16/09/2015

No rasto de Fernão Mendes Pinto - II


Crónica Segunda



Sabei, meus caríssimos leitores e leitoras, que se não vos escrevi conforme o prometido, foi por não achar tempo nem ocasião para o fazer nesta tão trabalhosa se bem que espantosa viagem. Não tive um instante a que pudesse chamar meu, pois todas as nossas acções, sentidos e até pensamentos se achavam ao serviço da embaixada da nobilíssima Academia de Artes e Letras – CNC.

Éramos vinte e oito, os escolhidos para a melindrosa tarefa de renovar os tratados de paz e amizade com as terras de Pegu, Arracão, Ayhuttaya, Pagane e outras, por intermédio das comunidades cristãs de portugueses que nelas residem, com os seus padres, bispos e cardeais.

Na ilustre embaixada, seguia muita gente conhecedora não só das artes liberais do trívio – latim, lógica e retórica – e do quadrívio – aritmética, geometria, astronomia e música –, mas ainda da oratória e da poesia, e também da física e medicina. Além de línguas, que ali se chamam jurubaças, para trasladarem as nossas falas e escritos e nos servirem de guias, ensinando-nos os usos e costumes das suas gentes. Bem como um homem sábio, há muito a viver no Oriente, que mal deixou Portugal se vestiu de uma comprida saia e de sacola ao ombro, como um natural daqueles mundos. 

Embarcámos disfarçados, por irmos no Holandês Voador, um perigoso navio de hereges, que nos lançariam borda fora se nos descobrissem cristãos.

Se nunca viajastes até ao Oriente, meus prezados leitores, mesmo usando da vossa fecunda imaginação, não lograreis imaginar o inferno que é semelhante navegação, numa estreita gaiola do mar, em que centenas de homens, mulheres e algumas crianças são transportados como gado, acorrentados aos seus assentos, sem lugar para se estender e dormir.
Os ricos compram a peso de ouro, os melhores lugares e cabines, onde o rancho é melhorado e podem dormir descansados, porém nós outros, assim disfarçados de mercadores, artífices e oficiais de vários ofícios, íamos como ralé, amontoados em filas de assentos, como condenados às galés.
Se é mau para os homens, imaginai como não será para as donas e donzelas! Embora as condições tenham melhorado para as mulheres, desde os tempos de Iria Pereira, a primeira que se vestiu de homem e embarcou escondida na nau do vice-rei D. Francisco de Almeida, seguida de muitas outras, como a guerreira Antónia Fernandes que, durante anos, serviu como grumete, soldado e cavaleiro em Mazagão. Pelo menos agora têm retretes onde podem fazer seus feitos, à puridade, sem terem de sofrer os olhares despudorados dos matelotes e dos viajantes ociosos.

Outrora, para evitar que os navios em poucos dias fedessem como pocilgas, distribuía-se a cada viajante um urinol de barro que devia guardar junto da tarimba ou da manta de dormir, para vomitar e verter águas. Todavia, durante a noite, como a gente deitada era muita e os lugares escuros e apertados, os que haviam mister aliviar a tripa tinham de passar por cima dos corpos, a cada passo tropeçando, pisando ou caindo sobre os adormecidos, virando os vasos, com grande desespero dos seus donos que despertavam em sobressalto, encharcados e malcheirosos, para cobrir os desajeitados de injúrias.

Na proa, de um e outro lado do talha-mar, havia em todos os navios lugares próprios – uns assentos que se içavam acima da amurada – para os homens fazerem os seus feitos e, de manhã, quando se levantavam com os ventres a pedirem misericórdia, formava-se não poucas vezes uma fileira de matalotes, em grande vozeirada de protestos e doestos, tais como “Merda que está prestes é carga insofrida” ou “Avia-te, vilão” e “Uxte! Uxtix, tavanês! Alija a carga ao mar!” se alguém se demorava mais do que a conta.

Para mim, o mais difícil de sofrer foi uma luminária acesa por cima da minha cabeça, que não era possível apagar e me deixou insone a noite inteira.
Por fim, chegámos a bom porto, sem doenças nem mortes, e a senhora embaixadora deu graças a Deus, durante uma missa em terras do Sirião.
 

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