23/04/2017

Saiu no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 12 de Abril de 2017, o meu artigo sobre o romancista Fernando Campos, uma modesta homenagem àquele que eu considero ser um dos mestres do Romance Histórico, que muito me influenciou.


À Memória de Fernando Campos
«Sempre preferi ao conhecimento pessoal dos escritores, cujas obras admiro, a intimidade da sua escrita, a nudez de alma das personagens, a geografia encoberta de mundos criados para regalo do meu imaginário. Como escritora de romance histórico, sem jamais me ter cruzado com Fernando Campos, considero-o uma das influências maiores que me levaram a optar por este género literário que, além da imaginação criativa e do domínio das técnicas narrativas, mais exige do seu autor, em termos de tempo, trabalho de investigação e sacrifício pessoal.

Identifiquei-me de tal modo com a sua concepção de romance, aturada investigação documental, estilo, linguagem e universo ficcional que, por quatro vezes, tive de renunciar a temas e personagens sobre os quais pesquisara longamente e estava já a escrever, por Fernando Campos se ter adiantado a dar vida a D. Francisco Manuel de Melo, Damião de Góis, D. João II e ao falso D. Sebastião. A minha frustração e agastamento esfumavam-se, todavia, na leitura dessas obras que nunca me desiludiam.

«Não quero imitar ninguém, embora saiba que temos sempre em nós algo dos outros. Por isso leio muito pouco de quem poderia imitar». Fiz o mesmo com ele, por isso só mencionarei nesta memória os romances que mais me marcaram.

Apesar da qualidade inquestionável da sua obra e da sua importância como autor de referência, talvez tenha sido o perfil discreto de Fernando Campos, avesso a festivais literários, tertúlias e conferências, a impedi-lo de receber a merecida atenção dos media, que nas últimas décadas, exceptuando o JL, praticamente o ignoraram, privando-o de um maior reconhecimento público.
Bastou uma consulta à internet, para constatar como, fora do breve período do lançamento de um novo livro e, agora, as notícias da sua morte, são escassíssimos os textos sobre o escritor – recolhi cerca de uma dezena, sendo os mais relevantes uma curta entrevista e duas teses de mestrado, uma portuguesa e outra brasileira –, gritante testemunho da pequenez do nosso «universo cultural».

Campos sabia que o esquecimento dos seus maiores faz parte do ADN dos portugueses, um erro que procurou redimir com os seus romances, ao convocar do limbo Damião de Góis, D. Francisco Manuel de Melo, Frei Pantaleão de Aveiro, Gonçalo Mendes da Maia, a Beltraneja e outras personagens femininas, gente injustiçada no seu tempo e ignorada no Portugal dos nossos dias. Quis, assim, «fazer justiça ao esquecimento, (porque) nós esquecemo-nos de nós, somos preguiçosos, não gostamos de nós próprios. Somos uns infelizes e desgraçados, que dizemos mal de nós e não cuidamos das nossas coisas».

Um dos aspectos aliciantes dos seus romances resulta do modo como estabelece as difíceis relações do tempo passado da diegese, com o tempo presente da escrita. Entendia que, se o autor não respeitasse a veracidade dos factos e documentos, os vários níveis de contextualização e o espírito de época (que reflecte a atmosfera humana do tempo passado), acabaria por desacreditar e comprometer o r. histórico, enquanto género literário, ao despojá-lo da sua matriz, daquilo que o distingue dos outros tipos de romance. Campos recorre à ironia e à sátira para se distanciar e desmistificar a História, mas sem nunca cair no grotesco da paródia, tão nociva ao r. histórico como a exaltação cega dos heróis, que essa corrente desconstrutiva repudia.

No âmbito do confronto de ideias e teorias, cabe a discussão das relações da História e da Literatura, em que a verdade histórica, documentada, de uma época passada é confrontada, no tempo presente, pela verdade da ficção que a critica, contraria ou desmente. Campos arroga-se a liberdade de preencher os lapsos, lacunas, rasuras e silêncios da História, criando teses, interpretando e narrando aquilo que a historiografia não pode contar por falta de provas. «Respeito o que está documentado, o resto, invento», disse a propósito da pesquisa de anos para cada romance e do rigor que pautava a sua recriação de factos, ambientes, espaços, costumes, mentalidades e personagens.

