09/10/2009

No rasto de Pêro da Covilhã

Enquanto escritora de romance histórico, pretendo dar aos meus leitores a visão dos factos e dos lugares segundo o ponto de vista e a experiência daqueles que viveram na época de que me ocupo, em particular, os séculos XV, XVI e XVII. Por isso, só visito esses sítios distantes por onde peregrinaram os meus heróis, depois de concluído o romance, a fim de não deixar contaminar essa visão pelo olhar contemporâneo, todo outro, do Século XXI. Vou apenas para verificar se as minhas pesquisas e o mágico olhar da imaginação não atraiçoaram o rigor histórico e a realidade desse mundo antigo.

Assim sendo, integrei-me com o meu marido, João Pires Ribeiro, na embaixada cultural do Centro Nacional de Cultura, que partia ao encontro da História, seguindo o rasto de Afonso de Albuquerque, o Terrível, através das fortalezas de Mascate, Curiate, Khasab (Musandam), Ormuz, ou do forte do Bahrein, entre outras. Eu, porém, seguia outro rasto, não o do conquistador e futuro governador das Índias, mas o do Espião de D. João II que o precedeu e, em 1487, encetou uma das mais extraordinárias viagens de todos os tempos: Pêro da Covilhã. Tal como Marco Polo, também ele esteve duas vezes em Ormuz, e no Cairo, antes e depois da sua peregrinação de seis anos pela Índia e pela costa Oriental de África e de onde voltaria a partir para a Arábia Félix, Sinai e, por fim, Etiópia, término da sua demanda do Preste João e da sua viagem sem regresso.


Com inexplicável emoção vislumbrei, por entre a neblina dos fiordes formados pelas estranhas configurações das montanhas de Omã, essa mesma paisagem que Pêro da Covilhã contemplou 520 anos antes de mim – as costas da Pérsia (Irão) e a florescente e rica ilha de Ormuz, a “Pedra do Anel”, onde desembarcou pela segunda vez, por ordem d’el-Rei D. João II, para aí deixar o Rabi Josef. Mal sabendo nadar, não resisti a meter-me naquele mar salgadíssimo, cuja densidade me permitia flutuar sem barbatanas nem coletes de salvação. A presença do meu herói bastava para me fortalecer a coragem, espicaçando-me a portuguesa costela aventureira. Porém, ao contrário da tolerância religiosa e do esplendor do luxo e das artes, que o espião de D. João II aí encontrou, foi-nos negada a entrada numa aldeia, pelos seus chefes, a pretexto do Ramadão e da nossa presença ser nociva (decerto por sermos infiéis, apesar de nos apresentarmos tapados da cabeça aos pés por balandraus mouros e lenços, por respeito aos seus costumes, sendo nós os visitantes.

Idêntica emoção experimentei, todavia, no Mar Roxo por onde Pêro da Covilhã navegou a medo nos djelbas, os barcos mouros feitos de tábuas atadas por cordas de cairo, sem pregadura, primeiro com o seu malogrado companheiro, o albicastrense Afonso de Paiva, e posteriormente sozinho duas ou três vezes. Aí pude mergulhar também nas suas águas, numa praia privativa de um hotel para estrangeiros, a salvo da intolerância religiosa e da sujeição ignóbil e castradora imposta às mulheres, para as reduzir à condição de servas dos homens, uma espécie de animais domésticos para reprodução.

No Cairo, mal vi os souqs, os quarteirões dos comerciantes, no entanto pareceu-me terem perdido o espírito antigo que ainda senti nos de Istambul, talvez devido ao excesso de turismo e da globalização no seu aspecto mais negativo de “formatação” dos povos. No entanto, a Cidade dos Mortos, onde o meu herói se bateu contra um bando de meliantes, não me defraudou. Nessa grande urbe, dentro da imensa cidade do Cairo, os vivos coabitam com os mortos, porque, desde há muitos séculos, ela se fez refúgio de miseráveis, desvalidos e criminosos, onde até a polícia receia penetrar. Vi do interior do autocarro (não deixam os turistas passear-se por ali) os túmulos ocres em forma de casas e os mausoléus de mármore que erguem as suas cúpulas altivas, semelhantes a minaretes de mesquitas ou abóbadas de palácios, tal como eu as descrevi em O Espião de D. João II, através dos olhos de Pêro da Covilhã. Disfarcei, para que os meus companheiros de viagem não me vissem chorar.

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