poder de outra nação mais
beligerante.
Está a Cidade cortada por meio de um grande, e
caudaloso Rio o qual repartindo-se por várias partes dela, faz que a maior
parte de seus canais sejam navegáveis de váriassortes de embarcações grandes, e pequenas, nas
quais consiste o maior peso do serviço comum e particular. Em estas se trazem a
vender por as aquáticas ruas toda sorte de mantimentos e provisões, assim de
arrozes, vinhos da terra, carnes, pescados, fresco, salgado, e seco, manteigas,
hortaliças, frutas, e outras cousas comestíveis e como também várias
mercancias, e cousas utensílias; e todas estas cousas, maxime as comestíveis,
por preços mui baratos. Afora esta comodidade, há também muitas praças, a que
chamam Bazares, donde se vendem as mesmas cousas. Sai este Rio ao mar por duas
partes, uma pelo porto de Oriatan, outra pela parte do Dobazi, onde habitam
mercadores de várias nações.
Foi sob uma
pesada chuva de monção, viajámos numa embarcação local, desde o Golfo de
Bengala até à capital Mrauk-U.
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