Saiu no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 12 de Abril de 2017, o meu artigo sobre o romancista Fernando Campos, uma modesta homenagem àquele que eu considero ser um dos mestres do Romance Histórico, que muito me influenciou.
À Memória de Fernando Campos
«Sempre preferi ao conhecimento pessoal dos escritores, cujas obras admiro, a intimidade da sua escrita, a nudez de alma das personagens, a geografia encoberta de mundos criados para regalo do meu imaginário. Como escritora de romance histórico, sem jamais me ter cruzado com Fernando Campos, considero-o uma das influências maiores que me levaram a optar por este género literário que, além da imaginação criativa e do domínio das técnicas narrativas, mais exige do seu autor, em termos de tempo, trabalho de investigação e sacrifício pessoal.
Identifiquei-me de tal modo com a sua concepção de romance, aturada investigação documental, estilo, linguagem e universo ficcional que, por quatro vezes, tive de renunciar a temas e personagens sobre os quais pesquisara longamente e estava já a escrever, por Fernando Campos se ter adiantado a dar vida a D. Francisco Manuel de Melo, Damião de Góis, D. João II e ao falso D. Sebastião. A minha frustração e agastamento esfumavam-se, todavia, na leitura dessas obras que nunca me desiludiam.
«Não quero imitar ninguém, embora saiba que temos sempre em nós algo dos outros. Por isso leio muito pouco de quem poderia imitar». Fiz o mesmo com ele, por isso só mencionarei nesta memória os romances que mais me marcaram.
Apesar da qualidade inquestionável da sua obra e da sua importância como autor de referência, talvez tenha sido o perfil discreto de Fernando Campos, avesso a festivais literários, tertúlias e conferências, a impedi-lo de receber a merecida atenção dos media, que nas últimas décadas, exceptuando o JL, praticamente o ignoraram, privando-o de um maior reconhecimento público.
Bastou uma consulta à internet, para constatar como, fora do breve período do lançamento de um novo livro e, agora, as notícias da sua morte, são escassíssimos os textos sobre o escritor – recolhi cerca de uma dezena, sendo os mais relevantes uma curta entrevista e duas teses de mestrado, uma portuguesa e outra brasileira –, gritante testemunho da pequenez do nosso «universo cultural».
Campos sabia que o esquecimento dos seus maiores faz parte do ADN dos portugueses, um erro que procurou redimir com os seus romances, ao convocar do limbo Damião de Góis, D. Francisco Manuel de Melo, Frei Pantaleão de Aveiro, Gonçalo Mendes da Maia, a Beltraneja e outras personagens femininas, gente injustiçada no seu tempo e ignorada no Portugal dos nossos dias. Quis, assim, «fazer justiça ao esquecimento, (porque) nós esquecemo-nos de nós, somos preguiçosos, não gostamos de nós próprios. Somos uns infelizes e desgraçados, que dizemos mal de nós e não cuidamos das nossas coisas».
Um dos aspectos aliciantes dos seus romances resulta do modo como estabelece as difíceis relações do tempo passado da diegese, com o tempo presente da escrita. Entendia que, se o autor não respeitasse a veracidade dos factos e documentos, os vários níveis de contextualização e o espírito de época (que reflecte a atmosfera humana do tempo passado), acabaria por desacreditar e comprometer o r. histórico, enquanto género literário, ao despojá-lo da sua matriz, daquilo que o distingue dos outros tipos de romance. Campos recorre à ironia e à sátira para se distanciar e desmistificar a História, mas sem nunca cair no grotesco da paródia, tão nociva ao r. histórico como a exaltação cega dos heróis, que essa corrente desconstrutiva repudia.
No âmbito do confronto de ideias e teorias, cabe a discussão das relações da História e da Literatura, em que a verdade histórica, documentada, de uma época passada é confrontada, no tempo presente, pela verdade da ficção que a critica, contraria ou desmente. Campos arroga-se a liberdade de preencher os lapsos, lacunas, rasuras e silêncios da História, criando teses, interpretando e narrando aquilo que a historiografia não pode contar por falta de provas. «Respeito o que está documentado, o resto, invento», disse a propósito da pesquisa de anos para cada romance e do rigor que pautava a sua recriação de factos, ambientes, espaços, costumes, mentalidades e personagens.
Uma concepção de r. histórico mais ligada à História da Literatura do que à Historiografia, construindo em cada obra uma teia de intertextualidades documentais, literárias, filosóficas, religiosas, culturais, que envolvem o leitor e o transportam, em espírito e coração, para essa outra realidade, ficcionada contudo verosímil, onde ele se perde e se reencontra, numa viagem por universos paralelos de Passado/Presente.
Campos afirmou que não buscava imitar outros escritores, mas tinha consciência de existirem nas suas obras «características aprendidas com os demais». Contudo, se a sua formação clássica foi, nas origens, beber inspiração a Alexandre Herculano, o criador do romance histórico português do Séc. XIX, o seu espírito criativo seguiu-lhe a sugestão para a inovação: O noveleiro pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive, o génio do povo que passou pelo do que passa.
A Casa do Pó é exemplar. Encantou-me, e a milhares de leitores, pela qualidade do texto, da linguagem primorosa, dúctil e variada, próxima das suas fontes, mas também pela novidade do tratamento do r. histórico e pela coragem do autor em escolher personagens e temas portugueses, considerados menores pela elite intelectual.
A partir do texto quinhentista Itinerário da Terra Santa, de Frei Pantaleão de Aveiro, o autor concebe um r. histórico, na sua perspectiva mais abrangente, de género híbrido que, à recriação rigorosa de uma época passada, alia a narrativa de viagens na peregrinação a Jerusalém, a decifração de um enigma e a dolorosa busca do conhecimento do eu por Frei Pantaleão. O relato histórico é feito em 1ª pessoa, com monólogos interiores, descrições subjectivas da intimidade da personagem, que o aproximam do leitor e, simultaneamente, num processo de metaficção, criam um outro Itinerário – o de A Casa do Pó – livre da censura da Inquisição e das convenções do romance tradicional.
Um processo retomado com Damião de Góis, na sua narrativa dentro da narrativa, em A Sala das Perguntas, ou ainda, em A Esmeralda Partida, a partir de dois narradores, Garcia de Resende e a Tia Filipa, em que o primeiro apresenta a versão oficial dos factos, com a sua Crónica de D. João II, uma das fontes históricas de Campos, e a segunda mostra a «verdade íntima» dessa história, indizível no tempo das personagens. E, em O Lago Azul, crónica de menor fôlego, num registo mítico ou fantástico, a voz do vento relata uma vertiginosa sucessão de factos históricos, ao modo de um Tratado dos Descobrimentos de António Galvão, os quais deixam de ser o pano de fundo para a história da família do Prior do Crato, assumindo o estatuto de personagem principal. Narradores que dialogam com o leitor, reflectindo e questionando a história e a sua escrita.
O universo ficcional de Campos não é povoado de heróis épicos, sem mácula, mas de personagens sofridas, de carne e osso, sejam reis e rainhas em luta pelo poder (D. João II e D. Leonor em A Esmeralda Partida), um enigmático vagabundo-rei (A Ponte dos Suspiros), princesas pindéricas a viver de aparências, em O Lago Azul, livres-pensadores perseguidos e amordaçados, como Damião de Góis (A Sala das Perguntas) e D. Francisco Manuel de Melo (O Prisioneiro da Torre Velha) ou gente humilde e extraordinária na sua pequenez, vagamundos da vida percorrendo a senda de um sonho, em busca da felicidade num mundo melhor.
Como qualquer de nós.»
Deana Barroqueiro