16/02/2019

Entrevista - Faculdade de Letras de Lisboa

"A sociedade portuguesa é aparentemente libertária, mas no fundo conservadora e hipócrita" 

Numa edição revista e coligida, Deana Barroqueiro publicou recentemente Contos Eróticos do Velho Testamento. 
Erotismo e religião andam a par no novo livro da alumna formada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, com Deana Barroqueiro a confessar-se “profundamente ateia”. Sobre as religiões, não tem qualquer dúvida: "só trazem mal ao mundo". 
 Entrevista: Tiago Artilheiro (FLUL-DRE, Núcleo de Imagem, Comunicação e Relações Externas) | Fotografia: Direitos Reservados
14 Fevereiro 2019

- Porquê lançar agora uma edição revista das duas obras num só volume? 
Deana Barroqueiro (DB): As obras foram primeiramente publicadas como dois livros independentes, em 2003 e 2004 - Contos Eróticos do Velho Testamento e os Novos Contos Eróticos do Velho Testamento -, depois tiveram outras edições em que os contos dos dois volumes foram coligidos num só, seguindo uma ordem cronológica, o que desvirtuava a minha intenção ao criá-los, porque as histórias das mulheres mais sofridas e dos seus dramas tinham como contrapartida as das mulheres mais fortes, de teor muito mais satírico. As edições esgotaram-se há já alguns anos e, como esses temas do abuso e violência sobre as mulheres ganharam finalmente clara visibilidade, pareceu-me oportuno regressar às origens, aproveitando para publicar as duas obras como duas partes do mesmo livro, para recuperar a intenção original e fazê-lo menos pesado para bolsa do leitor.

- Diz que a obra traz um novo olhar sobre a história e a religião. De que forma é que a obra apresenta o tal “olhar implacável das suas mulheres”?
DB: O Velho Testamento, através do Livro do Génesis (e não só dele), mostra uma visão extremamente depreciativa das mulheres, rebaixando-as ao estatuto de seres inferiores e pecaminosos, menos inteligentes do que os homens, a quem devem obediência cega, por mais infames que eles sejam. Para isso, os redactores deste livro dito sagrado, aproveitando os mitos e histórias de tradição oral dos seus povos, criaram «histórias exemplares» sobre o género feminino que, durante os milénios em que o mundo evoluiu, se mantiveram imutáveis e foram sempre evocadas pelas três principais religiões que dele saíram – Judaísmo, Islamismo e Cristianismo –, para justificarem todos os abusos e violências cometidos contra as mulheres e as forçarem à sujeição do poder masculino. São, pois, mitos adaptados, por vezes esteticamente pobres e sem verosimilhança com a realidade, visto que o que conta é a «moral da história» e não a verdade dos factos. Eu procurei transformar essas lendas e milagres em relatos históricos, como um cronista, contextualizando-os segundo a época, os costumes e a mentalidade desses povos da Antiguidade pré-clássica, que levei bastante tempo a estudar, e que são apresentados segundo o ponto de vista dessas mulheres que nunca tiveram voz. Creio que é uma visão original, pelo que os contos estão a ser estudados num curso de Estudos Bíblicos da Universidade de Minas Gerais, no Brasil.

- Há muito de violência nas histórias que dá conta no livro. Onde encontrou a dimensão erótica para lhe dar voz?
DB: As mulheres (e as crianças) eram usadas como objectos de prazer pelos homens, sobretudo se estes tinham poder, como os reis com os seus haréns, mas também como os velhos patriarcas libidinosos e hipócritas, nas suas tendas de pastores nómadas, que pregavam a virtude sem a praticarem. As mulheres não eram livres, não tinham voz nem vontade própria, então como hoje, que lhes restava, como fuga ao pesadelo, senão a imaginação e o sonho, com que atingiam o prazer dos sentidos? Sendo mulher, não foi difícil encontrar essa voz ansiosa.

- Foi fácil passar o erotismo do Velho Testamento para o conto erótico? Como foi o processo de criação?
DB: Foi muito fácil, quando, aos 55 anos, li de novo e com outro olhar, desapiedado, todo o Velho Testamento e me indignei com a moralidade hipócrita daqueles homens misóginos, que a Igreja põe num pedestal, apesar dos seus pés de barro, que viviam obcecados e aterrorizados pelo sexo, de tal modo que poucas são as histórias em que essa componente erótica não aparece. Resolvi opor a essa visão masculina, tão castradora, a das mulheres que olham os homens da mesma forma que eles as olham, mas, através das suas sensações. Uma leitura que ainda não tinha sido feita sobre a Bíblia. Perverso? Talvez, mas foi muito divertido, desconstruir os falsos mitos e milagres.

- Parece haver em casos concretos uma dimensão erótica maior naquilo que não se mostra do que naquilo que é visível… Essa também foi uma preocupação que teve, não ir tanto pelo explícito mas pelo implícito?
DB: Claro que sim, não se deve desvendar tudo, porque se perde o mistério e deixa de ter graça. Para que serviria então a imaginação do leitor? Eu quis escrever contos eróticos e não pornográficos, o que, para mim, faz toda a diferença.

- Que diferenças encontra no entendimento da sexualidade e do erotismo na Antiguidade e agora? DB: Depende do tempo e dos povos, uns eram muito mais livres do que nos nossos dias, sem esse sentimento de culpa e de pecado original (uma noção verdadeiramente aberrante) veiculada pelo Velho Testamento. Em alguns casos as mulheres tinham um estatuto idêntico ao dos homens, noutros a sociedade era patriarcal e as mulheres sofriam a mesma sujeição.

- Como observa a sociedade portuguesa neste contexto?
DB: Aparentemente libertária, no fundo conservadora e hipócrita, regida por um «politicamente correcto» que exclui a razão, e em regressão.

- A esse nível, para onde caminhamos?
DB: Não sei, dependerá da evolução dos jovens, que me parecem estar a ganhar um equilíbrio saudável, em relação ao sexo.

- Como é a sua relação com a religião? Foi catequista…
DB: Fui catequista aos 13 anos, até começar a duvidar e a descrer. Sou profundamente ateia, creio que as religiões só trazem mal ao mundo, porque não resistem às tendências fundamentalistas, que as tornam irracionais e capazes dos maiores crimes, em nome de Deus, quando o que lhes interessa, não é a fé, mas a sede de poder. Basta lembrar as lutas religiosas, através dos tempos, ou casos como a Inquisição católica, a caça às bruxas dos protestantes, o actual sonho dos judeus da Terra Prometida em Israel contra os palestinianos ou a jihad assassina e obscena dos fundamentalistas muçulmanos. 

- Há cerca de um ano, contou em entrevista à FLUL que estava a “terminar um livro de culinária histórico” e “um romance com uma forma diarística e o protagonista é uma figura bastante controversa”. Está para breve a revelação destas obras ou tem em mãos outros projectos literários?
DB: A minha «história de paladares» está na fase das revisões e correcções, para sair no Outono; quanto ao diário de um descobridor, está por agora interrompido, embora fosse desejável publicá-lo na feira do livro, mas eu demoro muito tempo com a investigação dos temas, por isso duvido que isso aconteça.

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