29/11/2012

Público - A grosseira inconstitucionalidade da tributação sobre pensões



por António Bagão Félix

Aprovado o OE 2013, Portugal arrisca-se a entrar no "Guinness Fiscal" por força de um muito provavelmente caso único no planeta: a partir de um certo valor (1350 euros mensais), os pensionistas vão passar a pagar mais impostos do que outro qualquer tipo de rendimento, incluindo o de um salário de igual montante! Um atropelo fiscal inconstitucional, pois que o imposto pessoal é progressivo em função dos rendimentos do agregado familiar [art.º 104.º da CRP], mas não em função da situação activa ou inactiva do sujeito passivo e uma grosseira violação do princípio da igualdade [art.º 13.º da CRP].
Por exemplo, um reformado com uma pensão mensal de 2200 euros pagará mais 1045 € de impostos do que se estivesse a trabalhar com igual salário (já agora, em termos comparativos com 2009, este pensionista viu aumentado em 90% o montante dos seus impostos e taxas!).
Tudo isto por causa de uma falaciosamente denominada "contribuição extraordinária de solidariedade" (CES), que começa em 3,5% e pode chegar aos 50%. Um tributo que incidirá exclusivamente sobre as pensões. Da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações. Públicas e privadas. Obrigatórias ou resultantes de poupanças voluntárias. De base contributiva ou não, tratando-se por igual as que resultam de muitos e longos descontos e as que, sem esse esforço contributivo, advêm de bónus ou remunerações indirectas e diferidas.
Nas pensões, o Governo resolveu que tudo o que mexe leva! Indiscriminadamente. Mesmo - como é o caso - que não esteja previsto no memorando da troika.
Esta obsessão pelos reformados assume, nalguns casos, situações grotescas, para não lhes chamar outra coisa. Por exemplo, há poucos anos, a Segurança Social disponibilizou a oferta dos chamados "certificados de reforma" que dão origem a pensões complementares públicas para quem livremente tenha optado por descontar mais 2% ou 4% do seu salário. Com a CES, o Governo decide fazer incidir mais impostos sobre esta poupança do que sobre outra qualquer opção de aforro que as pessoas pudessem fazer com o mesmo valor... Ou seja, o Estado incentiva a procura de um regime público de capitalização (sublinho, público) e logo a seguir dá-lhe o golpe mortal. Noutros casos, trata-se - não há outra maneira de o dizer - de um desvio de fundos através de uma lei: refiro-me às prestações que resultam de planos de pensões contributivos em que já estão actuarialmente assegurados os activos que caucionam as responsabilidades com os beneficiários. Neste caso, o que se está a tributar é um valor que já pertence ao beneficiário, embora este o esteja a receber diferidamente ao longo da sua vida restante. Ora, o que vai acontecer é o desplante legal de parte desses valores serem transferidos (desviados), através da dita CES, para a Caixa Geral de Aposentações ou para o Instituto de Gestão Financeira da S. Social! O curioso é que, nos planos de pensões com a opção pelo pagamento da totalidade do montante capitalizado em vez de uma renda ou pensão ao longo do tempo, quem resolveu confiar recebendo prudente e mensalmente o valor a que tem direito verá a sua escolha ser penalizada. Um castigo acrescido para quem poupa.
Haverá casos em que a soma de todos os tributos numa cascata sem decoro (IRS com novos escalões, sobretaxa de 3,5%, taxa adicional de solidariedade de 2,5% em IRS, contribuição extraordinária de solidariedade (CES), suspensão de 9/10 de um dos subsídios que começa gradualmente por ser aplicado a partir de 600 euros de pensão mensal!) poderá representar uma taxa marginal de impostos de cerca de 80%! Um cataclismo tributário que só atinge reformados e não rendimentos de trabalho, de capital ou de outra qualquer natureza! Sendo confiscatório, é também claramente inconstitucional. Aliás, a própria CES não é uma contribuição. É pura e simplesmente um imposto. Chamar-lhe contribuição é um ardil mentiroso. Uma contribuição ou taxa pressupõe uma contrapartida, tem uma natureza sinalagmática ou comutativa. Por isso, está ferida de uma outra inconstitucionalidade. É que o já citado art.º 104.º da CRP diz que o imposto sobre o rendimento pessoal é único.

