15/11/2020

História dos Paladares, de Deana Barroqueirto

CARLOS FIOLHAIS 
13/11/2020 14:35
Jornal i

A História dos Paladares apresenta a história da alimentação em Portugal e no mundo, com grande foco em Portugal e nas suas interações alimentares com o resto do mundo. 

 Deana Barroqueiro (New Haven, 1945) é uma romancista portuguesa, oriunda de uma família da Murtosa que emigrou para os Estados Unidos. Cursou Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo feito parte do grupo de teatro onde pontificaram Maria do Céu Guerra, Jorge de Silva Melo e Luís Miguel Cintra. Foi por genuína vocação professora de Português na Escola Passos Manuel, em Lisboa, o mais antigo liceu português, onde desenvolveu vários trabalhos pedagógicos relacionados com os Descobrimentos, encontrando-se hoje na situação de reforma. Na literatura portuguesa, preferindo os séculos XVI a XVII, tem dado livre curso à sua paixão por contar algumas das histórias desse tempo, embebendo-as numa trama ficcional. 

 Começou por escrever romances históricos juvenis: são sete os seus livros da colecção “Cruzeiro do Sul”, da Livros Horizonte, dos quais o primeiro foi Uraçá: O índio branco (2002). Publicou depois contos e romances inspirados na Bíblia, enfatizando as figuras femininas: Contos Eróticos do Velho Testamento, com prefácio de Maria Teresa Horta (Livros Horizonte, 2003; reedição: Planeta Manuscrito, 2018), publicado em Espanha, Itália e Brasil; Novos Contos Eróticos do Antigo Testamento (Livros Horizonte, 2004); e O Romance da Bíblia: Um olhar feminino do Antigo Testamento (Ésquilo, 2012; reedição: Tentação da Serpente, Ésquilo, 2012). 
Abalançou-se depois a romances históricos de grande fôlego. Uma das linhas que cultivou diz respeito à expansão portuguesa: O Navegador da Passagem: A história de um descobridor de mundos que o mundo ignorou (Porto Editora, 2008); O Espião de D. João ii: Na demanda dos segredos do Oriente e do misterioso Reino do Preste João (Ésquilo, 2009; reedição: Casa das Letras, 2015); e O Corsário dos Sete Mares: Fernão Mendes Pinto (Casa das Letras, 2012) 
Numa outra linha, focou a crise da independência nacional: D. Sebastião e o Vidente: Um romance de conspiração, mistério e revelação (Porto Editora, 2006; reedição: Casa das Letras, 2016), que recebeu o Prémio Máxima de Literatura 2007 - Prémio especial do júri e se tornou um best-seller; e 1640. O poeta, a professa, o prosador, o pregador (Casa das Letras, 2017), onde entra o Padre António Vieira. 

Tenho entre mãos a sua primeira obra de não ficção, História dos Paladares, Vol. I,  Sedução (Prime Books, 2020). É um volume enorme, de 486 páginas, aproximadamente o mesmo tamanho dos seus romances históricos. Está prometido para breve o Vol. ii, com o subtítulo Perdição, que incidirá sobre a relação da gastronomia com o cinema, a moda, a religião, etc. A História dos Paladares apresenta a história da alimentação em Portugal e no mundo, com grande foco em Portugal e nas suas interacções alimentares com o resto do mundo. Inclui mais de 250 receitas de época. 

 A minha primeira impressão quando comecei a folhear o livro foi o atraente design: seduz desde logo a capa, baseada num quadro de Pieter Bruegel. Mas o que mais me impressionou foi a quantidade e a qualidade da informação do livro. O índice elenca os 11 capítulos do livro após o prefácio do historiador João Paulo Oliveira e Costa, da Universidade Nova de Lisboa (também ele autor de romances históricos de grande circulação) e de uma Carta ao Leitor, assinada pela autora. As divisões foram feitas pelo tipo de paladares, devidamente adjetivados: I Elementais/ Tradicionais/ Orais; II Lêvedos/ Fintos/ Alentadores; III Viscerais/ Sanguinosos/ Telúricos; IV Silvestres/ Bravios/ Monteses; V Salgados/ Marinhos/ Curados; VI Doces/ Melosos/ Sacarinos; VII Amaros/ Amargos/ Amargosos; VIII Acres/ Ácidos/ Acerbos; IX Espirituosos/ Encorpados/ Alcoólatras; X Cremosos/ Coalhados/ Bolorentos; e XI Aromáticos/ Pungentes/ Ardentes. 

O prefaciador chama à obra “suculenta.” E acrescenta: “Viajamos pelo tempo, mas também pelo mundo, fruto das aventuras ultramarinas dos povos mediterrâneos e depois dos portugueses e dos seus seguidores da Europa do Norte”. Não poupa nos encómios: “Entenda o leitor que tem em mãos um depósito de sabedoria rara. Um livro deste tipo corresponde à sedimentação de conhecimentos variados que só podem ser expressos por uma pessoa ao cabo de uma vida longa; nenhum jovem tem arcaboiço para compilar e apresentar de modo claro e inteligível tamanha informação”. 

