Catarina Domingues, em Pequim
Liji trata a filha por Zoe, nome inglês que a pequena reconhece e repete quando chega à sala, com a boca suja de chocolate e uma nota de um renminbi a balançar na mão. `Qian´, diz Zoe, que em chinês quer dizer `dinheiro´. Zoe fala ainda com os tons fora do sítio, e ainda com a nota na mão. Zoe, a que horas te vais deitar?, pergunta a mãe. Quando fica escuro, responde. E a que horas te levantas? Quando fica claro. Zoe, queres um maninho? Zoe já sabe a resposta, não, não quero nada, quero desenhos animados.
Se há um mês perguntassem a Liji e a Zhichen se queriam um segundo filho, diriam: sim, claro que sim, é óbvio, mas não, não vai acontecer. Em Pequim, temos de pagar 400 mil renminbis para ter um segundo filho, explica Liji. Não temos condições para pagar a multa ao governo, só com ajuda dos meus pais e dos meus sogros, acrescenta o marido.
Plante mais árvores e faça menos filhos
Em Novembro tudo mudou. Segundo as novas medidas anunciadas pelo governo chinês, vai ser possível uma nova criança no apartamento espaçoso deste casal de classe média. A mudança à política permite um segundo filho se um dos membros do casal for descendente único – e é o caso de Liji. A auditora tem 29 anos e nasceu em Daqing, na província de Heilongjiang. Daqing tem os maiores campos petrolíferos da China, o meu pai trabalha numa empresa estatal ligada ao sector. Naquela altura, mesmo pagando uma multa, ter um segundo filho significava ser despedido, explica Liji.
O marido, Zhou Zhichen, com a mesma idade, é oriundo de Xuzhou, na província de Jiangsu. Lembro-me de ver cartazes espalhados pelas ruas, plante mais árvores e faça menos filhos, dizia um deles, crie mais porcos e faça menos filhos, dizia outro. Nada que tenha feito eco em casa da família Zhou. Os meus pais pagaram uma multa de 30 mil yuans pela segunda e terceira criança. Em cidades pequenas como a minha, as multas eram mais baratas, reforça Zhichen, o mais velho dos três filhos.
A política do filho único foi implementada em 1979 para dar resposta ao acelerado crescimento da população chinesa. Aplicada ao nível provincial, as minorias étnicas foram, desde logo, uma das excepções à lei. Nos anos 1980, o governo permitiu, nas zonas rurais, uma segunda criança aos casais com uma menina. A política voltou, mais tarde, a dar sinais de abertura, autorizando um segundo filho a casais sem irmãos.
Segundo dados oficiais, nas últimas três décadas, o controlo impediu 400 milhões de nascimentos. Lu Yilong, professor de Sociologia e Estudos Populacionais da Universidade Renmin, em Pequim, afirma que a política era um mal necessário. Se não tivesse sido aplicada, hoje teríamos cerca de 1,8 mil milhões de habitantes, maiores níveis de pobreza e, provavelmente, tumultos sociais. O especialista acredita, porém, que a política do filho único está longe de ser a ideal. Restringe a liberdade de ter filhos e está a causar a diminuição da população activa, sem resolver o rápido envelhecimento populacional, diz Lu. Além disso, o especialista explica que, na China, é no filho único que recaem todas as expectativas: assegurar o bem-estar e o futuro financeiro da família. O filho único vive com esse peso, diz Lu, explicando que uma segunda criança pode ajudar a aliviar essa pressão.
Filho vs filha
Quando Zhaoliang nasceu, a avó paterna não podia acreditar. Era menina, não, não podia ser menina. "A minha avó disse ao meu pai que me matasse, conta a professora de Mandarim de 26 anos. Ainda hoje não sei o nome da aldeia onde ela vivia, sei que é perto de Baoding, na província de Hebei, e sei que matavam muitas meninas à nascença, a minha mãe nunca quis que lá fosse, porque a minha avó nunca gostou de mim".
