24/01/2012

A quase clandestinidade da Literatura

Da Mesa-redonda «Balanço Literário da Década», no Centro Nacional de Cultura, uma certeira análise da Literaturada última década, por Ana Marques Gastão:

"Passando em revista a paisagem literária do último decénio, é notório o enormíssimo desnível entre quantidade e qualidade. Num tempo em que a interdependência entre cultura e mercado se faz sentir de uma forma cada vez menos ética, o grande volume de títulos publicados sem uma política editorial criteriosa não deixa de ser um sintoma de que a literatura, por assim dizer «séria», se tornou quase clandestina. Enquanto, no domínio da ficção, surgiram algumas obras de relevo que em si encerram um devir objecto estético e/ou intelectual, no campo da poesia, a chuva torrencial de edições trouxe, por um lado – com honrosas e, por vezes, repetitivas excepções –, a maior desatenção por parte dos editores à publicação de livros escritos por poetas seguramente reconhecidos, e, por outro, o surgimento de autores com a chancela de pequenas ou médias casas editoriais que lutam, não sem esforço, pela sobrevivência.

Grave é o perigo que correm os poetas, e muitos ficcionistas, a quem eu chamaria de sempre no campo da edição: são facilmente ignorados. Os jovens, esses, se têm um mínimo de qualidade, vão-se acolhendo nas pequenas editoras ou no mundo da internet, onde proliferam blogues e sites. Nunca foi simples começar, mas o que não se escreve não existe, tal como sublinha Yvette K. Centeno no seu último romance, Do Longe e do Perto – Quase-Diário, é, todavia, necessário que seja dado a ver. Não me parece admissível que autores de prestígio tenham dificuldade em publicar – ou que sejam obrigados a fazê-lo online –, por lhes fecharem portas atrás de portas, tantas vezes depois de terem visto guilhotinar os seus livros, enquanto desfilam nos corredores mediáticos poetas sem poesia dentro, ou poesia sem poetas dentro. Dir-se-ia lamentável que escritores menos celebrados sejam ignorados por viverem fora da cidade dos lobbies instalados e estabelecidos. Se há demarcação cada vez mais difícil de se fazer é a da qualidade, pois a dimensão da crítica literária – que quase não existe na imprensa diária e, por pouco, sobrevive na hebdomadária – perdeu, salvo em diminutos casos, por falta de qualidade e pela exiguidade do espaço que lhe é concedido, o papel que em tempos teve: o de dar a conhecer fundamentada e rigorosamente uma obra, comentando-a.

No atropelo do que se vai editando, sabemos que se tornou bem difícil encontrar numa estante a obra que o leitor pretende, já que as livrarias se tornaram em supermercados de aeroporto com pessoal de atendimento pouco especializado. A tríade edição/distribuição/mundo livreiro deixou de funcionar convenientemente e há livros que nem hipóteses têm de chegar aos consumidores a não ser via internet, o que é eficiente e veloz, mas, por vezes, tão abstruso como o papel sem lápis: o comprador não vê nem folheia o objecto que adquire. O ensaísmo e a literatura não-light assumem hoje, por outro lado, um lugar de invisibilidade, enquanto novos autores de qualidade são escondidos em espaços quase marginais. Vai sobrevivendo a cultura-espectáculo alimentada pela publicação excessiva na área do entretenimento que ultrapassa em muito o que se faz, em vários segmentos da edição, no resto da Europa em crise, mas nesse aspecto mais civilizada.

Registo, no entanto, o surgimento na década anterior de Obras Reunidas assinadas por poetas a quem a história da literatura muito deve como é o caso, entre outros, de Ana Luísa Amaral, António Osório, António Ramos Rosa, Armando Silva Carvalho, Eugénio de Andrade, Fernando Echevarría, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Herberto Helder, Luís Miguel Nava, João Rui de Sousa, Mário Cesariny (os poemas maiores), Maria Teresa Horta, Nuno Júdice, Pedro Tamen, Ruy Belo e Sophia de Mello Breyner Andresen. Trata-se de matéria essencial para o leitor, mas também para o investigador e historiador da literatura. Destaque-se o esforço que se fez no campo do ensaio literário (nas suas extensões e ligações a outros ramos do saber), onde a língua portuguesa imaginativamente floresce. Assistiu-se, por outro lado, neste decénio, a uma certa recuperação da memorialística, mesmo no âmbito da ficção, da diarística e da crónica. As insufladas e excessivas edições na área da literatura para a infância e juventude – nem sempre de qualidade –, trouxeram poucos mas significativos escritores, bem como jovens ilustradores de traço original.

Tudo isto poderia constituir uma amálgama de lugares-comuns se não se fixassem alguns traços da paisagem literária portuguesa recente: é notório, a meu ver, que as «sereias» – entendidas estas enquanto força de ruptura no movimento da linguagem e do pensamento – estão a ser silenciadas pelo poder da tecnocracia, do mercantilismo, dos hipermercados do vazio. Não sei se Ulisses as terá vencido, mas digamos que o facilitismo de que se veste o comboio da cultura – suportado, de forma ética e humanamente reprovadora, pelos jornais – tem contribuído para o seu descrédito, o que não significa que se defenda uma imprensa elitista, mas mais abrangente e sobretudo exigente. O ecrã da história – como se lhe referiu Braudillard, move-se ao mesmo ritmo que os fenómenos naturais; a sua construção é irremediavelmente inseparável do saber que pode ser transmitido em todos os domínios de forma clara, democrática, mas não mediocrizante.

Digamos que a essência da Literatura, transformadora do tempo num espaço imaginário (o espaço das imagens), tem vindo a ser lentamente esvaziada de ideias; sem elas, que mundo estamos a construir? Perdeu-se o trilho do segredo aliado à paciência, ao rigor e à sedução do desconhecido, sendo notória, por outro lado, uma ténue tendência para a abordagem de temas em que a espiritualidade ganha um espaço interessante, por vezes de linhagem filosófica. Tornou-se, entretanto, evidente a descolagem da narrativa de temáticas identitariamente apegadas a Portugal enquanto a investigação histórica se foi alargando a um ritmo imprevisível; o movimento da escrita impregna-se hoje de marcas mais universais, ainda que estas surjam como cintilações solitárias ou vibrações.

A experiência de um tempo/espaço imaginários e de pensar o real passou, no entanto, de forma mais evidente, para o domínio da ensaística. Nesse campo, encontramos excelentes escritores, sabendo nós que os ficcionistas de ideias, os da sombra da passagem, da transfiguração metafórica, do símbolo e da alegoria, do sublime e do grotesco, do impulso que vai do figurativo ao abstracto, do movimento laborioso da palavra, vão emergindo cada vez menos, dando lugar ao bem-fazer das telenovelas pseudoliterárias.

Que podemos desejar para os próximos dez anos? Uma literatura não colada a uma multidão mimética que transporta os erros de uma política de educação que ainda não conseguiu – talvez por uma não aposta numa séria formação dos professores e pela manutenção de currículos absurdos – ensinar a ler. Surdos e cegos das essências, mesmo das mais simples, vamos criando monstros activos regidos pela padronização da cultura, pela sobrevalorização do lucro e pela ausência de valores. Seria bom se não fossemos nem centauros da ignorância nem cidadãos apáticos. Sons quase palavra ou linguagem quase-cifrão não geram pensamento nem criatividade, apenas subalternizam o mais nobre fundo do ser humano.

Ana Marques Gastão
Ver mais em: Mesa-redonda «Balanço Literário da Década», CNC, 15-12-2011.

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