Estranhamente, os partidos e as forças sindicais secundarizaram ou omitiram esta situação de flagrante iniquidade. Por um lado, porque acham que lhes fica mal defender reformados ou pensionistas desde que as suas pensões (ainda que contributivas) ultrapassem o limiar da pobreza. Por outro, porque tem a ver com pessoas que já não fazem greves, não agitam os media, não têm lobbies organizados.
Pela mesma lógica, quando se fala em redução da despesa pública há uma concentração da discussão sempre em torno da sustentabilidade do Estado social (como se tudo o resto fosse auto-sustentável...). Porque, afinal, os seus beneficiários são os velhos, os desempregados, os doentes, os pobres, os inválidos, os deficientes... os que não têm voz nem fazem grandiosas manifestações. E porque aqui não há embaraços ou condicionantes como há com parcerias público-privadas, escritórios de advogados, banqueiros, grupos de pressão, estivadores. É fácil ser corajoso com quem não se pode defender.
Foi lamentável que os deputados da maioria (na qual votei) tenham deixado passar normas fiscais deste jaez mais próprias de um socialismo fiscal absoluto e produto de obsessão fundamentalista, insensibilidade, descontextualização social e estrita visão de curto prazo do ministro das Finanças. E pena é que também o ministro da Segurança Social não tenha dito uma palavra sobre tudo isto, permitindo a consagração de uma medida que prejudica seriamente uma visão estratégica para o futuro da Segurança Social. Quem vai a partir de agora acreditar na bondade de regimes complementares ou da introdução do "plafonamento", depois de ter sido ferida de morte a confiança como sua base indissociável? Confiança que agora é violada grosseiramente por ditames fiscais aos ziguezagues sem consistência, alterando pelo abuso do poder as regras de jogo e defraudando irreversivelmente expectativas legitimamente construídas com esforço e renúncia ao consumo.
Depois da abortada tentativa de destruir o contributivismo com o aumento da TSU em 7%, eis nova tentativa de o fazer por via desta nova avalanche fiscal. E logo agora, num tempo em que o Governo diz querer "refundar" o Estado Social, certamente pensando (?) numa cultura previdencial de partilha de riscos que complemente a protecção pública. Não há rumo, tudo é medido pela única bitola de mais e mais impostos de um Estado insaciável.
Há ainda outro efeito colateral que não pode ser ignorado, antes deve ser prevenido: é que foram oferecidos poderosos argumentos para "legitimar" a evasão contributiva no financiamento das pensões. "Afinal, contribuir para quê?", dirão os mais afoitos e atentos.
Este é mais um resultado de uma política de receitas "custe o que custar" e não de uma política fiscal com pés e cabeça. Um abuso de poder sobre pessoas quase tratadas como párias e que, na sua larga maioria, já não têm qualquer possibilidade de reverter a situação. Uma vergonha imprópria de um Estado de Direito. Um grosseiro conjunto de inconstitucionalidades que pode e deve ser endereçado ao Tribunal Constitucional.

PS1: Com a antecipação em "cima da hora" da passagem da idade de aposentação dos 64 para os 65 anos na função pública já em 2013 (até agora prevista para 2014), o Governo evidencia uma enorme falta de respeito pela vida das pessoas. Basta imaginar alguém que completa 64 anos em Janeiro do próximo ano e que preparou a sua vida pessoal e familiar para se aposentar nessa altura. No dia 31 de Dezembro, o Estado, através do OE, vai dizer-lhe que, afinal, não pode aposentar-se. Ou melhor, em alguns casos até poderá fazê-lo, só que com penalização, que é, de facto, o que cinicamente se pretende com a alteração da lei. Uma esperteza que fica mal a um Governo que se quer dar ao respeito.
PS2: Noutro ponto, não posso deixar de relevar uma anedota fiscal para 2013: uma larga maioria das famílias da classe média tornadas fiscalmente ricas pelos novos escalões do IRS não poderá deduzir um cêntimo que seja de despesas com saúde (que não escolhem, evidentemente). Mas, por estimada consideração fiscal, poderão deduzir uns míseros euros pelo IVA relativo à saúde... dos seus automóveis pago às oficinas e à saúde... capilar nos cabeleireiros. É comovente...

Jornal Público, 29 de Novembro 2012

23/11/2012

À Descoberta de Fernão Mendes Pinto

Está on-line a entrevista À Descoberta de Fernão Mendes Pinto que me fez Eugénia Sousa, para o jornal Ensino Magazine, de Novembro, nº 177:
Para ler AQUI, pp.18/19.

Nota: Ensino Magazine é um Jornal Mensal de Distribuição Gratuita nas Escolas Básicas, Secundárias e Superiores a nível nacional, com uma tiragem de 20.000 exemplares.

17/11/2012

Lembrete aos Amigos de Lisboa


 
Amigos de Lisboa: 

Venho lembrar-vos que estarei à vossa espera,
3ª feira, 20 de Novembro, às 18.30,
na Fnac do Chiado, para vos apresentar
O Corsário dos Sete Mares e responder às vossas perguntas.
Levo uma surpresa.
Aqui têm o convite da FNAC


15/11/2012

Lembrete aos Amigos de Aveiro


Atenção, caros Amigos de Aveiro, lembrem-se do nosso encontro na Bertrand do Fórum, Domingo dia 17, às 17.30. O nosso amigo comum Celso dos Santos, presidirá àa Tertúlia e faremos ambos a apresentação de O(s) Corsário(s) dos Sete Mares.  Plural, porque, quando falamos de Fernão Mendes Pinto, ele é o pretexto para se evocar muitos outros e falarmos deles como pioneiros da globalização. Estaremos à vossa espera com uma pequena surpresa!
 
