12/12/2015

Resumo do Festival Literário de Viseu

11 Dezembro 2015 • Mário Rufino | FOTO: Mário Rufino

O ano de 2015 tem sido prolífico em festivais literários. O poder local parece ter despertado para a literatura. Os festivais sucedem-se e o formato acaba por repetir-se. É difícil trazer algo de novo a uma receita que funciona. Mas a Câmara Municipal de Viseu e a Booktailors (produção executiva) conseguiram-no. Desde passeios guiados por escritores (Miguel Real e Deana Barroqueiro) até ao Dão Party – Vamos brindar (música de Pedro Vieira aka DJ Irmão Lúcia), durante a madrugada, a programação teve mesas de debates, workshops sobre vinho, animações para crianças, jogos sobre literatura, exposições de Paulo Galindro e Afonso Cruz, Poesia no Quarto Escuro e vinho. Muito vinho.


As salas do Solar do Vinho do Dão foram pequenas para a quantidade de pessoas que queria assistir. A mesa mais tardia, que começou por volta da meia-noite no segundo dia, teve sala cheia. No jardim, a enorme tenda foi o local escolhido para os Djs continuarem a festa madrugada adentro.


O Brinde ao Dão, que marcou o início do Vinhos de Inverno, prometeu servir bom vinho e boa literatura durante os três dias de celebração. E cumpriu.

Os comentários apreciativos sobre o "néctar dos deuses" começaram na sala principal, onde decorreu a prova de vinhos, e prolongaram-se nas mesas em que cerca de 20 autores conversaram sobre a ligação do vinho com a criatividade. Não havia debate sem que os convidados brindassem com um copo de vinho do Dão. "Esse magnífico saca-rolhas", como disse Tchekhov, facilitou a fluência dos diálogos. E isso viu-se logo na primeira oportunidade.

Francisco José Viegas (editor da Quetzal), que participou na mesa com José Manuel Fajardo (escritor) e Manuel Carvalho (jornalista do Público), afirmou procurar não "engarrafar má literatura" a propósito da afirmação de Aquilino Ribeiro: "O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos".

Demonstrando apreço por Bolaño, o editor disse ser um adepto da Biblioterapia. O seu sonho era que os livros fossem vendidos em farmácias. Desta forma, cada maleita tinha a devida obra para a cura. Em vez de antidepressivos ou soporíferos, por exemplo, as pessoas levavam livros para a tristeza, ou para a insónia. Assim disse o autor de A Dieta ideal (Quetzal), livro recomendado para "manter o peso (e ganhar algum)", na cidade onde as fatias douradas, os sonhos, o pão de azeite e as castanhas de ovos são encantatórias tentações.


Nas sete mesas de sábado, dia em que se concentrou grande parte do programa, Paulo Moreiras (autor de Pão & Vinho, da D. Quixote) participou em Contos Lendas e Facécias; Alberto Santos (escritor e comissário do Escritaria), Manuel da Silva Ramos (escritor), João Luís Oliva (investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX) e o moderador Tito Couto (Booktailors) conversaram com o mote "se regionalista é ter descrito outra coisa que não Lisboa, não reclamo melhor diploma"; Patrícia Reis (jornalista e escritora) e Fernando Dacosta (escritor) conversaram sobre "Só as ânsias valem porque os triunfos, esses, acabam em bocejos"; Valério Romão (escritor), Rui Cardoso Martins (escritor) dialogaram, com moderação de Pedro Vieira, sobre "Os meus assuntos vou buscá-los à história natural racionalizando-os"; André Domingues (tradutor) e José Silva (crítico de vinhos e de gastronomia) sobre "Nas bocas do mundo", já a madrugada começava com moderação de Tito Couto.

A heterogeneidade das participações deu várias tonalidades aos temas em discussão. Desde o primeiro debate até ao último, o público encheu as salas. Quem mais se entusiasmou com a venda de doces regionais, a prova de vinhos ou a compra de livros, não conseguiu encontrar lugar para se sentar. Nem nas cadeiras nem no chão. A organização optou, posteriormente, por uma televisão no exterior da sala, de forma a garantir a possibilidade de assistir a quem chegava mais tarde. As várias divisões do Solar do Vinho do Dão, nos dois andares, foram preenchidas com diversas actividades. Além dos doces, do vinho e da literatura, houve música para os mais pequenos. Enquanto os pais descansaram nos sofás e nas cadeiras da Sala da Lareira, os filhos sentaram-se no chão, defronte de Carlos Alberto Moniz. O cantautor demonstrou como musicava as suas letras em "Como é que as canções são feitas por dentro?".

