Deana Barroqueiro: “O jogo da sensualidade é uma maravilha,
melhor do que o truca-truca”
Ana Tomás - revista Delas
Lisboa 06/11/2018 - Entrevista com a escritora Deana Barroqueiro , a propósito do livro Contos Eróticos do Velho Testamento (João Silva/Global Imagens ) |
Mas há que ter cuidado com os excessos e com os extremismos, avisa a escritora, de 73 anos, em entrevista ao Delas.pt, a propósito do movimento que contextualiza esta reedição. “Acho que o #Metoo tem de ter cuidado, porque senão qualquer dia estamos castradas como antigamente. Na relação de amor entre homem e mulher, entre dois homens ou duas mulheres, o jogo da sensualidade é uma maravilha, melhor do que o truca-truca”, diz sem papas na língua. Nesta entrevista, a escritora fala também da linguagem poética que usou para amenizar cenas mais violentas a que o texto bíblico faz referência, de como as grandes religiões monoteístas formataram e condicionaram a liberdade e os direitos das mulheres e da sua paixão pela história de Portugal. “Quando dizem muito mal dos Descobrimentos, não sabem nada [do assunto], quando começam a falar, vejo logo que não sabem nada, não leram nada”.
Esta é uma reedição de dois livros num só volume – os ‘Contos Eróticos do Velho Testamento’ e os ‘Novos Contos Eróticos do Velho Testamento’. Por que quis, 15 anos depois, das primeiras edições juntar estes dois livros num só volume?
Esses dois livros já tiveram várias edições, mas sempre relativamente pequenas. Actualmente, o movimento #Metoo fez-me pensar que há 15 anos eu estava a fazer o meu movimento #Metoo sozinha. Sempre me bati contra qualquer tipo de discriminação, sobretudo a das mulheres. E na minha geração batalhámos muito contra isso. Era preciso trabalhar muito mais para conseguir ficar em pé de igualdade, quer no trabalho, quer noutras situações, com o homem. E há uma coisa que sempre me incomodou: as três principais religiões do Ocidente e do Médio Oriente (o Islamismo, o Judaísmo e o Cristianismo) têm uma concepção da mulher muito castradora, sobretudo em relação ao sexo, em relação às sensações das mulheres, que nos leva até à mutilação genital e a toda a brutalidade a que estão sujeitas as mulheres. E essas três religiões e essas concepções vão buscar a sua génese ao Velho Testamento, sobretudo ao livro de Génesis. São dadas como bom exemplo, mas são histórias de muito mau exemplo, onde os homens aparecem sempre como protegidos de Deus, justos, quando são violentos, dominadores, hipócritas, sempre com o nome de Deus na boca para justificarem as brutalidades que fazem. Têm um terror em relação à mulher e uma necessidade de a dominar. E as mulheres são sempre as culpadas de tudo, desde o Pecado Original, em que o homem se deixou tentar; aparentemente, eles pecam, mas elas é que são as culpadas.
Mas a opção de reunir os dois livros num, deveu-se a quê exactamente?
Eu já tive uma edição em que os contos apareciam cronologicamente e faziam uma espécie de romance – publicados como ‘Tentação da Serpente’ e o ‘Romance da Bíblia’ –, mas perdiam a estrutura que eu lhes quis dar: no primeiro livro, ‘Os Contos Eróticos do Velho Testamento’ são as histórias das mulheres sofridas, as vítimas, e nos ‘Novos Contos Eróticos do Velho Testamento’ são as mulheres que sobreviviam – sendo, às vezes, mais perversas do que os homens. Portanto, neste livro há de novo esse contraponto entre essas mulheres vítimas e vencedoras.
Neste livro, Deus também é retratado como uma figura temperamental e constantemente frustrada com a sua criação – a humanidade – e daí estar sempre a castigá-la.
Este Deus do Velho Testamento é um Deus feito à imagem dos homens bárbaros de então.
Não é o Homem que é feito à imagem de Deus?