Aqui têm o cartaz da Livraria, que até é bem giro, embora não sobressaia no fundo negro do meu blogue!

Akemi Maeda e Keiko Fujiki


My dearest friends, Akemi Maeda and Keiko Fujiki, to whom I dedi8cated my "Pirate of  the Seven Seas" (O Corsário dos Sete Mares), as a token of my gratitude for the love and care they feel and show towards Portugal and our Culture and History.

親愛なる友、前田明美様と藤木桂子様へ
お二人のポルトガルの文化と歴史に対する学識と好意への
感謝のしるしとして、またあの巨大地震と津波の被害から
立ち直ろうと頑張る勇敢な日本人に敬服し、共感を覚える
私からの記念のしるしとして、この本を贈呈致します。》

As minhas queridíssimas amigas, Akemi Maeda e Keiko Fujiki, a quem dediquei O Corsário dos Sete Mares, em reconhecimento do amor que devotam a Portugal, à nossa História e Cultura.

12/11/2012

Um presente muito especial



















Um leque antigo, pintado à mão por um grande artista, para o teatro Noh. Um dos lados representa a Primavera, com ramos cobertos de flores; no verso está representado o Outono, com as folhas vermelhas dos áceres a cairem das árvores. Lindíssimo!

Oferta da minha amiga Akemi Maeda (Fundação de Artes e Música Akemi Maeda, em Osaka), pela publicação de O Corsário dos Sete Mares que lhe foi dedicado, assim como à nossa comum amiga Keiko Fujiki e ao povo do Japão pela coragem com que enfrentaram a catástrofe e o sofrimento do Tsunami. Espantou-me a imensa admiração que a Senhora Akemi Maeda e muitos outros japoneses do seu círculo de amigos e colaboradores têm pela Cultura e História Portuguesa.








Eis a Dedicatória:

Japonês/Japanese

親愛なる友、前田明美様と藤木桂子様へ
お二人のポルトガルの文化と歴史に対する学識と好意への
感謝のしるしとして、またあの巨大地震と津波の被害から
立ち直ろうと頑張る勇敢な日本人に敬服し、共感を覚える
私からの記念のしるしとして、この本を贈呈致します。》
             
Deana Barroqueiro
 
Português
Às minhas queridas amigas
Akemi Maeda e Keiko Fujiki,
em tributo ao seu conhecimento e amor
pela Cultura e História de Portugal,
e também como prova de admiração e amizade
pelo corajoso povo do Japão
 
English
«To my dear friends
Mrs. Akemi Maeda and Mrs. Keiko Fujiki,
as a tribute to their knowledge and love
for the Portuguese culture and history,
and also as a token of my admiration and sympathy
for the courageous people of Japan »

11/11/2012

Tsunami atacando Minami-Sanriku

O tsunami no Japão: o mar em fúria levando casas e pessoas na sua frente. Filmado no local, por quem teve de fugir. Para ver até ao fim, se tiverem coragem...



07/11/2012

Sarau Cultural na Murtosa


SARAU CULTURAL DE ENTREGA DOS PRÉMIOS DOS JOGOS FLORAIS DA MURTOSA

O Salão Nobre dos Paços do Município da Murtosa acolherá, no próximo dia 17 de novembro, pelas 21.30h, uma um sarau cultural de entrega dos prémios de conto, poesia e pintura dos Jogos Florais da Murtosa 2012, que tiveram como tema “Cais e Ancoradouros: onde a Ria abraça a Terra” e do prémio de fotografia da Murtosa 2012, que deco rreu sob a temática do “Turismo Sustentável”.

Para além da entrega dos prémios aos trabalhos vencedores, a noite cultural contará com a presença da conhecida escritora de ascendência Murtoseira, Deana Barroqueiro, que apresentará, entre nós, o seu mais recente livro, “O corsário dos sete mares”, uma obra que tem como figura principal Fernão Mendes Pinto.

O programa da sessão inclui também um momento musical, com a atuação de Victor Almeida e Silva, conhecido por dar voz a temas de José Afonso, que, acompanhado dos seus guitarristas, interpretará baladas e canções de Coimbra. A entrada é livre.