Uma concepção de r. histórico mais ligada à História da Literatura do que à Historiografia, construindo em cada obra uma teia de intertextualidades documentais, literárias, filosóficas, religiosas, culturais, que envolvem o leitor e o transportam, em espírito e coração, para essa outra realidade, ficcionada contudo verosímil, onde ele se perde e se reencontra, numa viagem por universos paralelos de Passado/Presente.

  Campos afirmou que não buscava imitar outros escritores, mas tinha consciência de existirem nas suas obras «características aprendidas com os demais». Contudo, se a sua formação clássica foi, nas origens, beber inspiração a Alexandre Herculano, o criador do romance histórico português do Séc. XIX, o seu espírito criativo seguiu-lhe a sugestão para a inovação: O noveleiro pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive, o génio do povo que passou pelo do que passa.

A Casa do Pó é exemplar. Encantou-me, e a milhares de leitores, pela qualidade do texto, da linguagem primorosa, dúctil e variada, próxima das suas fontes, mas também pela novidade do tratamento do r. histórico e pela coragem do autor em escolher personagens e temas portugueses, considerados menores pela elite intelectual.

A partir do texto quinhentista Itinerário da Terra Santa, de Frei Pantaleão de Aveiro, o autor concebe um r. histórico, na sua perspectiva mais abrangente, de género híbrido que, à recriação rigorosa de uma época passada, alia a narrativa de viagens na peregrinação a Jerusalém, a decifração de um enigma e a dolorosa busca do conhecimento do eu por Frei Pantaleão. O relato histórico é feito em 1ª pessoa, com monólogos interiores, descrições subjectivas da intimidade da personagem, que o aproximam do leitor e, simultaneamente, num processo de metaficção, criam um outro Itinerário – o de A Casa do Pó – livre da censura da Inquisição e das convenções do romance tradicional.

Um processo retomado com Damião de Góis, na sua narrativa dentro da narrativa, em A Sala das Perguntas, ou ainda, em A Esmeralda Partida, a partir de dois narradores, Garcia de Resende e a Tia Filipa, em que o primeiro apresenta a versão oficial dos factos, com a sua Crónica de D. João II, uma das fontes históricas de Campos, e a segunda mostra a «verdade íntima» dessa história, indizível no tempo das personagens. E, em O Lago Azul, crónica de menor fôlego, num registo mítico ou fantástico, a voz do vento relata uma vertiginosa sucessão de factos históricos, ao modo de um Tratado dos Descobrimentos de António Galvão, os quais deixam de ser o pano de fundo para a história da família do Prior do Crato, assumindo o estatuto de personagem principal. Narradores que dialogam com o leitor, reflectindo e questionando a história e a sua escrita.

O universo ficcional de Campos não é povoado de heróis épicos, sem mácula, mas de personagens sofridas, de carne e osso, sejam reis e rainhas em luta pelo poder (D. João II e D. Leonor em A Esmeralda Partida), um enigmático vagabundo-rei (A Ponte dos Suspiros), princesas pindéricas a viver de aparências, em O Lago Azul, livres-pensadores perseguidos e amordaçados, como Damião de Góis (A Sala das Perguntas) e D. Francisco Manuel de Melo (O Prisioneiro da Torre Velha) ou gente humilde e extraordinária na sua pequenez, vagamundos da vida percorrendo a senda de um sonho, em busca da felicidade num mundo melhor.
Como qualquer de nós.»
Deana Barroqueiro

19/04/2017

Revista Nova Águia

Saiu ontem o Nº 19 da Revista Nova Águia, na qual participei com o artigo

«AFONSO DE ALBUQUERQUE, DAREALIDADE À FICÇÃO: A MATÉRIA DE QUE SÃO FEITOS OS MITOS»

19º número (1º semestre de 2017): O Balanço da CPLP: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; Afonso de Albuquerque: 500 anos depois.

Desde 2008, "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".

A Águia foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal, em que colaboraram algumas das mais relevantes figuras da nossa Cultura, como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Raul Proença, Leonardo Coimbra, António Sérgio, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.

A NOVA ÁGUIA pretende ser uma homenagem a essa tão importante revista da nossa História, procurando recriar o seu “espírito”, adaptado ao século XXI, conforme se pode ler no nosso Manifesto.

