Escrever romance histórico é um óptimo pretexto para continuar a estudar"
O período da Restauração está na base do último romance da alumna Deana Barroqueiro. Porque diz que é difícil "escrever em poucas páginas", acaba de lançar 1640, com quase 900.
Antiga aluna do curso de Filologia Românica da FLUL, diz que o romance histórico é o que prefere e onde quer ficar. Para 1640 investigou. Muito. Mas revela que a tão recente troika também a ajudou a criar. Os quatro guias que escolheu para personagens fazem o resto.
Deana Barroqueiro escreveu, escreveu, garantindo que foi o romance que lhe disse onde e quando devia parar. A conversa com o FLUL Alumni foi igual, só parando quando chegámos às recordações da FLUL.
Entrevista: Tiago Artilheiro | Fotografia: Direitos Reservados
Porque é que se interessou pelo período da Restauração? Onde encontrou a inspiração?
Deana Barroqueiro (DB): Escrevi o primeiro romance histórico de grande fôlego, D. Sebastião e o Vidente, em 2006, que terminava com o desastre de Alcácer Quibir, um momento negro na História de Portugal, a que se seguiu a perda da nacionalidade sob o domínio espanhol. Começava, então, a sentir que o projecto europeu não se estava a concretizar do modo como fora sonhado e que, apesar de alguns benefícios, Portugal perdera muito da sua autonomia enquanto nação. Talvez fosse isso que me levou a pensar no tema do Sebastianismo, recorrente nos tempos de crise em Portugal, e em Brás Garcia Mascarenhas, um herói da Restauração, poeta e autor “Viriato Trágico”, a suspirar pela independência. Como levo sempre muito tempo de preparação e estudo para cada romance, cheguei a 2011 apenas com um esboço da vida do poeta épico seiscentista. Com a vinda da fatídica troika, sofri com a humilhação a que ela nos sujeitou, enquanto povo, e isso fez-me ver como a História se repete, embora em diferentes moldes ou circunstâncias. Senti que o tema da Restauração podia servir de metáfora para o período cinzento que atravessávamos, um grito de revolta e um aceno de esperança. E o romance começou a tomar forma.
Demonstra ter um domínio concreto a nível histórico. Ficou “doutorada” neste período?
DB: Fui, durante 35 anos, professora de Língua e Literatura Portuguesa, no tempo em que os programas do ensino secundário eram bastante exigentes e muito vastos, passando por todas as épocas e períodos literários. Assim, para ensinar bem a Literatura, tinha de estudar História, para poder dar aos alunos o enquadramento necessário à sua melhor compreensão. Sempre tive uma curiosidade insaciável e um desejo imenso de aprender, até hoje não parei de estudar e, como tenho 72 anos, fui adquirindo uma boa bagagem.
Temos 4 personagens guias no livro. Em que medida cada uma das personagens é o melhor cicerone pelo período de 50 anos (1617-1667) que o livro aborda?
DB: Creio que cada uma delas cumpre o seu papel, que é o de apresentarem perspectivas “angulares” e diferentes pontos de vista, que todavia se cruzam e se completam, sobre os sucessos e os actantes daqueles 50 anos tão caóticos e contraditórios, mas também tão vívidos e apaixonantes. O Poeta Brás com a sua vida aventurosa de homiziado narra sucessos de Espanha e Brasil; a Professa-poetisa, Violante do Céu revolta-se contra a ingrata condição da mulher seiscentista e mostra a vivência licenciosa dos conventos; o Prosador D. Francisco Manuel de Melo, fidalgo e militar, dá testemunho dos conflitos e guerras de Espanha com a Europa; por último, o grande Pregador, padre António Vieira, com a sua activa participação na política portuguesa, mostra as relações diplomáticas de Portugal com as outras nações europeias. Deste modo, os guias fornecem aos leitores um conhecimento multifacetado da época, que é a mais-valia do romance histórico, face aos outros tipos de romance.
Os seus livros têm sempre personagens muito vivas. Muitas vezes heróis…
DB: Quando comecei a escrever romances, iniciei-me com um projecto que pretendia criar uma saga de aventuras, à maneira de Emílio Salgari, com figuras reais portuguesas, destinado a um público-alvo de jovens pré-universitários e universitários. O período dos Descobrimentos é um inesgotável manancial de “heróis”, ou pelo menos, de figuras singulares, com vivências mais fabulosas do que a própria ficção. Escrevi sete romances, mas desisti, quando uma jornalista, que fazia crítica literária no extinto Mil Folhas, disse que não sabia como havia de classificar os meus romances, se para crianças se para adultos. Ora, se, em vez de escritora portuguesa, eu fosse a J. P. Rowling, tal questão não se punha, seria até uma virtude… Passei a escrever para adultos.
Escreve livros grandes… 1640 tem quase 900 páginas. Escreve de seguida? Como fez para não perder o fio condutor?
DB: É impossível, pelo menos para mim, escrever sobre temas ou períodos da História de Portugal, que é riquíssima, em poucas páginas; só a contextualização dos lugares, ambientes, personagens, se for feita com algum pormenor, consome muito espaço. Não escrevo de seguida, concebo os meus romances como puzzles, complexos, por vezes labirínticos, para os quais preciso de encontrar as peças certas, as que se encaixam harmoniosamente no todo, sem serem forçadas. Estou sempre a reler, a fazer e a desmanchar, à medida que vou estudando, procurando e descobrindo, num mar de histórias, a tal peça que o livro aceita, porque é o romance que me comanda e que só termina quando se dá por satisfeito e já não me permite escrever sequer uma palavra.
