19/10/2019

«1640», a Catalunha e a Restauração

       No próximo dia 1 de Dezembro, a Restauração da Monarquia que nos tornou de novo independentes do domínio castelhano (ao contrário da Catalunha e de outros movimentos independentistas) faz 379 anos. Como parece que gostaram do tema, deixo-vos aqui mais umas passagens do meu «1640». Quem fala em 1ª pessoa (Eu) é D. Francisco Manuel de Melo, que está preso e recebe a visita de alguns heróis da Restauração:

       «– Abençoada revolta da Catalunha – começa D. Álvaro de Abranches, com uma risada de satisfação, parecendo ler o meu pensamento –, que desviou de nós as atenções de Olivares e do seu exército! Espantou-nos a tardia reacção do conde-duque ao nosso golpe, como se lhe custasse a crer que os portugueses fossem capazes de tamanha ousadia. Essa imprevidência foi-lhe fatal. A res publica, por cá, ia de mal a pior. Eram poucos os que possuíam grossos cabedais, porque quem os tinha já saíra do reino ou empobrecera. Olivares, na sua cegueira, obrigava Portugal a pagar mais dez ou doze tributos do que Castela, encarregando Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos de fazerem o trabalho sujo de nos espremer até o tutano.
        – O verdadeiro governador do reino era Soares, esse traidor mal nascido, embora estivesse na secretaria de estado de Madrid! – regouga D. Rodrigo de Castro. – Ele propunha os tributos e os modos para a sua imposição, que o dedicado genro, Miguel de Vasconcelos, fazia executar em Lisboa, no cargo de escrivão da Fazenda.
        – Uma tríade de amanuenses – diz o poeta Brás Garcia de Mascarenhas – que defendia os interesses estrangeiros em prejuízo dos naturais.
        – Só saberá governar bem uma república, quem souber governar bem a sua casa – afirmo-lhe, convicto. – A cidade é uma família grande e a família uma cidade pequena. Toda a governança de uma casa se reduz a dois pontos: pão e pano ou prato e trato. Pelo pão ou prato, se deve entender todos os bens das portas adentro, pelo pano ou trato, todos os bens e cómodos das portas afora. Os estrangeiros levam-nos o ouro e a prata, e deixam-nos em seu lugar bonifrates e cascavéis…
        – A tríade infernal encarniçava-se contra uma nação que já estava empobrecida e endividada – recomeça D. Álvaro. – Os motins rebentavam por todo o reino, como os do Manuelinho de Évora, ou o das Maçarocas no Porto, com magotes de gente nas ruas a exigir em grandes clamores que El-Rei D. Filipe, antes de tirar o pão da boca ao povo de Portugal, emendasse os abusos das doações do nosso património a estrangeiros. Pediam-lhe para reformar a administração de Madrid, cortando nos gastos, como fizera Dom Sebastião, para custear a campanha de África, reduzindo a despesa da sua mesa a vinte cruzados diários. Os fogachos e fumos da revolta foram-se avolumando, anunciando o grande incêndio que não tardaria a lavrar, alimentado pelo sopro nostálgico do Desejado, o Rei salvador por quem todos suspiravam, o Príncipe Encoberto das profecias do Bandarra e de tantos outros videntes.
        – Essas trovas que invocavam o Desejado – diz Brás Garcia – chegaram até à minha recôndita vila de Avô, onde eu me refugiara, influindo também no meu poema "Viriato Trágico", de que vos citarei uma oitava, já que mo haveis pedido: Antigas Profecias, bem que escuras / notadas de prudentes curiosos, / por entre a confusão das desventuras / uns longes transluziam venturosos. / Porém sendo em proféticas figuras / os alvos de acertar dificultosos. / Tendo perto de si o a que atiravam, / como cegos sem luz, todos o erravam.
        Aproveito a interrupção e os aplausos ao poeta, para acrescentar:
        – O triunvirato de escriturários que governava Portugal era de baixo nascimento, pouca qualidade e medíocre saber, não estava à altura de tão difícil empresa. Há homens que medram por tomarem os ofícios que não são seus, outros por fazerem o que não sabem, porque vendem a sua ignorância por mistério. E como ninguém quer mostrar que ignora o que outro mostra que sabe, logo se apressa a aprovar a parvoíce alheia para encobrir a própria!
        – Dizia um cortesão que assim como cada homem, por bom governo de sua casa, devia matar cada ano pelo menos dois porcos, assim, para bom governo da res publica, se devia matar cada ano pelo menos dois vilões ruins dos muitos que nos desgovernam – remata o poeta.
        – Soares tinha tamanho receio do poder do duque de Bragança que disse, despudoradamente e em público, que “El-Rei não seria senhor de Portugal, enquanto a praça de Vila Viçosa se não tornasse um prado sempre verde”, recomendando a destruição da casa ducal.
        – Pois é, as parvoíces são como as almorreimas, em que o perigo está em saírem para fora, quanto melhor não seria se as deixassem ficar no sesso.
        D. Álvaro deixa esmorecer os risos e murmúrios de concordância que a fala de D. Rodrigo provocou e retoma a sua narrativa:
        – O ódio à tríade dos judas era um fogo vivo a atiçar os ânimos dos que ansiavam por um Rei natural, nascido na sua nação, capaz de lhe defender e preservar a independência, assegurando um bom governo e sendo garante do bem-estar e segurança do seu povo. Com a nomeação da duquesa de Mântua, uma estrangeira, para vice-Rainha de Portugal, o conde-duque violou de novo os trata-dos de Filipe I, lançando mais uma acha na fogueira, e a nobreza juntou o seu descontentamento ao do povo. Ora escutai a Brás que pede a palavra.
        – … com tão grande valor, tal ousadia, / que o perigo mortal não considera, / que considerações escrupulosas / nunca geram façanhas generosas. // Luta o valor com mil dificuldades, / a todas derrubando em profecia, / por acabar com mil adversidades, / por desterrar a estranha tirania, / por evitar rendidas dignidades, / por restaurar a antiga Monarquia, / e por não sofrer mais tantos tributos, / que brutos nos deitavam como a brutos.
         – Vejo, pelos aplausos, que a minha sugestão de fazer dialogar a prosa com a poesia é do vosso agrado, portanto, vou prosseguir com o meu relato, rogando ao poeta que me interrompa, sempre que lhe aprouver, com excertos da sua epopeia.

        «Quando o duque de Bragança foi a Almada e passou o rio para visitar e prestar homenagem à vice-Rainha, foi aclamado como legítimo herdeiro da monarquia pelo povo e por muitos nobres que acudiram a vê-lo, com tamanho alvoroço que o marquês de la Puebla, pressentindo o perigo naquelas aclamações, desabafou com azedume: Para que tiran el duque de su tapada y le muestran a los Portuguezes? Dexenle estar en su rincón.
        D. João mostrava-se relutante em aceitar a coroa, tendo a sua Corte em Vila Viçosa e levando uma mimosa vida, de muita abastança e prudência. Para manter as boas graças de Madrid, casara nesse ano com Dona Luísa de Gusmão, um matrimónio cozinhado por Olivares, por ela ser filha dos duques de Medina-Sidónia, ainda seus parentes, a fim de melhor sujeitar ao seu poder a casa de Bragança.
        Contra todas as presciências do valido, o tiro saiu-lhe pela culatra. A nova duquesa, de vinte anos (menos nove que o marido), formosa, sobre o moreno e de olhos grandes, era também descendente dos Reis de Portugal, D. João I e D. Fernando e, segundo consta, um escravo mouro da casa de seus pais, com fumos de nigromante, vaticinara-lhe à nascença – Domingo, dia 13 de Outubro de 1613 – que haveria de ser rainha, uma profecia que todos levaram à conta de inzonas do perjuro para receber alvíssaras.
        Relembrando, com algum espanto, esta lenda do seu nascimento, a duquesa escolheu sem hesitar o partido da Restauração, vencendo a tibieza do marido, com uma varonil declaração: – Ainda que a morte seja a consequência da Coroa, tenho por mais acertado morrer reinando que acabar servindo. De mais todos os vaticínios seguram a empresa, por conseguinte, somente a dilação de vos coroardes pode ser prejudicial.
        A meu ver, o que levou D. João a decidir-se foi a determinação dos confederados em escolher o seu irmão D. Duarte para Rei de Portugal, se ele continuasse timorato. Já em Novembro de 1638, depois das alterações de Évora…»
     