Não é Deus que cria o homem. As divindades, os deuses são criados pelos homens. Portanto, este Deus é criado à imagem do homem de há 4000 anos. É um Deus cruel, temperamental, que está sempre a desculpar o homem e a culpar a mulher. Segundo a minha concepção de divindade, Deus não podia ser assim. Tinha de ser um ente absolutamente divino, generoso para todos os seres – se é o Criador como é que despreza tanto a sua própria criação, a destrói, de tal maneira lhe impõe tantos castigos, fazendo vítimas inocentes? É absolutamente arbitrário. Como é que podem dizer que aquele livro é sagrado, quando a maior parte das suas histórias, obviamente, são escritas por homens, a partir dos mitos da Mesopotâmia, do Egipto e outros? Basicamente, o meu livro é um livro de contos históricos. Depois, o elo de ligação é esse erotismo, que perpassa através das histórias do Velho Testamento, porque o erotismo devia ser qualquer coisa de delicioso, mas aqueles homens fanáticos queriam repudiá-lo e é através do castigo das mulheres que isso acontece. Eu tentei recriar as histórias dessas tribos, de acordo com aquilo que conhecemos historicamente, através dos documentos – até li um livro de medicina egípcio de há 3000 anos. Li tudo o que consegui apanhar. Foi escrito com o máximo de realismo que consegui dar, através do olhar de uma espécie de cronista ateu, que se limita a contar as histórias, de um ponto de vista feminino.
Deana Barroqueiro é autora de vários romances históricos. Os contos que agora reedita neste “Contos Eróticos do Velho Testamento” tiveram a sua primeira edição há 15 anos [João Silva/Global Imagens]
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Eu queria dar uma visão das mulheres daquele tempo, também do ponto de vista de uma mulher. Poucas mulheres têm tido a coragem de falar sobre a sua sexualidade e da sexualidade feminina. Esta é mais falada por homens, que eu acho que não têm assim tanto conhecimento como nós poderemos ter das nossas sensações. E eu quis tratar dessas sensações. As mulheres têm uma capacidade imaginativa enorme.
Mas, como referiu já nesta entrevista e o seu livro também faz notar, esta é uma obra que também mostra muita violência sexual contra as mulheres e que ainda existe, um pouco por todo o mundo. Como é que no meio dessa violência consegue extrair esse erotismo e, ainda mais, do ponto de vista feminino?
Eu quis pôr todas as mulheres do Velho Testamento, portanto usei outros textos além do livro do Génesis, como os provérbios em que a mulher é muito mal tratada; e o desafio era não esconder nenhuma daquelas violências, embora trantando-as com uma linguagem que fosse poética. Mostrando a situação, mas sem entrar na pornografia. E nas poucas cenas em que realmente há uma relação saudável – e são pouquíssimas, há o lavrador Boaz que é uma figura normal, simpática, sensível – nessas cenas eu descrevo as sensações com maior poesia. Uso a linguagem poética porque também estão ali as minhas sensações. É através dos olhos das mulheres, mas é através do meu olhar também. As sensações humanas são iguais desde o princípio dos tempos, nós podemos verbalizá-las de maneira mais elegante, mais filosófica ou mais intelectual, mas as nossas sensações são as mesmas desde que a primeira mulher olhou para um barbudo, peludo, meio macaco e o achou sexy. É físico, embora depois o cérebro nos pregue grandes partidas.
Um livro como este terá de ter uma vertente de ficção quase em proporção equivalente com a histórica, ou não?
[Risos] Eu fui um bocadinho perversa. Tenho uma Bíblia muito boa, comentada cientificamente pelos [Frades] Capuchinhos, aproveitei essas explicações científicas para as pôr em situação. Depois imaginei essas mulheres num contexto em que não houvesse milagres. Agora a Igreja diz que é tudo simbólico, mas quando eu era miúda e dei catequese, os padres apresentavam aquelas histórias como se fossem reais. Eu procurei, no primeiro conjunto de contos, perceber como é que aquelas mulheres sofredoras viam aqueles patriarcas, aqueles maridos, aqueles amantes. Portanto, são oito patriarcas vistos por nove mulheres diferentes, cada conto é um olhar feminino. O Abraão tem direito a dois, porque é o ‘cafajeste’ maior, vende Sara duas vezes para se salvar da morte, porque como ela é tão bela tem medo que o matem para que fique viúva. E expulsa Agar para o deserto com o filho. Os segundos contos têm mais a ver com casos clínicos.
Como assim?
Porque, como é que se explica, se não se acreditar nos milagres, como por exemplo, que uma jovem fica possessa do demónio Asmodeu, que se apaixona por ela? Ora casam a menina com um velho, depois o velho morre na noite de núpcias e ela, pela lei do levirato, é obrigada a casar sucessivamente com outros seis homens da família. Isto é uma violência brutal para uma mulher. Na época actual, como é que se explica que uma jovem possa matar sete maridos e continue virgem? Seria uma histérica-esquizofrénica? Fartei-me de ler casos de psiquiatria, para explicar certos comportamentos aberrantes. Como o de Sansão. Sansão, nos filmes de Hollyood, é aquela figura épica e simpática, no entanto tem uma enorme apetência de matar, vê-se que ele provoca até gente inocente para a matar. Há uma série de casos assim, uma série de vigarices e de enganos, que Deus justifica. Esses Novos Contos já são mais irónicos do que propriamente eróticos, embora também tenham erotismo. No último conto do segundo livro, o da Ester, eu já estava fartíssima de pôr cenas de banhos e outras situações eróticas. A imaginação também tem limites. Então surgiu-me uma ideia salvadora: “esta mulher não se despe”. E o conto tornou-se no mais erótico de todos. São truques que as mulheres fazem e as escritoras também [risos]
Lendo o seu livro, conclui-se que, em muitos casos, a humanidade, ou boa parte dela, não mudou muito a maneira como vê o sexo e a sexualidade da mulher.