Porque é que só escreve romances históricos?
DB: Quando me aposentei e quis retomar a minha escrita, que abandonara para me dedicar ao ensino, percebi que o meu cérebro era uma espécie de biblioteca virtual com uma imensidade de livros sobre variadíssimos temas, sobretudo de Literatura e História, cujo conhecimento eu poderia partilhar com outros. E os portugueses sabiam tão pouco da sua História e do seu passado colectivo, que seria um desafio despertar-lhes a curiosidade e o interesse. Por outro lado, escrever romance histórico é um óptimo pretexto para continuar a estudar. E assim foi…
O historiador francês Paul Veyne disse que “a história é uma narrativa de eventos: tudo o resto resulta disso; o vivido, tal como sai das mãos do historiador, não é dos actores; é uma narração”. É assim que encara a actividade literária? Acontece o mesmo com o escritor?
DB: O historiador, quando interpreta os documentos em papel, pedra, etc., também ficciona os factos esbatidos pela poeira do tempo, não está isento de subjectividade, sobretudo quando trata de épocas pouco documentadas. Mesmo quando se limita a uma árida transcrição de datas e informações de sucessos, o que pouco mostra sobre o pulsar da vida dos seus actantes. O escritor de romance histórico é muito mais livre, não tem que reinterpretar ou reconstituir a História, segundo o ditame da verdade. O romance é, antes de mais, uma criação estética, com fim lúdico, destinada a dar prazer ao leitor. Contudo, isso não deve significar ignorância, facilitismo ou desleixo do autor, em relação ao tema e matéria que vai tratar. O escritor deve ter um “espírito histórico”, como diz Miguel Real, um grande domínio dos factos históricos da época narrada, das formas de representação e governo, dos conflitos políticos e institucionais”, dos seus ritos e mitos, dos costumes, das mentalidades, da vivência quotidiana, do léxico da época. Só assim, o romance se fará eco das múltiplas verdades e perspectivas sobre os factos históricos. É uma questão de honestidade intelectual e de respeito pelo leitor, o que nem sempre acontece.
O que é que encontra no Renascimento e nos Descobrimentos que não encontra noutros períodos?
DB: No Renascimento, a arte, a abertura do espírito para as novas ideias (que a Inquisição sufocou posteriormente), a plêiade de escritores, cientistas e estadistas que fizeram do século XVI, o século de ouro português. Era tudo novo: novos mundos, novas ciências, novas gentes, novas artes, nova História. A Literatura moderna nascia, os escritores eram originais. Nós agora já não inventamos nada, copiamos ou dizemos de outra maneira o que eles disseram, quando não destruímos o que eles criaram de raiz. Os Descobrimentos ou Expansão Marítima Portuguesa, apesar de todos os aspectos negativos que lhes queiramos assacar, foram a Grande Aventura do Desconhecido, uma longa saga de coragem e desafio da morte, a busca do conhecimento e a sua contribuição para a transformação da Europa, influenciando outras nações em todos os continentes. Sem os Descobrimentos Portugueses, o mundo hoje seria outro. Melhor ou pior? Não sei. Diferente, seguramente.
Sei que este não é o ponto final na série sobre o período da Restauração… Que livro se vai seguir?
DB: Penso escrever sobre os filhos de D. João IV, para dar aos meus leitores uma perspectiva mais abrangente do século XVII, as últimas décadas são igualmente apaixonantes, cheias de sucessos picantes.
O que pode revelar, desde já, sobre os próximos livros que vai lançar?
DB: Estou a terminar um livro de culinário histórico. Embora tenha muitas receitas, com a sua história, o livro tem mais a ver com a evolução de gostos e paladares, desde as suas origens até aos nossos dias, com muitas historietas e curiosidades à mistura, dando preferência às ligações de Portugal com o mundo, no universo da gastronomia. Sairá, espero, a tempo da Feira do Livro de Lisboa. O segundo livro (tenho de ter sempre dois, para desenjoar) é um romance com uma forma diarística e o protagonista é uma figura bastante controversa. Só deve ficar pronto em 2019, e é tudo o que posso dizer por agora.
Em que medida a FLUL contribuiu para a sua formação e carreira enquanto autora?
DB: Proporcionou-me instrumentos para eu me reconstruir enquanto Ser, abriu-me horizontes culturais, que a modéstia da minha família de baixa escolaridade não podia oferecer-me. Foi como uma rampa de lançamento para quem, como eu, ansiava por voar.
O que recorda da sua passagem pela FLUL?
DB: Certos professores, como Lindley Cintra e Urbano Tavares Rodrigues, que pelo seu saber, carácter e posição política, face à ditadura, ajudaram à minha formação, como pessoa. E recordo com emoção o Grupo de Teatro da Faculdade de Letras, ao qual pertenci desde a sua formação, sobretudo, a peça O Avejão, em que desempenhei o papel principal feminino, contracenando com os meus queridos amigos Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo e Luís Lima Barreto.
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