 O propósito da obra está bem expresso na Carta ao Leitor: “A estrutura que arquitectei nada tem de convencional. Porque a minha intenção foi, sobretudo, articular a história com os diversos ramos da cultura, ciência e civilização universais (dando particular relevo a Portugal), através de anedotas, acontecimentos e personalidades mais relevantes para a evolução do paladar e da gastronomia, desde a Idade da Pedra aos nossos dias”. Mais adiante, a autora fala das camarinhas que apanhava nas dunas de Aveiro, da arte da xávega em São Jacinto e dos doces da ria aveirense (ovos-moles e pão-de-ló de Ovar). Ficamos emocionados ao saber da “sopa de pedra” que fazia em criança para as suas amigas que, ao contrário dela, passavam fome. Ficamos a saber que quando, aos sete anos, veio morar para Lisboa, ganhou o gosto pela culinária: “Sentia-me como uma aprendiz de feiticeira que, por artes mágicas, de uma colher de pau ou de um batedor de claras, empunhados pela minha mão, podia criar iguarias perfumadas e saborosas que, ante os meus olhos, e pela força alquímica do fogo, ganhavam vida própria a partir da mistura de matérias inertes e comezinhas, como água, farinha e ovos e açúcar. Ganhei a minha coroa de glória, aos 12 anos, com uns coscorões dourados e estaladiços para a ceia de Natal”. Por via do marido, que é professor de Física Nuclear na Universidade de Lisboa, descobriu a extraordinária cozinha de Beira Baixa (declaração de interesses: conheço o simpático casal, mas comprei o livro!). O livro é, para ela, um “contributo para preservação da memória do nosso riquíssimo património gastronómico.” E é - digo eu - um grande contributo!

 Em cada capítulo, a Deana, que escreve muito bem, vai saltando entre paladares do mesmo tipo, não se importando nem com a ordem cronológica nem com a ordem geográfica, pois uns sabores evocam outros. O texto é cortado por “histórias de pasmar,” citações e receitas. No capítulo dos “Elementais”, aprendi que o livro de receitas mais antigo são três tabuletas de argila da Suméria, de há 4 mil anos, que contêm mais de duas dúzias de pratos (no livro está a receita do “caldo vermelho”). Outros pratos desse capítulo são a sopa de peixe à moda do rei Wamba, um rei visigodo do séc. vii, de Vila Velha de Ródão, e a galinha mourisca do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, o mais antigo livro de cozinha português (séc. xv). No capítulo “Lêvedos” aprendi como foi inventada a piza Margherita no século xix, em Itália, e como se faz o bolo do caco, da ilha da Madeira. No capítulo dos “Viscerais” aprendi como se preparam as papas de sarrabulho, do Minho, e o cozido à portuguesa segundo o gastrónomo Olleboma (António Maria de Oliveira Bello, o autor de Culinária Portuguesa, 1928). No capítulo “Silvestres” fiquei a saber como se faz a feijoada de lebre, um sabor feudal, e o leitão assado, um sabor setecentista da Bairrada. No capítulo dos “Salgados” inteirei-me da confeção da caldeirada de enguias, tão típica da Murtosa, e das choras de bacalhau, uma sopa de arroz e caras de bacalhau comida pelos pescadores da Terra Nova. No capítulo dos “Doces” vi como era feito o manjar-branco do referido Livro de Cozinha e os pastéis de nata de Macau, introduzidos na Ásia por um espião inglês. No capítulo dos “Amaros” vem o pudim de chá, uma influência oriental, e o bolo-rei de Olleboma. No capítulo dos “Acres” reparei no peixe no seu molho de escabeche e no bacalhau alabardado, que tão bem aproveita o azeite português. No capítulo dos “Espirituosos” achei curioso o “meio de tornar velho vinho novo (manual do destilador)”. No capítulo dos “Cremosos” encontrei as queijadas de Sintra, que Eça de Queirós refere n’Os Maias. No capítulo dos “Aromáticos” chamou-me a atenção a muamba de galinha à angolana. A secção final intitula-se “É manha de Portugal comer bem, dizer bem e dizer mal”. Eu, cheio de água na boca, digo bem. 

 No livro abundam as referências às trocas alimentares ocorridas com a expansão marítima. A autora cita a BBC Travel: “De facto, a cozinha portuguesa, que se mantém fortemente ofuscada pelas cozinhas de Itália, Espanha e França, talvez seja a cozinha mais influente do mundo”. 

 Na lista bibliográfica encontrei livros muito úteis de referência como, além dos já referidos, o imponente À Mesa dos Reis de Portugal (Círculo de Leitores, 2011), de Ana Isabel Buescu e David Felismino. Encontrei clássicos como as Notas de Cozinha de Leonardo da Vinci, tiradas da internet (há em livro: Althum, 2012), e a Cozinha Arqueológica, de Eça de Queiroz, embora sem referenciação completa (há uma edição da Colares Editora, 2007). Mas não encontrei a aparentada trilogia de livros de José Quitério (Livro de Bem Comer, Assírio & Alvim, 1987; História e Curiosidades, idem, 1992; e Bem Comer & Curiosidades, Documenta, 2015). O único senão do livro é alguma falta de cuidado da bibliografia: por exemplo, a Fisiologia do Gosto, de Jean Brillat-Savarin, está traduzida em português (Relógio d’Água, 2010). Pelo preço de uma refeição num restaurante médio podemos comprar um livro que nos faz comer e chorar por mais!

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