Tal como n’ A Águia, procuraremos o contributo das mais relevantes figuras da nossa Cultura, que serão chamadas a reflectir sobre determinados temas:
http://novaaguia.blogspot.pt/





06/04/2017

Os segredos do negócio de Fátima

O recinto sagrado moderniza-se para o centenário e deverá atingir o melhor resultado financeiro de sempre com a vinda do Papa Francisco. Como se expandiram os negócios de Fátima e se prepara o futuro? Qual é o poder do santuário? Que polémicas e preconceitos ensombram a terra dos “milagres”? A VISÃO levanta o manto sobre a face materialista da cidade que, este ano, espera recer mais de 8 milhões de visitantes.

A poucos meses do momento alto do ano (da visita do Papa Francisco), as ambições tocam o céu.  O Centenário das Aparições inspirou vários filmes sobre Fátima: duas produções de ficção internacional, uma nacional, dois documentários e uma película de animação 3D com o treinador José Mourinho e atriz Dalila Carmo a darem voz ao Papa e à Nossa Senhora.

“Promover” e “aumentar” são os verbos mais conjugados e abençoados por empresários e pela autarquia de Ourém. “Promover” a procissão das velas como potenciadora de mais noites de alojamento, “aumentar” a taxa de ocupação, a estada e o preço médio, e “promover” Fátima nos destinos emergentes: Ásia (Coreia do Sul e Filipinas) e a América (EUA, Brasil, Colômbia e México). “O esforço de promoção não se deve focar no País”, adverte Alexandre Marto. A ACISO tem quase 700 mil euros para “vender” Fátima ao mundo, com a maior fatia do projeto a ser assegurada por dinheiros públicos, nacionais e europeus.

As sombras do negócio

Por estes dias, abundam as notícias de que a capacidade hoteleira de Fátima está há muito lotada para a visita do Papa. A novidade não seria sequer essa – o destino sempre esgota nos dias 12 e 13 de maio “mas sim os valores praticados. Na verdade, porém, persistem alguns mistérios.

Na Casa das Irmãs Dominicanas, um três estrelas onde a VISÃO se instalou na noite de 15 para 16 de janeiro, os pacotes de três dormidas no fim de semana da deslocação papal, a 190 euros cada noite, já não estavam, de facto, disponíveis, mas avisaram que poderia haver desistências.

Esta segunda, 23, a pesquisa no Booking, sítio de reservas hoteleiras na internet, devolvia ainda três unidades em Fátima com quartos entre os 750 e os 4200 euros por noite. “Há sempre quem se aproveite, mas o que é justo cobrar aqui na época alta é o preço de veraneio no Algarve em agosto. Acima disso, não faz sentido”, assume Alexandre Marto, para quem Fátima “continua a ser o destino turístico mais barato do País”.

Na residencial de Júlio Moreira e Maria Rosa, por cima da loja de artigos religiosos e regionais na avenida que leva o nome do mais importante bispo de Fátima (D. José Alves Correia da Silva), ainda se disponibilizavam quartos para duas pessoas, com WC no corredor, mas a reserva era para um mínimo de três noites, a 200 euros.

De onde vem, pois, a ideia de que Fátima já esgotou? “É a maneira que os habilidosos têm de guardar alguns quartos e, chegada a altura da visita do Papa, pedirem o preço que lhes der na gana”, garante Helena Cardinali, dirigente da delegação de Fátima do Sindicato dos Trabalhadores da Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Centro, que reclama 500 pessoas sindicalizadas na freguesia. “Há hotéis a fazer acordos com apartamentos de particulares, alugam-se varandas para dormir ou ver passar o Papa, entre 1000 e 1200 euros, e, em maio, sabe-se sempre de casos de turistas a dormir no chão ou de suítes onde ficam sete pessoas. Enfim, um autêntico faroeste”, resume.

Como o seu próprio apelido indica, Helena veio da área do espetáculo.  Largou 36 anos de vida circense e empregou-se num hotel gerido por freiras. Primeiro no refeitório, depois noutras tarefas. Está em Fátima há 18 anos, seis deles no sindicalismo. No início, quando se deslocava a plenários e congressos, a plateia franzia as sobrancelhas mal ouvia o apelido Cardinali, enquanto ela subia ao púlpito. Então dizia: “Não venho aqui falar da minha vida no circo, mas do circo da vida que é passado em Fátima.” Ilusionista profissional, Helena conhece os truques da economia clandestina. “Das 5 mil pessoas que, na época alta, trabalham em Fátima, cerca de mil são precárias.”