Quatro anos depois, a mãe de Zhaoliang voltou a engravidar. Era menino, finalmente menino, gritou a avó. Mas a família não tinha como pagar a multa e acabou por interromper a gravidez. "A minha avó ficou furiosa porque queria um neto. A minha mãe contava-me que, até morrer, a minha avó sempre tratou bem dos meus primos homens".
Ainda existe discriminação sexual sobretudo em ambiente rural, diz o sociólogo Lu Yilong, realçando que é nessas zonas, onde existe uma preferência por rapazes, que a educação é urgente. "O rapaz carrega o nome da família", continua Zhaoliang, "e isso é extremamente importante para os chineses. Além disso, a geração da minha avó acredita que o homem tem mais poder e pode ganhar mais dinheiro. É o rapaz que herda tudo, não é lei, mas é tradição", conta a professora.
Na pequena cidade onde o empresário Zhichen nasceu, na província de Jiangsu, ter um filho homem também é sinal de sucesso. "Existe esse preconceito", explica Zhichen, "o meu primo tem três meninas, mas não desiste de um filho homem. A mulher já fez pelo menos três abortos porque todas eram meninas e, apesar de não estar bem de saúde, continua a tentar engravidar".
Na China, clínicas e hospitais estão proibidos de revelar o sexo da criança, mas muitas famílias conseguem ter acesso a essa informação. A preferência por homens fez com que, no início do século, o rácio fosse de 119,2 homens para 100 mulheres. Especialistas acreditam que, em 2020, o país terá mais 35 milhões de homens do que mulheres.
Em 2005, a organização `East-West Center´ divulgou um estudo do sociólogo Wang Feng, que refere a prática de abortos selectivos, esterelizações forçadas, infanticídio e a existência de `crianças não registadas´ como consequências da política do filho único. Estas `crianças não registadas´ nasceram à margem da política e da sociedade; vivem escondidas entre quatro paredes, sem acesso a identidade, educação e cuidados de saúde. Não há dados sobre o número de crianças sem registo, diz o especialista em Estudos Populacionais, Lu Yilong, que garante que o governo dispõe de agências para solucionar o problema.
No centro do debate têm estado as comissões provinciais de planeamento familiar. De acordo com a publicação `21st Century Business Herald´, em 2012, quinze províncias chinesas arrecadaram 12,8 mil milhões de yuan com as multas cobradas às famílias que escolheram ter mais filhos. Lu Yilong explica que as novas alterações à política vão ficar a cargo de cada província. Por um lado, algumas comissões vão continuar a implementar rigorosamente a política como forma de manter uma fonte de rendimento, mas acredito que outras defendam a abolição desta medida, porque é um processo de trabalho duro e motivo de conflito entre as autoridades e a população.
Quem sou eu?
"Havia um casal de gémeos na minha turma, e percorríamos juntos o caminho de regresso a casa, e lembro-me de pensar que eram tão unidos, e lembro-me de sentir que eu não pertencia àquele círculo", diz Tianyi, 28 anos, filho único. "Sinto que, por um lado, recebo amor a dobrar, por outro sinto muita pressão dos meus pais, e dos meus avós, que depositam todas as esperanças em mim". Tianyi nasceu e cresceu em Tianjin, a 120 quilómetros da capital chinesa, onde trabalha num departamento do governo chinês. "Sempre que posso regresso a casa, os meus pais reformaram-se e estão aborrecidos". "Queres ter filhos?". "Só um, e quanto mais tarde, melhor", responde Tianyi," mas os meus pais pressionam-me, porque estão aborrecidos, porque precisam de se ligar emocionalmente a alguém".
Tianyi diz que nunca parou para pensar se queria um irmão ou não. Passava os fins-de-semana com a prima, a quem chama irmã, e com o primo, a quem trata por irmão. "Acredito que o filho único seja mais egoísta, que não dê tanto valor à amizade". "És egoísta?". "Se a sociedade espera que sejas egoísta, tens de ser, mas tento sempre ajudar quem precisa".
