A Caminho da Ribeira
"- Chamas-te Esmeralda, minha asninha de Belém?! Hui, pudera eu ser o teu burrico de Jericó, ó preciosa, e não haveria sendeiro mais feliz neste mundo! - Atardo o passo para que me acompanhe sem fadiga e ela arreganha-me os beiços num sorriso que me faz arrepios na espinhela: - Nem a jumentinha da fuga para o Egipto foi mais generosa do que tu, minha flor, nem mais merecedora de Presépio. não entendes o que te digo, minha bela? Que nunca ouviste um burro falar tais cousas? Perdoa-me, formosa, que isto d’ estar sempre com os fradinhos já m’ amoldou o pensar e o sentir à sua guisa. Ah, gostas que te fale assi? Pardeos, eu cuido sonhar…".
Mal escuto nosso amo resmoneando em voz lastimeira: - Guai! Se não foras tão garanhão, estaria eu est’hora na Mancebia[1] ou em casa da Preta da Mina, à Porta Nova, havendo muito prazer, de refestela com uma bela mocetona cheirando a benjoim! Agora só na Ribeira Velha, onde são mais feias e custam o mesmo, sem falar nos rufiões delas sempre prestes a armar requesta[2] ! Of’reço-te companha para o Inverno e assi me pagas tu, meu tratante!
E de acinte ferra-me com as biqueiras dos borzeguins na pança, mas eu nem faço caso, todo aceso a descrever à minha Esmeralda os tesouros de Lisboa que ela vê por vez primeira, com olhos de rasgado assombro. Não é çafea[3], muito pelo contrário, bem pertelhoa me parece, porém nunca té hoje havia botado as çapatas fora da quinta de seus donos e tudo parece encantá-la e assustá-la.
Damos uma espreitadela à Rua Nova d’El-Rei, cheia de ourives d’ouro e prata, onde não nos deixam passar com medo dos tabuleiros de jóias preciosas que têm às portas e cruzamos a Rua Nova dos Mercadores, de 130 braças de comprido e 4 de largo, tendo de uma e outra banda 45 moradas, de casas de 3 e 4 sobrados e ricas lojas e tendas com mercancias de todas as partes do Mundo: panos, caixeria (com todas as sortes de sedas) e marçarias; 11 livreiros, 9 boticas, 60 sirgueiros e muitos mercadores de sobrado que vivem no alto das lojas e são os mais abastados.
Porém, no Arco dos Barretes, finco os cascos no chão e, ateimando com meu amo, viro para o Pelourinho Velho, livrando Esmeralda da Rua da Confeitaria, para que a não piquem as moscas e abelhas que ali tudo enxameiam, pela grande fartura de doces e bolos feitos com os finos açúcares do Brasil e da Madeira.
Ao Pelourinho Velho, sempre com muita gente, vem dar a rua Nova dos Ferros ou dos Mercadores, a do Aver-do-Peso (com a Casa do Conselho para vigiar os instrumentos de medir e de pesar dos mercadores, para estes não fazerem burla), as dos Ourives da Prata, de Julianes, da Fancaria e do Inferno, com o seu Beco do Espera-me Rapaz.
Há no Pelourinho Velho, e posto que o Natal se acerca, também muitas mulheres com suas mesas de mantéus mui alvos, cobertos de gergelim, pinhoada, nogada, marmelada, laranjada, cidrada e fartéis[4], bem como toda outra sorte e maneira de conservas, capazes de fazer salivar até a quem não é lambaz[5]. Outrosim, sendo a praça um chão de venda em almoeda[6], aqui se vendem com pregão móveis, panos de linho, ouro e prata.
- Se dão ali pregão dos homens negros como se de bestas se tratara? Si, Esmeralda, também se vendem muitos homens para escravos, os quais estão agora mui caros, o que mete medo a toda esta gente, pois em Portugal ninguém quer fazer nada e não há miserável que não tenha um escravo ou escrava a trabalhar para ele.
Neste Largo, como no Rossio, há sempre 10 escrivães com suas mesas a escrever cartas e petições a quem lhas pede e nunca estão vagos, ganhando cerca de 200 rs. ao dia, isto segundo fala sempre nosso amo que os inveja muito.
Notas da Autora
A primeira imagem mosta uma panorâmica da Ribeira; a segunda é a Rua Nova dos Mercadores, a mais cosmopolita da Lisboa do Século XVI.
[1] Bordéis, nas traseiras dos Estáus.
[2] Zaragata.
[3] Ignorante, grosseira.
[4] Bolos de açúcar e amêndoas.
[5] Guloso.
[6] Venda pública; em leilão.