Não. Falando da agressão sexual, que não é só física, mas verbal e psicológica. Quando eu era jovem, e eu tenho 73 anos, não havia piropos, havia obscenidades, raramente se ouvia um piropo, os homens diziam-nos coisas ordinaríssimas. Depois era o apalpar. O objectivo era ofender e humilhar a mulher que não podiam ter.
Na pesquisa para escrever estes contos eróticos encontrou mulheres ou culturas onde as mulheres fossem de alguma forma empoderadas?
Sim, havia muitas zonas de África em que a sociedade era matriarcal e elas tinham muita força. A rainha Ginga em Angola, por exemplo, ou noutro contexto as persas e as indianas, antes do domínio do islamismo. Havia sociedades em que se via essa força e importância das mulheres, como guerreiras, estando ao lado dos homens [noutras actividades] que depois se perdem completamente com o islamismo. Quando os muçulmanos, que também dominaram os povos pela violência (e não apenas pelo comércio), ao imporem o islamismo, foram colocando as mulheres nesse segundo ou terceiro plano.
Como é que se escrevem contos eróticos sem confundir erotismo com pornografia, sobretudo, num contexto temporal como o do Velho Testamento? Às vezes, a fronteira pode ser ténue.
É. Há duas ou três cenas que são tórridas, mas a ideia era é essa [diferenciar], porque o erotismo não é pornografia. Por isso eu também acho que o #Metoo tem de ter cuidado, porque senão qualquer dia estamos castradas como antigamente. Na relação de amor entre homem e mulher, ou entre dois homens ou duas mulheres, o jogo da sensualidade é uma maravilha, melhor do que o truca-truca. Como digo aos miúdos, quando vou a uma escola e eles me perguntam sobre isso, truca-truca fazem os bichos, o jogo da sedução, sentir a flor da pele, olhar nos olhos, o toque, o namoro, tudo isso é uma maravilha. Normalmente, os miúdos estão muito obcecados por ir para a cama e perdem todo o jogo da sedução. Antes do 25 de Abril, aqui em Portugal, as mulheres não beijavam homens, toda a gente se beija actualmente. Se for beijar um jovem estou a cometer uma agressão sexual? Não estou, estou a beijá-lo como se ele fosse um filhote ou um neto. Não se pode destruir isso e os exageros, os fundamentalismos, às vezes, são desgraçados, tal como o politicamente correcto.
Mas por vezes há uma confusão de conceitos entre o que é violência sexual, de assédio e depois entre o assédio e a sedução, tal como há entre piropo e obscenidade. Não acha que #Metoo também veio um pouco pôr o dedo na ferida sobre isso e pôr as pessoas a pensar sobre isso? Sim. Qualquer pessoa tem direito a dizer não e o indivíduo tem de parar. Há ocasiões, e as feministas ficam muito furiosas quando se diz que alguém ‘pôs-se a jeito’, mas é um facto, às vezes “pôs-se mesmo a jeito’ e, ao longo dos tempos, a mulher usou a sexualidade e o corpo para subir na vida. Quando olhamos para o cinema americano, ninguém fechou as actrizes numa casa de banho e as violou. Isso é outra coisa. Houve também as que queriam um papel num filme, porque queriam subir na carreira. Como diz a Maria Teresa Horta, nós inauguramos uma era em que se subia na vida pelo talento e trabalho, não de costas numa cama. Dormir com o chefe? Apostava-se o emprego, mas podia-se dizer não. Perdia-se o emprego. Isso é um risco, mas é uma escolha. Quando se calam, quando recebem dinheiro e 30 anos depois é que vão falar disso, guardam os vestidos com sémen e depois dizem que foram violadas, numa ocasião que dê jeito? Eu essas coisas não aceito, porque depois mete-se tudo no mesmo saco e a verdadeira tragédia e a verdadeira canalhice deixa de ter a visibilidade que devia ter. E eu sou visceralmente contra a violação e contra a violência sobre as mulheres.
Nasceu nos Estados Unidos da América, embora tenha vindo para Portugal muito pequena. Acompanha, ainda assim, com especial interesse o que se vai passando lá?