       – Estava eu de novo preso em Lisboa… – murmuro, a meia voz, logo arrependido da interrupção.
        D. Álvaro não parece incomodado e, fazendo-me um aceno de compreensão, prossegue:
        – Em Junho desse ano, o Infante pedira licença ao Imperador Fernando III, em cujo exército servia, para vir a Portugal tratar da herança que seu irmão Alexandre lhe deixara, a qual incluía três comendas da Ordem de Cristo.

        «D. António de Mascarenhas, que começara a perder a esperança de conquistar o duque de Bragança para a nossa causa, farto de o ouvir dar a mesma resposta de que “ainda não havia ocasião”, foi ver D. Duarte à quinta da Cotovia, onde ele se refugiara e evitava visitas, antes da sua partida para o Sacro Império. Buscou por todos os meios convencê-lo a ficar em Portugal, insistindo em como a sua experiência militar e política seria sem preço para o movimento. Afiançou-lhe a lealdade do numeroso grupo de fidalgos, que esperava a sua ajuda para pôr a coroa na cabeça do irmão. O Príncipe disse-lhe também que ainda não chegara a hora da Restauração.
        Não querendo desistir da sua preciosa ajuda, os conjurados enviaram-lhe Jorge de Melo com uma proposta, feita em veementes palavras: Senhor, donde se vai, quando o Reino está lutando com as ondas de um pego de contínuas vexações? E quando El-Rei de Castela nos quer aniquilar e reduzir à mesma infelicidade da Galiza? O duque é o legítimo Rei de Portugal; se ele não quiser aceitar o ceptro, aceite-o Vossa Excelência, que nós saberemos sacrificar a vida em sua defesa. O senhor Infante respondeu-lhe: Deixai essa empresa nas mãos de Deus, que haverá de a resolver a contento dos portugueses. Juro-vos que, quando esse momento chegar, virei de donde quer que me ache e não vos faltarei com o meu amparo.
        Não o pôde fazer, como sabeis (e perdoai-me por me adiantar na história), porque D. Filipe e Olivares, temendo que a sua experiência de grande comandante militar fosse de muito proveito a Portugal e prejuízo a Espanha, assim que souberam da Restauração, fizeram com que o Imperador da Alemanha o prendesse e vergonhosamente lho vendesse, como se fora um escravo, para ser encarcerado nas masmorras do castelo de Milão, sem esperança de liberdade. Na falta de provas contra D. Duarte, o conde-duque recorreu à calúnia, dizendo que era pública voz e fama que ele não somente era cúmplice do irmão rebelde, mas autor da rebelião.».
        – São preciosas as notícias que me dá – interrompo de novo, muito alvoroçado com o rumo da conversa, que vinha ao encontro da minha curiosidade há muito insatisfeita, por me achar na prisão –, porque tenho entre mãos uns rascunhos sobre a sua vida que vou escrevendo ao sabor do que fui ouvindo, quer no meu Tácito Português, um opúsculo com os ditos e feitos d’El-Rei, quer em folhetos como o Elogio ao senhor Infante D. Duarte irmão do sereníssimo Rei D. João IV, quando segunda vez se preparava para a jornada da Alemanha, precisamente sobre esse sucesso. Na década de 30 todos os que servíamos nos exércitos de Filipe, conhecíamos os seus feitos de ar-mas, contra os exércitos da Suécia e da França. Rogo-lhe novamente perdão, D. Álvaro, por mais esta interrupção, testemunha do meu grande interesse e desejo que se detenha nos pormenores de maior significado da história.
        Aproveitando a pausa, o poeta recita:
        – Arde o desejo por chegar a efeito, / que bem se infere, bem, ou bem se entende / quão grande coração arde no peito / do grão-duque, pois tal empresa empreende. / Mas ele, e cada qual no brando leito / donde o conselho ao valor repreende, / inquietos sentem, sem dar tréguas aos olhos / lençóis de espinhos e colchões de abrolhos.
(Deana Barroqueiro - «1640»)


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