O cheiro da lenha, o calor da lareira e a alegria das crianças apaziguaram o frio nocturno. O "néctar dos deuses" aqueceu as almas dos adultos.

Terra e espiritualidade unem-se pelo ciclo do vinho. O Antigo Testamento conta que Noé se embriagou com o primeiro vinho que criou. O primeiro milagre de Jesus Cristo, afirmou o padre Anselmo Borges em conversa com o poeta António Gil, foi a transformação da água em vinho. Conta-se no Evangelho de S. João que durante a celebração de as Bodas de Caná faltou o vinho. Jesus ordenou que se enchesse os vasilhames de água e a dessem a provar. Quando isso aconteceu, o presidente da mesa louvou o noivo por ter guardado o melhor vinho para o fim, em contraste com os costumes vigentes.


"Deus está presente onde há alegria e onde há festa", respondeu Anselmo Borges à pergunta feita por Jorge Sobrado (moderador).

Na filosofia, não é sem propósito que Platão tem em O Banquete uma das suas principais obras e que Pasteur afirma haver mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. Beba-se uma garrafa e Tolstoi e Dostoievski são tema de conversa. Com a segunda garrafa, a beleza alheia e a coragem própria aumentam consideravelmente. Quadruplique-se o consumo e a prosa de Chagas Freitas é mais bela do que a dos mestres russos.

A bebida e a comida acompanham, tantas vezes, a confraternização. Foi à mesa, lembrou o padre Anselmo Borges, que Jesus se despediu dos seus discípulos. É à mesa que muitas famílias se juntam para conversar. E é na bebida e na comida que o ser humano entende muita da sua história. Jesus foi crucificado pelas suas ideias e costumes revolucionários. Um dos seus actos mais subversivos foi o de comer na companhia de prostitutas e de pecadores públicos.
A mesa é parte importante na História das religiões, das nações e dos povos.

De acordo com o chef Hélio Loureiro, que esteve na mesa Ínclita Refeição, com Pedro Vieira (moderador), comer é mais do que um acto de nutrir; é, também, um acto social.


Os rituais dos banquetes de Estado, principalmente no tempo da Monarquia, são exemplos da estratificação social e do jogo de forças entre diversos poderes, sejam políticos ou religiosos.

O muito agraciado chefe de cozinha desmistificou algumas versões "escritas em pedra" na nossa história. Essa desmistificação continuou, no dia seguinte, a ser debatida por Deana Barroqueiro (escritora), Pedro Almeida Vieira (escritor) e Tito Couto (moderador) com o mote "Somos do tamanho dos mitos que vemos".


Mais tarde, na última mesa do Tinto no Branco, Bruno Vieira Amaral, "uma espécie de aspirador de prémios literários" segundo o moderador Pedro Vieira, e Kárla Suarez (escritora cubana radicada em Portugal), conversaram com o mote "Em verdade o Português nunca aprendeu outra coisa que não fosse rezar".


O autor de Aleluia (Fundação Francisco Manuel dos Santos) contou um episódio demonstrativo dos rituais religiosos muito enraizados na nossa cultura, por vezes de forma independente à crença. Na apresentação de A Dieta Ideal, de Francisco José Viegas, Germano Silva, a quem coube a apresentação, contou que a sua avó preparava a massa do pão com as mãos e com uma reza: "São Mamede te levede, São Vicente te acrescente, São João te faça pão".

Os rituais religiosos em Cuba, mesmo antes da Revolução, não estavam enraizados na sociedade. Após a Revolução, a Religião foi substituída pela ideologia. O Natal foi algo que Karla Suárez viu nos filmes e na TV, pois não era comemorado em Cuba. Não havia, na sua infância, liberdades contraditórias com as ideias do regime. O grande território de liberdade da autora sempre foi a literatura. Continua a ser através dos livros que a autora cubana procura entender o mundo.

Bruno Vieira Amaral tem em As Primeiras Coisas (Quetzal) e em Aleluia construções literárias fundadas em situações muito pessoais, mas sempre com o cuidado de comunicar com o leitor. De outra forma, afirmou, escreveria somente como terapêutica e arrumaria os textos na gaveta.

A intensa criação de espaços onde os autores podem conversar com os leitores beneficia todos os elementos, sejam artísticos ou económicos, do universo literário e editorial. O Festival Literário de Viseu – Tinto no branco viu o seu esforço em se diferenciar de outros festivais reconhecido pelo público.

A literatura, a música e o vinho foram as substâncias embriagantes que, durante três dias, romperam com a rotina da cidade de Viriato.

Sem comentários: