28/09/2010

Memórias de Estalo - Capítulo I


DE BELÉM A SANTOS-O-VELHO


O breu da noite já se esfuma e não tarda a clarear a manhã. Arrimado ao muro deste grandíssimo Mosteiro de Santa Maria de Belém, no surgidouro[1] do Restelo, vou arrecebendo na carrocinha a carga de verduras e frutas do quintalejo que os bons freires Jerónimos deixam cultivar a meu amo a troco d’alguns serviços e sinto-me entanguecido[2], com os costados húmidos pelo chuvisco geeiro[3] vindo do mar ali tão cerca. O matabicho costumeiro destas albas de Novembro assaz frias soube-me a pouco, à míngua de castanhas, que este ano as geadas foram bastas e nos castanheiros os ouriços não medraram. Ora sus ! Quem muito pede… muito fede. À cautela deixei de banda umas poucas de favas para ir dando algum trabalho às queixadas e entretendo o caminho.
Trigoso[4] vem meu amo e com razão que a jornada até à Ribeira de Lisboa tem a lonjura de três mil passos, muitos por ásperos carreiros, que a direito nos tolhe o mar o caminho e há que entrar na cidade pela porta dos Paços de Santos-o-Velho. “Desenguisa-te, desgorgomilado[5], que quem não trabuca não manduca!” brada-me com fingida sanha, por ser homem d’ ânimo aprazível e faceiro. “Uxte! Uxte! que se faz tarde!” E lá vem o estalido da língua, como só ele sabe fazer, qual estoiro de petardo no silêncio da alvorada, não havendo mula ou jumento, por mais entirrado[6] que seja, que ao ouvi-lo não se meta a caminho, tão esforçado, como se disso dependesse a salvação de sua vida. Rompemos, pois, num passo vivo que a carrocinha não vai cheia e os mercaderes não esperam, pois lá diz o dito que "quem não parece[7], esquece".
Ladeando o muro, e muito antesde dobrar a quina do Mosteiro, afemenço[8] o vulto da Torre de S. Vicente a que chamam de Belém, toda em pedra de cantaria. Tem quatro pisos, mas é tão formosa e airosa que parece mais pequena, feita assim, sobre rochas, mar dentro. Guarda o Mosteiro e o porto de Lisboa, sempre de vigia à passagem estreita, para que nenhuma nau se possa acercar sem seu consentimento.
Agora, no lusco-fusco da alba, abre os olhos e a boca em jeito de sono ou pasmo, mas nada lhe passa desapercebido.

A frontaria do Mosteiro de Santa Maria de Belém alteia-se negra e temerosa, pois a hora é de avantesmas e de maus encontros e, a pesar do varapau do meu amo e da sua sobeja Tamanho do tipo de letraarte de varejar um terreiro de malandrins, um arrepio de medo eriça-me os pelos do toutiço. “Toma-me tento ao caminho, ó malparido, que a carroça vai de banda!”, brada-me iroso do meu tropeço, que tão pouco lhe praz a escurana e o que ela pode esconder.

A porta travessa, virada para o Tejo, é a mais formosa e melhor lavrada do Mosteiro, abrindo para uma comprida e galante varanda de pedra talhada, de longo do caminho público até ao cabo[9] de todos os jardins e casas do convento. Tendo as gentes passo[10] às suas arcadas, estas oferecem guarida e pousada, durante a noite, a grande soma de matelotes[11] e forasteiros que saem das naus surtas aqui no cais. De dia, é um ferver de vida com as idas e vindas dos mercadores no concerto de seus tratos de especiarias, ricos panos e pedraria da Índia ou de escravos da Guiné.

El-Rei D. Manuel começou de fazer este Mosteiro no ano de 1499 – no lugar de uma ermida do Infante D. Anrique[12] a Nossa Senhora da Estrela –, para celebrar a chegada de D. Vasco da Gama, depois de descoberta a derrota para a Índia. Espantoso feito, sem dúvida, que deu causa a muitas das fortunas, mas também das grandes misérias, do presente! Não poupou El-Rei Venturoso despesas para a edificação deste maravilhoso templo que ele elegeu para jazigo de sua sepultura, mas que não viu acabado por se ter, primeiro que ele, acabado sua vida. Agora seu filho, El-Rei D. João III, o está acrescentando e levando a cabo, como se pode ver pelos estaleiros (a esta hora sem viv’alma).

Na porta travessa que está contra a praia, por ser a mais principal em vista, mandou El-Rei D. Manuel pôr a imagem do Infante D. Anrique, como primeiro fundador desta casa, sobre a coluna do meio, armado com sua cota de armas e a espada nua na mão, alevantada para riba, em sinal de vencedor, que é cousa maravilhosa de se ver! Inda andam nas bocas do povo as trovas de Resende feitas à memória de D. Manuel:

“Rei e Príncipe seviu
De Castela, e lá andou,
Di a pouco descobriu
A Índia, e a tomou,
Como todo o mundo ouviu,
Tomando reinos, e terras
Por mui guerreadas guerras,
Ganhando toda a riqueza
Do Soldam e de Veneza,
Subjugando mares, serras.

Vimos-lhe fazer Bethleem
Com a gram torre no mar,
As casas do almazem
Com armaria sem par
Fez só el Rei que Deos tem:
Vimos seu edificar,
No Reino fazer alçar
Paços, igrejas, mosteiros,
Grandes povos, cavaleiros,
Vi o reino renovar” .

Mas o grandíssimo Mosteiro lá ficou para trás, apequenando-seapequenando-se na lonjura do caminho, e corremos já meia légua por campos e pastos, entre quintas de ricas casas de lavoura. Os vergéis são bastos e a fruta cheirosa, de criar apetites e saliva na gorgomileira. De todas as vezes que aqui passo, aboco uma maçã e a vou roendo e masticando com demoradas delícias, porém, hoje, não me sorriu a Fortuna, que meu amo nos desviou na pressa de ganhar caminho e cruzamos terras de pastos rasos e ralos do retouçar continuado de muitos rebanhos de cabras e ovelhas, que tudo engolem e nem os talos deixam. Arranco, de passagem, uma verdurita que lhes escapou e a vou mordiscando, que não há melhor cousa para refresco da boca e do bafo que um ramito verde acabadinho de colher! E, como soe dizer-se, "segundo são os tempos… assim hão de ser os tentos." Paciência, pois, e toca a andar!

(Continua...)

[1] Encoradouro.
[2] Tolhido de frio, enregelado.
[3] De geada, de gelo.
[4] Apressado.
[5] Desembaraça-te, comilão!
[6] Teimoso.
[7] Aparece
[8] Avisto.
[9] Extremo.
[10] Acesso, passagem.
[11] Marinheiros.
[12] Infante D. Henrique, filho de D. João I e impulsionador dos Descobrimentos.

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