"Desistir? Podia levar pancada que ia continuar a pintar"
Correu tudo mal. Nadir Afonso falhou na escola, na faculdade e na profissão. Mas trabalhou com Le Corbusier, Oscar Niemeyer e esteve na fervilhante Paris dos anos 40. Se esta é uma história de falhanços, é a melhor de sempre. Nadir Afonso em discurso directo sobre o que andou a fazer entre 1930 a 1960, para além da pintura. Essa está desde ontem no Museu do Chiado, Lisboa, com "Nadir Afonso, Sem Limites", uma retrospectiva dessas três aventurosas décadas.
Recorde a entrevista dada ao i no dia 23 de Junho de 2010:
Vai fazer 90 anos, ainda pinta?
Não faço outra vida. Pinto todos os dias ou vou olhando para os trabalhos antigos e faço uns retoques. Tenho grande paixão pela pintura e pela harmonia das formas. Neste momento é a única coisa da vida que me atrai. E a matemática.
[Laura Afonso, a mulher de Nadir, interrompe] Todos os dias ele vai para o ateliê escrever ou pintar. Digo na brincadeira que está no vício. Sei que se ele um dia, por motivos de saúde, tiver de parar, é o fim. Ele vive disto.
Lembra-se de quando começou a pintar?
Desde sempre. Aos quatro anos fiz das boas: pintei um círculo perfeito na parede lá de casa com um pincel. Já então era atraído pela beleza das formas. Aquilo emocionou-me.
Os seus pais, o que acharam disso?
A minha mãe veio ralhar: "Sujaste a parede toda." E eu respondi: "Como é que eu, com a minha idade, podia ter desenhado uma roda tão bem feitinha?" [risos] Ela pensou duas vezes e deixou passar.
De onde vem essa atracção?
Nunca me foi diagnosticado nada mas acho que sou hipersensível. Toda a gente tem alguma sensibilidade mas eu era--o de mais: era irascível, epiléptico, hipersensível e anormal. Toda a vida senti demasiado as coisas e sofri com isso.
Era bom aluno na escola?
Ui, era um cábula. Fui um anormalzinho nas disciplinas todas, não entendia nada, não memorizava nada. Nunca soube os reis de Portugal e essas coisas todas. [dramatiza] "Quem foi o primeiro rei de Portugal, Nadir? Foi o D. Afonso Henriques, nasceu na serra de Lugo, vive em Espanha e vai desaguar a Caminha." [risos]
Mas era bom a Geometria e Matemática.
Um craque! No resto sou um analfabeto. Não percebo nada de nada.
Sempre quis ser pintor. Mas foi para Arquitectura?
Arranjei problemas em todo o lado e esse foi mais um. Fiz um requerimento ao reitor para ir para Pintura nas Belas-Artes, no Porto. Escrevi uma carta como se fazia na altura, num papel especial, com aquela lengalenga toda. Nunca lá tinha ido e vi aqueles degraus, aquelas balaustradas e entrei por ali adentro todo encolhido. Chego à entrada e está lá um contínuo a dormir de braços cruzados num banco. Acordo-o e ele olha para o meu requerimento com um ar grave. Diz-me: "Então você quer ir para Pintura e tem o liceu? [na altura podia-se entrar nesse curso só com o 9.o ano] Vá mas é para Arquitectura, homem! Ganhe juízo que a pintura não alimenta um homem, vai matar-se à fome!" E foi o que eu fiz, cobardemente. Rasguei o requerimento e fiz logo ali outro. Fui para Arquitectura.
Correu muito mal?
Se correu. Eu não tinha temperamento para arquitecto. Repare: os arquitectos têm umas pranchetas na horizontal onde desenham, os pintores pintam na vertical. Então eu chego às aulas e começo a desenhar na vertical, com colegas e professores a acharem que era maluco.
O professor deixava?
Tivemos as nossas chatices. Mas o tipo, o professor Carlos Ramos, foi tão camarada que disse: "Eu reconheço que o senhor tem qualidades, mas está a fazer pintura, não pode ser." Então, como ele achava que eu fazia aquilo porque não tinha nem podia ter um estirador, ofereceu-me um. Eu, com este meu feitio, recusei, mas no dia seguinte qual foi o meu espanto quando cheguei a casa e tinha lá um estirador novinho em folha.
Começou a portar-se melhor?
Hoje reconheço que agi mal. Com 18 anos e cabeça quente, continuei a fazer pintura nas aulas. O professor baixou-me as notas – com razão, reconheço hoje. Vai daí eu chamo a minha empregada – chamava-se Bina, ainda me lembro – e pega dum lado, pega do outro, lá levámos o estirador de volta às Belas-Artes. Entrei por ali adentro a dizer disparates, todo exaltado, no dia em que foram afixadas as pautas: a faculdade cheia. "Para pintar até pinto em cima da cama!" Era um miúdo irascível.
Porque vai para Paris?
Porque era lá que queria ser pintor. Mas tinha de arranjar trabalho, de ter dinheiro para comer. Foi difícil. Estávamos nos anos 40, no pós-guerra, e tudo era racionado. Lembro-me de o meu pai enviar leite em pó pelo correio porque lá o leite era só para as mulheres e as crianças. Atravessei uma ponte inteira a butes com uma mala na mão e umas telas debaixo do braço.
Foi fácil arranjar passaporte?
Recorde a entrevista dada ao i no dia 23 de Junho de 2010:
Vai fazer 90 anos, ainda pinta?
Não faço outra vida. Pinto todos os dias ou vou olhando para os trabalhos antigos e faço uns retoques. Tenho grande paixão pela pintura e pela harmonia das formas. Neste momento é a única coisa da vida que me atrai. E a matemática.