A questão da personalidade de um filho único é complexa e tem implicações teóricas e práticas não apenas na China mas em todo o mundo, explica Ren Xiaopeng, professor do Instituto de Psicologia da Academia de Ciências Sociais da China. O professor acredita que, da perspectiva da psicologia social, a política do filho único deve ser a primeira e única prática de planeamento familiar no mundo e teve grandes implicações na vida humana. "Na minha opinião", realça Xiaopeng, "existem poucos estudos de personalidade, mas cito a revista Science, que fala numa geração mais egocêntrica".
"Partilha, passo o tempo a explicar à minha filha Zoe o valor da partilha", conta Liji, que sendo filha única, rejeita o termo `pequenos imperadores´, nome associado a uma geração de descendentes únicos. "Nunca fui muito protegida, quando tinha 16 anos, os meus pais obrigaram-me a subir cinco andares com um porco nos braços", conta a auditora, que acredita, porém, que a política do filho único teve grande influência nesta primeira geração. "Sou muito fechada, acredito que tenha a ver com o facto de ser chinesa, mas também por ter sido criada sozinha. Nunca soube o que era partilhar, quando era pequena não queria brincar com os meus primos, queria estar sozinha. Já o meu marido tem três irmãos e outra forma de olhar o mundo, é gentil".
O especialista Ren Xiaopeng acredita que a diferença entre o bem e o mal chega a qualquer contexto familiar, com ou sem irmãos. Mas conceitos como justiça e igualdade são mais usados nas casas de famílias com mais filhos, realça. Conceitos que Zhaoliang, filha única, reconhece e defende. Para compensar a solidão, os pais traziam para casa cães atrás de gatos, pássaros atrás de tartarugas. "Nunca me senti sozinha".
Os segundos
Zhaoliang não tem namorado, nem sabe se vai casar, se quer casar, e, se sim, quer um filho, quanto muito. "Acho que o relaxamento da política é terrível, porque implica o crescimento da população, mais problemas sociais, mais desemprego". "Não é um direito?". "Sim, é, mas um filho é o suficiente".
De acordo com estimativas da Comissão de Planeamento Familiar e de Saúde Nacional da China, entre 15 a 20 milhões de pessoas vão ser afectadas pelas novas regras. O que as autoridades não podiam prever é que a geração de filhos únicos não fosse agarrar a oportunidade de ter um segundo filho. "Muitos casais, sobretudo nas grandes cidades, não querem um segundo filho", diz o sociólogo Lu Yilong, sublinhando que, dessa forma, os pais podem investir mais na educação de um único filho.
"Existe um ditado na China que reflecte a obsessão pela educação neste país: não deixes os teus filhos perder logo na linha de partida", conta o primeiro de três filhos, Zhou Zhichen. A pressão é tão grande que os pais querem que os filhos saibam um pouco de tudo. As crianças de hoje têm de aprender inglês, têm de saber tocar piano ou frequentar aulas de dança. E onde fica o tempo para brincar?".
O elevado custo de vida, com um aumento do preço das casas, do custo da educação e dos cuidados de saúde, faz com que muitas famílias ponham de lado a hipótese de um segundo filho. "As mentalidades mudaram", diz Zhichen, "no passado os chineses tinham muitos filhos e esperavam que um dos descendentes fosse bem-sucedido, e trouxesse glória e riqueza para casa, e ajudasse a família. Hoje, as relações mudaram e as pessoas são mais individualistas".
Mesmo assim, o empresário apoia a continuação de uma política de controlo de natalidade. "Ter um filho é um direito que nos assiste, é verdade, mas temos de pensar no que vai ser o futuro da China. Nós, pais, não queremos que os nossos filhos passem por dificuldades". Liji e Zhichen já pensam num segundo filho. Liji quer um menino, a Zhichen tanto faz.