Sim. Tenho família na América, tenho duas sobrinhas e duas sobrinhas-netas também. E elas são todas activistas, por isso vejo com muito interesse.
As mulheres assumiram, em muitos casos, a dianteira dos protestos contra Donald Trump. A manifestação da Women’s March, pouco depois da tomada de posse como presidente, foi exemplo disso. Nas últimas eleições intercalares, as mulheres também fizeram história…
Pois, isso é muito importante. A América é feita de contrastes e isso, em certa medida, fascina-me. Trump realmente encarna tudo aquilo que é de mais primário, mais primitivo. Ele lembra-me muito uma figura do Velho Testamento, embora transposto para uma época moderna.
Voltando às religiões. São as únicas responsáveis pela matriz cultural que impõe discriminações ou desigualdades entre os sexos, não há outros motivos?
Há outros motivos, a própria civilização, a civilização patriarcal, há montes, montes de razões. Mas a religião formatou-nos, durante séculos. Não é Deus, não estou contra um Deus em que as pessoas acreditam. As pessoas precisam de Deus e da religião. É o mau uso da religião feita pelos homens, que eu combato.
O que é que ainda a fascina na história de Portugal? Sobre que mistérios é que gostaria de escrever?
São tantos, eu não tenho é idade para os fazer todos. Comecei muito tarde, comecei aos 55 anos. A nossa História é riquíssima, puxa-se uma personagem ou um sucesso e vêm atrás outras 50 figuras fabulosas. Eu não sei como é que os portugueses dizem tanto mal de Portugal. Acho que desconhecem o seu próprio país. A ignorância é muito atrevida. Quando dizem mal dos Descobrimentos, a maioria dos críticos desconhece esse período, quando começam a falar, vejo logo que não sabem nada, não leram nada ou leram umas coisas na internet e já se acham uma grande autoridade. “Fomos esclavagistas”. E toda a parte científica, toda a parte das relações que nós vamos encontrar no mundo ainda, os vestígios da nossa passagem, a maneira como falam dos portugueses, como não se fala dos espanhóis. Eu tinha de dizer no México que era portuguesa, porque quando falava espanhol não me respondiam ou respondiam de forma bruta. Assim que dizia que era portuguesa o tom mudava completamente. A história da Tailândia, a história daqueles povos do Oriente, antes de os portugueses irem para lá era uma história oralizada, mítica. Os portugueses, como o Fernão Mendes Pinto, é que escreveram a história daqueles povos. Quando os muçulmanos começaram a espraiar-se por essas zonas, foram apagando toda a influência portuguesa e, depois, reescreveram a história, o que nos faz lembrar aquele documentário que a Al Jazeera cortou. É pôr os portugueses como vilões e apagar a sua própria vilania.
Mas não acha que nós, portugueses, também temos um certo tabu em relação à escravatura? Pois temos. E isso tem de ser assumido. Eu acho um disparate a discussão sobre o museu, chamem-lhe da Expansão ou das Descobertas. Houve mesmo expansão e descobrimento, no sentido que nós, no Ocidente, desconhecíamos toda aquela parte do mundo, que os portugueses descobriram para o Ocidente. É tão simples como isto. Tem de se assumir a escravatura, como era nesse tempo em que fazia parte do sistema, na maioria das nações do mundo. Os que não transportavam escravos compravam os escravos. Era o sistema económico no Ocidente e não só no Ocidente, era na África, entre os próprios africanos, era no Oriente, com os muçulmanos. Os muçulmanos começaram com a escravatura muito antes de nós. De repente é tudo virgem? Tem de se assumir a brutalidade comum a todas as nações nesse tempo. Eu assumo isso nos meus romances, vem sempre a parte violenta e a parte da canalhice, mas há também gente fabulosa. Afonso de Albuquerque era brutal para os muçulmanos, mas protegia os indianos, desde que respeitassem as regras. Ele proibiu em todos os lugares sob domínio dos portugueses que as indianas que fizessem o sati – o sacrifício das viúvas, que se lançavam na pira com os maridos. Promoveu os casamentos das mulheres locais – indianas, chinesas, javas, etc. – desde que fossem cristãs, com os portugueses. No entanto, houve gente que dizimou populações também.
Falta contar a história toda?
Ui, há tanta coisa para contar e sem complexos. Porque, se não conhecermos o passado, o presente não vale muito e nós não teremos futuro. Isto é uma continuidade. Temos de olhar para trás para não fazermos as mesmas asneiras. Eu acho que os nossos políticos perdem muito por isso. Não conhecem a História do que ficou para trás.
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