Vale a pena ler este excelente artigo de Miguel sousa Tavares, hoje, no Expresso sobre
a detenção de José Socrates, cujo título é «O Linchamento de José
Sócrates».
Blogue "Narrativa Diária".
«Mal se anunciou a prisão de José Sócrates, o país saiu à
rua em festa virtual... Fui testemunha, madrugada fora, da felicidade de
milhares... O cidadão comum teme que José Sócrates acabe sem castigo.
Eu também”.
Alberto Gonçalves, “DN”, 22.11.14.
O “cidadão comum” e o Alberto Gonçalves
podem estar descansados: pior castigo do que aquele que José Sócrates já
teve é difícil. Tratando-se do cidadão José Sousa, os danos sofridos
por ora ficariam no estrito conhecimento de alguns familiares e amigos
íntimos, aguardando ele, quase de certeza em liberdade, que o julgamento
os agravasse ou não. Mas tratando-se do cidadão José Sócrates Pinto de
Sousa, os danos — pessoais, familiares, políticos e profissionais, agora
e para sempre — são irreversíveis. E à prisão preventiva soma-se a
condenação preventiva e definitiva. Se a vontade do “cidadão comum”
fosse bastante, nem haveria necessidade de julgamento: ele já está
feito.
Ninguém, absolutamente ninguém de
boa-fé, pode dizer neste momento se José Sócrates é culpado ou inocente
das gravíssimas acusações de que foi alvo. Pela simples razão de que um
processo-crime se divide em várias fases — inquérito e acusação, defesa e
contraprova, pronúncia ou arquivamento, e julgamento — e apenas estamos
na primeira. Se a “prisão” (como sintomaticamente escreve Alberto
Gonçalves, em lugar de “detenção”) tivesse já por si o valor de uma
sentença condenatória, estaríamos de regresso à barbárie. Mas os
magistrados não são o “cidadão comum” e a sua justiça é a do Estado de
direito e não a da turba linchadora. A sua primeira tarefa é exactamente
essa, a de tornar clara a diferença.
Pessoas que respeito têm argumentado que
a insistência na crítica aos “pormenores” que envolveram a detenção,
interrogatório e prisão preventiva de Sócrates desviam as atenções do
essencial, que é a gravidade das acusações contra ele. Estão errados,
por várias razões: primeiro, porque isso pressupõe o tal julgamento
prévio de condenação; segundo, porque, não se conhecendo em toda a sua
extensão a acusação e, em extensão alguma, a defesa, a única coisa que
pode ser seriamente discutida é exactamente a parte processual relativa à
detenção, interrogatório e medidas de coacção; e, em terceiro lugar e
sobretudo, porque, ao contrário do que afirmam, não se trata de
pormenores, mas justamente da marca de água onde se encontra ou não o
rasto do respeito pelos direitos de cidadania, justamente quando ele é
mais necessário. Os meus leitores far-me-ão o favor de lembrar que há
muito escrevo sobre a Justiça, não ocultando todas as críticas que
crescentemente me mereceu o que vejo como uma deriva justiceira, muitas
vezes assente no atropelo de leis e princípios básicos de um Estado de
direito, e fundada num especialíssimo regime de absoluta
irresponsabilidade e ausência de controlo externo, como seria
recomendável em democracia. As circunstâncias da “Operação Marquês” não
fizeram senão cimentar as minhas razões.
Para começar, não acho normal nem
saudável que todos os principais crimes mediáticos ou envolvendo os
chamados “poderosos” tenham a instrução a cargo de um único juiz e um
único procurador. É assim há dez anos no TCIC e nem a nomeação de outro
juiz, em Setembro passado, fez com que Carlos Alexandre deixasse de
chamar a si todos os processos principais: Ricardo Salgado, vistos gold,
José Sócrates. Ora, isto contraria um princípio fundamental da justiça
que é o do “juiz natural”: não são os juízes que escolhem os processos,
mas os processos que escolhem os juízes — por escala ou por sorteio. Mas
quando só há um juiz (e um procurador), este princípio é espezinhado e,
pela ordem natural das coisas, o juiz passa a fazer parte da equipa de
acusação com o Ministério Público e a polícia criminal — o que é um
grave desvirtuamento da sua posição, que deve ser de equidistância entre
as partes. E, em termos práticos, um tribunal onde só há um juiz e um
procurador, podendo haver vários, é um tribunal especial — coisa que a
Constituição proíbe, por razões que qualquer democrata compreende.
Depois, e como já muitas vezes disse, não aceito a figura agora em voga da detenção para interrogatório ou para investigação. Considero-a uma interpretação abusiva e intolerável da lei. Respondem que havia o perigo de Sócrates, desembarcado em Lisboa, ir directo a casa destruir provas. Pois que tivessem feito a busca antes, quando ele cá estava: bastava tocar à campainha e mostrar o mandado. Ou então esperavam-no discretamente no aeroporto e perguntavam-lhe se ele consentia numa busca imediata, evitando a detenção.
