28/06/2018

Feitos ao bife (à Stroganov)

Quando um jornalista é culto e se dá ao trabalho de pesquisar e investigar muitos temas além do tema que trata (e este género de jornalista é cada vez mais raro, infelizmente), pode transformar uma crónica sobre futebol numa deliciosa peça literária, que até ensina História. Parabéns, Rui Miguel Tovar, e porei a sua história sobre o Stroganov no meu livro de culinária histórico, se me der autorização.

Feitos ao bife (à Stroganov)
Rui Miguel Tovar
Diário de Notícias

Sepultado em São Petersburgo, o barão Grigori Alexandrovitch Stroganov dá o nome ao bife, com a preciosa ajuda da segunda mulher (Juliana), filha da marquesa de Alorna. O elo português está sempre presente, até um cego vê 


O Mundial já não é o que era? A pergunta nada tem de retórico, juro. Afinal, sempre há equipas sensação nestas andanças futebolísticas de alto gabarito (e faz parte do folclore escrever, no final, sobre todo o tipo de cenários e surpresas, fazer listas com os melhores, os piores, os espantosos, as desgraças, you name it). 
 A ouvir há poucochinho o treinador alemão (a cabeleireira da minha mãe gosta especialmente dele, espero que não seja pelo penteado) referir os erros cometidos com o México e à necessidade - urgência? - de aprender com os desacertos e as escorregadelas, vêm-me à lembrança as conferências de imprensa dadas em catadupa pelos jogadores portugueses. À sacramental pergunta "o que tem a dizer sobre o comportamento da selecção no jogo com Marrocos?", os nossos ladinos rapazes fecham-se em copas e, incapazes de analisarem a situação com frieza, debitam tiradas do género "vencemos, não foi? isso é que importa!". Cá para mim, deviam orgulhar-se da vitória, escusado será dizer, mas ser capazes, ao mesmo tempo, de reconhecer a evidência: temos de jogar melhor, temos equipa para jogar melhor, temos de vencer e convencer. Estamos à beira de fazer história no Mundial de futebol, caramba!

Caso contrário, estamos feitos ao bife. Tártaro? Antes fosse. É mais bife stroganoff, às tirinhas. Para tal, é preciso sair daqui da Rússia e voltar a Portugal, mais concretamente ao bairro de Alvalade. Sai do metro, ali na praça, do lado do cinema, e segue em frente até virar na primeira à esquerda. Agora sim, podemos conspirar à vontade. Estamos na Marquesa de Alorna. Quem?

Ora aí está. A senhora chama-se Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre (futura marquesa de Alorna). Vive 88 anos, uma proeza no século XIX. Nesse considerável hiato temporal, Leonor leva uma vida deveras atribulada. Para abrir o apetite, é feita prisioneira aos 8 anos, juntamente com mãe e avó, no convento de São Félix em Chelas, por ser filha do D. João de Almeida (2.º marquês de Alorna), suspeito do conhecimento do crime dos Távoras. A ira do marquês de Pombal só lhe passa com a subida ao trono de D. Maria I. Aí, Leonor é libertada finalmente em 1777, aos 27 anos. Na prisão, estuda as obras de Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Diderot, entre outros, e dedica-se à composição de poesia, que lhe valerá uma obra da sua autoria chamada Poesias de Chelas. Além de escritora, é pintora e tradutora (domina admiravelmente quatro idiomas, com excelência no francês).

Em liberdade, Leonor demora dois anos a encontrar marido e casa-se em 1979 com Karl von Oyenhausen-Gravenburg. Vivem em Viena, por conveniência de trabalho militar do brigadeiro. Lá, consomem o amor com filhos e mais filhos. Ao todo, oito. A terceira é Juliana Maria Louise Sofia Carolina von Oyengauzen, nascida em 1782. Aos 3 anos, estabelece-se em Portugal por força do novo trabalho da mãe como dama de honor de Carlota Joaquina. Tal como Leonor, também Juliana faz-se mulher de letras. Só que sofre um desgosto enorme quando é obrigada a casar-se em 1800 com José Maria de Aires, conde de Ega e recém-empossado embaixador português da corte espanhola em Madrid. É lá que Juliana encontra o verdadeiro amor, o barão Grigori Alexandrovitch Stroganov.

E agora? Grande cambalacho. Indiferente à opinião das pessoas reais ou surreais, Juliana torna-se mesmo amante de Stroganov. Até 1807, altura em que o casal regressa a Portugal, onde o conde de Ega recebe com entusiasmo as tropas de Napoleão e até faz parte do novo governo liderado por Junot, na organização de festas in. Coincidência das coincidências, Juliana encosta-se a Junot e torna-se sua amante oficial. E agora? Grande cambalacho, parte 2. A vida dá muitas voltas e o conde de Ega volta a sair de Portugal, novamente na companhia de Juliana, agora à pressa, até França, devidamente protegido por Napoleão a troco de uma pensão de 60 mil francos por ano.

O dinheiro não é tudo. Pensa Juliana. Em 1811, abandona o conde e corre para os braços de Stroganov, então a curtir o ambiente na Suécia. Dez anos depois, Stroganov é chamado pelo imperador Nicolau para trabalhar em São Petersburgo e faz-se acompanhar por Juliana - além da sua mulher, claro.  E agora? Grande cambalacho, parte 3. A sociedade daqui (de São Petersburgo) vai aos arames com o affaire e Stroganov convive com a crise na boa-vai-ela, sem ligar às coscuvilhices. Quando a mulher morre, em 1824, marca casamento com Juliana em 1827, na cidade de Dresden (capital da Saxónia).

A cerimónia é mal vista pela sociedade. Mais uma vez, Stroganov passa por cima desse pseudo-dilema com uma classe do além, até porque vive feliz com Juliana até ao fim dos seus dias, em 1857. Trinta anos de amor, os últimos cinco a comer bife à Stroganov. Como assim? O barão piora gradualmente de saúde e acaba por cegar. Nesses tempos, Juliana é quem lhe dá de comer e corta-lhe o bife às tirinhas. Lá está, bife à Stroganov. Às tirinhas.

Que é como Portugal joga, sem alma nem nada. Valha-nos São Ronaldo, primeiro, e São Patrício, depois. De resto, uma pobreza franciscana. Excepção feita às bolas paradas. Aí, alto e para o baile: dos quatro golos, um é de penálti, outro de livre directo e mais um de canto curto - em falta, só o frango de De Gea. Falta só um jogo na fase de grupos, o do desempate. Ou vamos (como em 1966, 2006 e 2010) ou já fomos (1986, 2002 e 2014). Com o Irão, basta-nos o empate para seguir em frente. Isto se queremos continuar à Stroganov. Se nos aventurarmos em conciliar vitória com jogo bonito, é um bife tártaro. Precisamos de futebol cru, sem cozinhados nem molhos. Num prato apresentável, de preferência.

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