[Laura Afonso, a mulher de Nadir, interrompe] Todos os dias ele vai para o ateliê escrever ou pintar. Digo na brincadeira que está no vício. Sei que se ele um dia, por motivos de saúde, tiver de parar, é o fim. Ele vive disto.
Lembra-se de quando começou a pintar?
Desde sempre. Aos quatro anos fiz das boas: pintei um círculo perfeito na parede lá de casa com um pincel. Já então era atraído pela beleza das formas. Aquilo emocionou-me.
Os seus pais, o que acharam disso?
A minha mãe veio ralhar: "Sujaste a parede toda." E eu respondi: "Como é que eu, com a minha idade, podia ter desenhado uma roda tão bem feitinha?" [risos] Ela pensou duas vezes e deixou passar.
De onde vem essa atracção?
Nunca me foi diagnosticado nada mas acho que sou hipersensível. Toda a gente tem alguma sensibilidade mas eu era--o de mais: era irascível, epiléptico, hipersensível e anormal. Toda a vida senti demasiado as coisas e sofri com isso.
Era bom aluno na escola?
Ui, era um cábula. Fui um anormalzinho nas disciplinas todas, não entendia nada, não memorizava nada. Nunca soube os reis de Portugal e essas coisas todas. [dramatiza] "Quem foi o primeiro rei de Portugal, Nadir? Foi o D. Afonso Henriques, nasceu na serra de Lugo, vive em Espanha e vai desaguar a Caminha." [risos]
Mas era bom a Geometria e Matemática.
Um craque! No resto sou um analfabeto. Não percebo nada de nada.
Sempre quis ser pintor. Mas foi para Arquitectura?
Arranjei problemas em todo o lado e esse foi mais um. Fiz um requerimento ao reitor para ir para Pintura nas Belas-Artes, no Porto. Escrevi uma carta como se fazia na altura, num papel especial, com aquela lengalenga toda. Nunca lá tinha ido e vi aqueles degraus, aquelas balaustradas e entrei por ali adentro todo encolhido. Chego à entrada e está lá um contínuo a dormir de braços cruzados num banco. Acordo-o e ele olha para o meu requerimento com um ar grave. Diz-me: "Então você quer ir para Pintura e tem o liceu? [na altura podia-se entrar nesse curso só com o 9.o ano] Vá mas é para Arquitectura, homem! Ganhe juízo que a pintura não alimenta um homem, vai matar-se à fome!" E foi o que eu fiz, cobardemente. Rasguei o requerimento e fiz logo ali outro. Fui para Arquitectura.
Correu muito mal?
Se correu. Eu não tinha temperamento para arquitecto. Repare: os arquitectos têm umas pranchetas na horizontal onde desenham, os pintores pintam na vertical. Então eu chego às aulas e começo a desenhar na vertical, com colegas e professores a acharem que era maluco.
O professor deixava?
Tivemos as nossas chatices. Mas o tipo, o professor Carlos Ramos, foi tão camarada que disse: "Eu reconheço que o senhor tem qualidades, mas está a fazer pintura, não pode ser." Então, como ele achava que eu fazia aquilo porque não tinha nem podia ter um estirador, ofereceu-me um. Eu, com este meu feitio, recusei, mas no dia seguinte qual foi o meu espanto quando cheguei a casa e tinha lá um estirador novinho em folha.
Começou a portar-se melhor?
Hoje reconheço que agi mal. Com 18 anos e cabeça quente, continuei a fazer pintura nas aulas. O professor baixou-me as notas – com razão, reconheço hoje. Vai daí eu chamo a minha empregada – chamava-se Bina, ainda me lembro – e pega dum lado, pega do outro, lá levámos o estirador de volta às Belas-Artes. Entrei por ali adentro a dizer disparates, todo exaltado, no dia em que foram afixadas as pautas: a faculdade cheia. "Para pintar até pinto em cima da cama!" Era um miúdo irascível.
Porque vai para Paris?
Porque era lá que queria ser pintor. Mas tinha de arranjar trabalho, de ter dinheiro para comer. Foi difícil. Estávamos nos anos 40, no pós-guerra, e tudo era racionado. Lembro-me de o meu pai enviar leite em pó pelo correio porque lá o leite era só para as mulheres e as crianças. Atravessei uma ponte inteira a butes com uma mala na mão e umas telas debaixo do braço.
Foi fácil arranjar passaporte?
Na altura era difícil sair mas arranjei um esquema. Fui para lá como organizador de uma exposição. Balelas. Uma vez lá, nunca mais me lembrei disso. O passaporte estava cheio de erros de ortografia, altura era "hauture" e não "taille", foi uma risada.
Vai para Paris para ser pintor, mas reincide na arquitectura.
Bati à porta do ateliê do Le Corbusier, que era o melhor arquitecto do mundo na altura. Tive sorte de eles terem gostado logo de mim e fiquei. Trabalhava de dia na arquitectura e à noite pintava. Era duro.
Jornal i - Por Luís Leal Miranda, em 11 Dez 2013
(Ver o resto da entrevista em: http://www.ionline.pt/artigos/mais/nadir-afonso-desistir-podia-levar-pancada-ia-continuar-pintar/pag/-1
Vai para Paris para ser pintor, mas reincide na arquitectura.
Bati à porta do ateliê do Le Corbusier, que era o melhor arquitecto do mundo na altura. Tive sorte de eles terem gostado logo de mim e fiquei. Trabalhava de dia na arquitectura e à noite pintava. Era duro.
Jornal i - Por Luís Leal Miranda, em 11 Dez 2013
(Ver o resto da entrevista em: http://www.ionline.pt/artigos/mais/nadir-afonso-desistir-podia-levar-pancada-ia-continuar-pintar/pag/-1
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