25/02/2017
A afronta de nos tomarem por parvos
Em O Público, 25 de Fevereiro de 2017
A mentira, seja sob forma directa ou rebuscada, em matérias públicas é inaceitável. Sobre isso não vale a pena dizer mais nada. Os governantes não tem obrigação de dizer a verdade — sim, há razões de Estado que podem implicar a mentira — mas nenhuma cobre os casos recentes. Mentir pode ser legítimo, por exemplo, para esconder, até ao momento do seu anúncio, uma desvalorização da moeda, ou quando está em curso uma qualquer operação com riscos para as pessoas ou para o Estado, sensível à revelação irresponsável da verdade. São excepções, mesmo muito excepcionais, e precisam de ser muito explicadas a posteriori, quando finalmente se pode saber a verdade sem custos. Há matérias delicadas cobertas pelo segredo do Estado que justificam que um governante, quando interrogado directamente, tenha que mentir. Não deixa de ser mentira no momento em que é proferida, mas trata-se de uma mentira instrumental, destinada a proteger um bem maior. É um estatuto que pode ser alvo de abuso, e é-o muitas vezes, mas os limites éticos do dilema verdade/mentira não se aplicam neste tipo de “sombras”.
Mas não é, de todo, o caso da história dos SMS, nem do misterioso caso das estatísticas dos offshores, que nada justifica serem cobertos por qualquer “manto diáfano” de mentiras, meias-mentiras, sugestão de mentiras e omissões da verdade. A cabeça de um ministro ou a honra de há muito perdida de um ex-governo estão em causa? Não mentissem, nem nos enganassem. Mas, dito isto, também é preciso ter muito cuidado, para que a mediatização medíocre das redes sociais e de alguma imprensa não confunda questões sérias com outras de menor gravidade. E o caso Centeno e os milhões dos offshores não são comparáveis em importância, sendo que toda a gente já percebeu o que se passou no primeiro caso, e ainda muito pouco se percebeu do segundo.
O que sabemos sobre o dinheiro saído para os offshores durante a governação PSD-CDS? Sabemos que foi muito, muitos milhares de milhões de euros, de que os dez mil milhões de que se fala agora são apenas uma parte. Sabemos que uma parte saiu legalmente e também sabemos, por vários processos em curso, que outra parte saiu ilegalmente. Vamos deixar para já a parte ilegal, de dinheiro de pagamento de subornos, de corrupção, de negócios à margem da lei, e vamos apenas falar do que saiu legalmente, e nessa parte podemos apenas ficar-nos por esta magra fatia de dez milhares de milhões que não foram devidamente incluídos nas estatísticas e sobre os quais não sabemos ainda até que ponto os procedimentos de verificação habituais pelo fisco se realizaram, ou seja, se são resultado de actividades legais sem mácula fiscal. Por que é que isso aconteceu e o que é que isso significa?
Vamos seguir a mais benévola das hipóteses, de que tudo estava legal, e que apenas não se fez o registo estatístico. Comecemos por um ponto prévio que é verdade para todas as histórias que envolvem offshores. Já ouvi dezenas de explicações esforçadas para justificar por que razão as pessoas e as empresas colocam o dinheiro nos offshores, desde a fuga ao conhecimento do património nos divórcios milionários até à protecção de património face a credores, aos pagamentos a jogadores de futebol, passando pelas necessidades de pagamentos no comércio internacional. Tudo é coberto por dois mantos: um é de que se trata de processos legais, por isso incontestáveis pela crítica; o outro é que, havendo paraísos fiscais em qualquer outra parte exótica do mundo, não é possível acabar com eles em qualquer outro sítio. Mas isso não implica que se considere normal o uso de offshores e, numa sociedade em que os governantes se indignam com os direitos “adquiridos” dos mais fracos, tenham uma soberana indiferença face a práticas dos mais ricos que roçam a ilegalidade e que prejudicam, e não pouco, a riqueza do país. E quando isto se passa em tempos em que os governantes fazem um discurso de austeridade contra os que não podem fugir aos impostos e aos cortes, e são indiferentes às práticas dos mais ricos de tirar dinheiro, riqueza, do seu país, revolta. Este é o pano de fundo em que podemos discutir esta questão, e aplica-se como uma luva ao Governo PSD-CDS, onde o ataque aos mais fracos foi a regra, e a complacência com os mais poderosos foi também a regra.
No fundo, no fundo, o núcleo duro de ideias sobre a sociedade e a economia do Governo Passos-Portas foi que a recuperação do país passava pelo aumento da riqueza dos mais ricos, que traria por arrasto uma melhoria das condições de vida dos mais pobres. Era em cima que deveria haver “liberdade”, enquanto em baixo deveria haver “ajustamento” e cortes, até porque os de baixo já estavam mais acima do que deviam e tinham que ser postos na ordem e devolvidos “às suas posses habituais”. Da legislação laboral ao “ajustamento”, este era o programa. Dêem as voltas que derem, esta era a concepção e ainda o é, como se vê na questão do salário mínimo. Qualquer ideia, aliás na base do ideário social-democrata, de que o Estado deveria garantir um equilíbrio social, era e é tida como uma violação das regras da “economia”, com os de baixo a quererem mais do que a “economia” lhes pode dar. Em cima, não há essas restrições e, por isso, a indiferença face ao que acontece com os offshores é completamente natural.
Este é, insisto, o pano de fundo da interpretação mais benévola da falta de dados sobre os offshores: que saíssem dezenas de milhares de euros do país, não interessava aos governantes porque não estava no centro das suas preocupações, como estava cortar reformas e salários e levar o fisco até aos cabeleireiros e aos biscates. Tratava-se de uma prática normal da “economia”. Mas se esta é a interpretação mais benévola, não é a mais sensata, como se vê pelas explicações atabalhoadas que governantes do tempo do PSD-CDS têm vindo a dar sobre o que aconteceu. E aqui é que, como no caso de Centeno, entendo que é uma afronta para os portugueses tomá-los por parvos, só que neste caso num assunto muito mais grave.
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