Lisboa, 13 de Dezembro 2017
Excelentíssimo Sr. João Botelho:
Confesso que aguardava por um pedido de desculpa da sua parte, porque o aprecio como realizador, admiro o seu trabalho de adaptação cinematográfica de obras literárias portuguesas e sempre o considerei uma pessoa de princípios. Por isso, estranhei que, estando em falta para comigo, preferisse entregar um assunto tão delicado a outrem, em vez de o fazer pessoalmente.
E, de novo, por via indirecta, em terceira mão, me chegou a sua mensagem. É um bonito texto, literário mesmo, escrito com aquela subtilíssima ironia que faz o seu encanto, nas entrevistas. Fez-me pensar naqueles versos que ambos conhecemos bem, «O poeta é um fingidor/ finge tão completamente»… Porque é difícil de crer no que diz, quando tudo o que fez o contradiz.
A sua justificação de que não me conseguiu contactar nem à editora LEYA é inverosímil, bastava que algum dos seus ajudantes pusesse o meu nome no Google e acharia diversos meios para o fazer – sou figura pública, tenho blogues, várias páginas no facebook, e-mails e telefones e passo meses sem sair de casa, a escrever; do mesmo modo, a Leya não é uma editora de vão de escada, que não atende o telefone.
Quanto a pensar que eu pudesse estar nos EUA, também me custa a crer, pois o romance que usou traz a minha biografia na badana ou, ainda, bastava pôr o meu nome no Google, para me ver no activo. Além disso, João Botelho, se eu vivesse na América, o senhor não se atreveria a usar a minha obra do modo como o fez, porque lá os direitos de autor são sagrados. Em Portugal, as leis existem, mas só são cumpridas por alguns.
Se me tivesse falado do seu desejo de usar o meu livro como uma das fontes do filme, eu teria ficado desvanecida com a honra e nunca deixaria a editora pedir-lhe direitos de autor, nem ela tinha intenção disso. Bastava-nos que fizesse o que é costume e a ética impõe, quando se usa a obra de outrem, sobretudo se o autor ainda está vivo (e eu, ao contrário do Aquilino, ainda estou viva e lúcida). Ou seja, citar o título da obra e o autor nos materiais de promoção, cartazes, DVDs, documentos e também nas entrevistas em que se fale das fontes, como seguramente sabe.
Nada disto aconteceu. Fui alertada por leitores que comentaram a “adaptação cinematográfica do Corsário dos Sete Mares”, convencidos de que o realizador usara o meu romance e que eu sabia. Perplexa, fui pesquisar na internet. O primeiro texto/entrevista que li foi o de Nuno Pacheco, no Ípsilon. E passei da admiração ao pasmo. O senhor fala das personagens que eu inventei no meu romance, como se fossem da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. E refere como fontes a obra do próprio aventureiro, as canções do Fausto e a adaptação do Aquilino, de onde tirou a conhecida e rebatida ideia do alter ego de Fernão, sem nunca mencionar o meu livro, que tantas personagens e ideias lhe deu.
Vi e li mais textos, entrevistas e vídeos, com o mesmo resultado. O senhor nunca menciona o meu romance e tem falado sempre das minhas personagens, cenas e ideias, como se fossem suas ou da Peregrinação de FMP, mostrando, desculpe-me que lhe diga, conhecer muito mal esta obra. Eu, pelo contrário, conheço-a “como as minhas mãos” por a ter lido quatro vezes na íntegra e ter trabalhado nela e no meu livro quase cinco anos. Com o aplauso de jornalistas que nunca a leram nem ao meu livro e propagam o erro.
Tão reiterada é esta atitude, João Botelho, que contraria claramente a sua afirmação de querer “reparar um mal e, ao mesmo tempo, agradecer tardiamente um bem”, apesar da beleza poética da frase. Contudo, justiça poética, apesar de doce, não me consola.
Vi o filme, de que gostei bastante, mas fiquei com a sensação de que o senhor seguiu mais de perto o guião do meu romance (porque de um guião se trata) do que o da Peregrinação, que é confuso e de tal maneira intrincado, que me levou muitíssimo tempo a destrinçar.
Em O Corsário dos Sete Mares, a tarefa de desbravamento está, portanto, simplificada, com todos os erros e falhas corrigidos: dividido em mares, os episódios desenrolando-se em cenas, com diálogos, monólogos/pensamentos e flashbacks das personagens, tanto da obra de FMP, como ficcionados por mim, a partir de meras sugestões, como a de Joana e de Manuel Freire – enfim, um trabalho fácil de transpor para o cinema, como são todos os meus romances dos Descobrimentos.
Sabe bem que não foram apenas as cenas da China que adaptou do meu romance ou nas quais se inspirou, João Botelho. A japonesa Wakasa também não existe na Peregrinação, foi com muita pesquisa que encontrei a história e as crónicas japonesas, ficcionei o seu casamento com Fernão, fazendo dela uma espécie de Madame Butterfly. E a “Senhora” adúltera foi também uma ficção minha a partir de um crime do tempo, que encontrei num arquivo e numa genealogia. Até o “número mágico nove”, de que fala nas entrevistas, é o leit-motiv do meu livro. Não tenho acesso ao seu guião original, mas, quando o filme aparecer em DVD, vou poder compará-lo em pormenor, com a Peregrinação de FMP e com o meu romance, para tirar teimas.
Assim, é de facto muitíssimo pouco o seu reconhecimento. No fim da ficha técnica, na penúltima entrada, a dos agradecimentos, mal consegui ler o meu nome envergonhado. Para se salvaguardar, talvez, de uma natural reacção da editora ou da autora. Os textos de Fausto são identificados, os meus não. Não estranhe que eu me sinta usada por si.
O filme vai ser passado para as escolas, apresentando aos alunos muitas cenas de O Corsário dos Sete Mares, de Deana Barroqueiro, como se pertencessem à Peregrinação de Pinto, o que é nocivo e antipedagógico, uma coisa que, enquanto professora, com 35 anos de serviço, não posso aceitar.
Se, de facto, pretende «reparar um mal e, ao mesmo tempo, agradecer tardiamente um bem», João Botelho, faça-me a justiça de indicar a minha obra como uma das suas fontes. Ainda está muito a tempo de reparar a injustiça. Se não o fizer, saberei que agiu, conscientemente, de má-fé.
Tenho muitos milhares de leitores, o seu filme até seria beneficiado por essa indicação. Aliás, com a cinta que a editora vai pôr no romance, o senhor irá lucrar muito mais com a publicidade do que eu. Chama-se a isto pagar o mal com o bem.
Atentamente
Deana Barroqueiro