O ordenado mínimo é regra: uma rápida consulta ao portal do Instituto de Emprego e Formação Profissional confirma-o. Mas também se paga abaixo do contratualizado. Ao sindicato chegam relatos de bradar aos céus: mães impedidas de amamentar em instituições privadas e da Igreja, jovens a ganhar um euro por cada cliente angariado para o restaurante, gente a trabalhar das seis da manhã à meia-noite, idas à casa de banho descontadas no ordenado, ou seja, “Fátima é quase um offshore para os direitos dos trabalhadores”, denunciou o sindicato.

E um dia bateu à porta Armindo Vieira... Homem de feições rudes, rosto sulcado pelo sofrimento, uma doença degenerativa obrigou-o a abandonar a construção civil e a reformar-se por invalidez. Mas ele pretendia trabalhar, “sentir-se útil”. Aos 51 anos, o guarda-noturno do Consolata Hotel não contém as lágrimas. Uma e outra vez. As frases saem a custo, entrecortadas por um choro sufocado.

A história é simples: durante sete anos, Armindo Vieira não gozou férias, não recebeu subsídios de qualquer espécie, prémios de antiguidade, nada. Contas feitas, cerca de 30 mil euros terão ficado para trás. Casado, dois filhos, levava para casa cerca de 520 euros. “Sempre que levantava problemas mostravam-me a porta de saída”, recorda.

A unidade hoteleira de Fátima para a qual Armindo ainda trabalha é gerida por uma sociedade que tem como sócio individual maioritário o Instituto Missionário da Consolata. O presidente da administração é o padre Elísio de Assunção. A instituição religiosa dedica-se “à tarefa evangelizadora da Igreja, vivendo em comunhão fraterna e professando a pobreza, a castidade e a obediência no espírito das bem-aventuranças evangélicas”, lê-se na sua página oficial.

Num intervalo dessa missão, entre julho de 2004 e agosto de 2005, teve uma conta no BPN. Mas uma burla praticada pelo gestor bancário, a pretexto de aplicações financeiras, obrigou o Estado e os contribuintes a devolver aos missionários da Consolata cerca de 4,5 milhões de euros.

Armindo Vieira sempre ouvira dizer que padres e freiras “tinham leis diferentes”. Viu-se desesperado. A mulher com ordenado mínimo, a filha a estudar em Lisboa, ele sem poder esticar o dinheiro. “Sabe o que é chegar ao fim do mês, abrir o porta-moedas e só lá ter mesmo moedas? Até a bica deixei de beber...” Tentaram iludi-lo, sentiu-se pressionado a aceitar uma bagatela para esquecer o passado. Recusou “esmolas”. Humilhado, insultado, diz, de olhos rasos de água, ter sofrido retaliações. Passou-lhe então tudo pela cabeça e quase iniciou uma greve de fome. Encaminharam-no para o sindicato e filiou-se.

Pressionada, a entidade patronal regularizou tudo desde 2015 para cá, exceto a antiguidade. Armindo teve direito a férias, aumento no ordenado. O resto, “que é muito”, continua por liquidar, embora o advogado da sociedade garanta terem sido cumpridas todas as obrigações contratuais. O caso foi também denunciado aos serviços da Autoridade para as Condições de Trabalho em Tomar, mas esta nem à VISÃO respondeu.

Armindo Vieira continua, por estes dias, sob o efeito de antidepressivos. Chora, suplica atenção quando desfia o seu rosário. “Aqui, o trabalhador é carne para canhão. Quem vem de fora pensa que isto é uma terra santa, mas quem trabalha com estas instituições é que sofre. O Deus desta gente é o dinheiro”, atalha, por ele, a sindicalista Helena Cardinali, ressalvando as exceções, para as quais “chegam os dedos de uma mão”.

Católico praticante, Armindo continua a ir à missa. “Mas senti um grande abalo na minha fé”, reconhece. Sentado na igreja, escuta as homilias e revolvem-se as tripas. “O discurso é o mesmo do sindicato, mas os padres não fazem nada, é só treta. Para mim, não há milagres”, desabafa, enxugando as lágrimas sem cessar e tentando recuperar o fôlego. “Isto aqui em Fátima não é só rosas, há muitos espinhos. Se andasse toda a gente descalça era uma tragédia”, desabafa. O caso de Armindo foi o mais grave que passou pelas mãos de Helena Cardinali. Mas ela jamais esquecerá a resposta ouvida durante um encontro na reitoria, com os responsáveis do santuário, quando tentava solucionar o problema de outra trabalhadora: “Isto aqui é zona branca. Não se aplicam leis.”

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