Nós, os que ainda não votámos nas redes
sociais, precisamos de saber se, no final de um processo justo, José
Sócrates é culpado ou inocente. Mas a verdade é que não tenho grandes
dúvidas de que a detenção prévia, as filmagens após comunicação interna,
o aparato policial no tribunal, a saída em carrinha celular, tudo foi
feito com a clara intenção de o humilhar, num ajuste de contas que vem
bem de trás e que já conhecera dois episódios absolutamente lamentáveis
para a justiça: a tentativa de o incriminar por “atentado ao Estado de
direito” e o vergonhoso processo Freeport.
Não acho aceitável que a PGR faça sair
um comunicado após a detenção em que logo se diz que esta foi fundada na
análise de “movimentos bancários sem justificação conhecida ou
legalmente admissível” — justamente o que cabia provar à acusação e
sobre o que o arguido ainda nem sequer se tinha podido justificar. E não
quero acreditar que o despacho com as medidas de coacção tenha as 236
páginas que vi referidas, pois que isso levaria a pensar que, mesmo com
abundante copy-paste, a decisão já estaria na cabeça do juiz antes mesmo de ele escutar as explicações dos arguidos e os argumentos da defesa.
Acima de tudo, porém, aquilo que não é possível aceitar, sob pena de total capitulação perante o abuso, é a habitual, mas desta vez absolutamente escabrosa, violação do segredo de justiça. E não me refiro aos jornais de estimação do Ministério Público ou ao ‘jornalismo do botox’, mas sim a um jornal como o “Público”, que, citando “fonte próxima do processo”, pespega com toda a acusação do MP no jornal, tratando-a como verdade definitiva e sem ter ao menos o cuidado de perguntar à fonte quais os elementos de prova concretos em que se fundava tal verdade. Não vale a pena alongarmo-nos em considerações sobre a intolerável prepotência que representam estas grosseiras e sistemáticas violações do segredo de Justiça por parte das entidades de investigação criminal: quem não percebe é porque só vai perceber se um dia lhe tocar.
Mas é de uma imensa hipocrisia a vigência de um sistema
de segredo de Justiça que permite que na fase da instrução (que,
compreensivelmente, é aquela em que é excepcionado o princípio da
igualdade entre partes), essa desigualdade legal seja acrescentada por
uma desigualdade ilegal que faz com que a defesa esteja obrigada ao
silêncio, enquanto a acusação litiga publicamente nos jornais, fazendo
passar a sua versão, sem contraditório. Além de mais, é de uma cobardia
sem remissão. E que serve dois fins: instigar o tal julgamento do
“cidadão comum” e ficar bem na fotografia, quando todos, temerosamente,
vêm dizer que “a Justiça funciona”. Como se a simples prisão de
suspeitos e a divulgação pública das suspeitas, sem lugar a defesa,
fosse sinal de que a Justiça funciona! Porque será então que os armários
estão cheios de processos assim iniciados e que, uma vez promovido o
julgamento popular, nunca mais chegaram a julgamento num tribunal?
Tudo isto são pormenores? Pois, talvez.
Mas preparem-se para muitos mais pormenores destes, porque, como diz o
povo, o que começa torto, raramente se endireita. E nós precisamos de
saber, sem uma dúvida razoável, se, no final de um processo justo, José
Sócrates é culpado ou inocente. Nós, isto somos: os que ainda não
votámos nas redes sociais nem celebrámos madrugada fora a sentença que
queremos. Nós os que ainda acreditamos que se fez um longo caminho desde
os tempos em que o imperador consultava a turba para que ela decidisse a
sorte dos condenados.»
Miguel Sousa Tavares, Expresso , 29 de novembro de 2014
2 comentários:
Tem muita piada esta facção dos portectores dos direitos (e não dos deveres) do "Eng." José Sócrates.. Aparentam todos ter algo a esconder. O pior é que angariam parciais pelo seu estatudo e eloquente discurso.Oh Santa Hipócrisia... O sr. Miguel S. Tavares foi casado com uma membro da família Espírito Santo e daí resultou prol. Por outro lado tem uma filha casada com o filho de Ricardo Salgado. Este senhor é tudo menos imparcial. Escrevem como se fossem donos da verdade, escudam-se atrás de supostas quebras de direitos de lei e justiça e que apenas um Juíz tem a cargo os vários processos dos "poderosos". Haja pelo menos um a fazer bem o seu trabalho, digo eu que sou apenas um "cidadão comum".
Desta vez concordo com o Miguel Sousa Tavares e congratulo-me pela publicação do texto pela Deana Barroqueiro!
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