01/11/2012

Deana Barroqueiro - Clássico e moderno

Artigo de Miguel Real, no JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), de 31 de Outubro de 2012, na sua rubrica Os Dias da Prosa:


DEANA BARROQUEIRO
Clássico e moderno

1. Relação com os anteriores romances
Em seis anos, Deana Barroqueiro tornou-se uma perita no romance histórico. Iniciada na escrita juvenil ao longo da década de 90, operou, já este século, a passagem para a dificílima arte da escrita do romance histórico, constituindo-se hoje, com mais de 2 000 páginas publicadas e, sobretudo, com a recente edição de O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto, um dos mais singulares autores neste género literário.

Com efeito, O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto constitui um ponto de chegada e, porventura, um ponto de viragem na obra de Deana Barroqueiro. Ponto de chegada, devido ao estilo pessoal e ao rigor na investigação com que trabalha a linguagem histórica, que permanece. Ponto de viragem, devido à complexidade estrutural por que envolveu este último romance, cortando de certo modo com a “narrativa linear” (introdução da autora a O Espião de D. João II, 2009, p. 10), que estruturara os seus romances anteriores, sobretudo o referido D. Sebastião e o Vidente (2006), potencializando a “teia” labiríntica “em que se entrelaçam, alternam ou cruzam os sucessos de várias viagens [de Bartolomeu Dias], a diferentes tempos e lugares, evocados ao sabor da ocasião (…) Um puzzle cujas inúmeras peças concorrem para formar um quadro final coerente e possível…” (introdução da autora a O Navegador da Passagem, 2008). De certo modo, O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto é, quanto à forma, o desenvolvimento de O Navegador da Passagem, superiorizando (não no conteúdo, só na forma) D. Sebastião e o Vidente e O Espião de D. João II. Se, quanto ao trabalho sobre a forma estética, O Corsário dos Sete Mares é, indubitavelmente o melhor romance da autora, quanto à substância narrativa ele prolonga o rigor de investigação e o amplíssimo leque vocabular de O Espião de D. João II.

2.  O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto integra-se no habitual estilo da autora por via de uma escrita possante e enleante, animada de um luxuriante léxico de época (que as notas de rodapé esclarecem), disseminada por mil e uma pequenas histórias cujo referencial semântico cruza dois registos de escrita. Um registo colectivo e um registo existencial. O primeiro, enquadrador, obedece a uma descrição rigorosa dos acontecimentos, assente numa estrutura clássica (até à publicação do último romance), dotado de um vocabulário clássico, uma investigação séria e rigorosa, de que as bibliografias finais dos seus romances são prova evidente. Neste aspecto reside, digamos assim, o classicismo estético de Deana Barroqueiro, confirmado pela autora na introdução a O Espião de D. João II quando sublinha sofrerem as suas narrativas da “atenção que dou à contextualização e ao pormenor” (p. 11). O segundo, músculo e sangue da narrativa, ostenta um conjunto de pequenas e múltiplas histórias existenciais, ilustrando o modo de vida da época retratada, desde os códigos de cortesia da corte na Europa até à educação dos Naires na Índia e à caçada ao tigre no Malabar. Neste aspecto, cabe sublinhar a espantosa descrição da vida de Pêro da Covilhã no reino do Preste João, de certo modo retomada em O Corsário dos Sete Mares. Por via deste segundo registo de escrita, o classicismo de Deana Barroqueiro moderniza-se, relativiza-se, ostentando marcas multiculturais e intervenção directa do narrador. Com efeito, a autora não procede a juízos morais sobre as condutas das personagens, não omite o violento sangue nascido do encontro histórico entre os portugueses e os povos africanos, árabes e asiáticos no tempo dos Descobrimentos. Muito pelo contrário, ostenta-o como marca indefectível mas ultrapassada da História.

Neste sentido, os romances de Deana Barroqueiro caracterizam-se pelo cruzamento entre uma visão clássica e uma visão moderna da História. A primeira, garante a fidelidade narrativa ao real, provocando o tradicional efeito de verosimilhança; o segundo, abre os acontecimentos a uma interpretação plural, dando-nos sem recriminações a visão cultural do malaio, do chinês, do japonês, do indiano, do muçulmano. É neste enquadramento que se integram os diversíssimos episódios existenciais que perfazem a totalidade do romance: a história do Reino do Preste João, o Cerco de Diu, os mercados de escravos onde F. Mente Pinto é vendido e comprado, a descrição de Cochim, a narração da primeira portuguesa na Índia, Iria Pereira, a morte heróica de D. Lourenço de Almeida, a história dos “casados” de Goa, a busca da Ilha do Ouro, a descrição de Malaca, o destino da embaixada de Tomé Pires ao imperador chinês, os primeiros contactos com a China e com o Japão…

Assim, efeito da visão moderna da concepção de romance da autora, a estrutura romanesca de O Corsário dos Sete Mares, absolutiza o espaço em função da categoria de tempo, dissolvendo a linha cronológica numa sucessão de sete espaços que constituem os “Sete Mares” do título. Com a absolutização do espaço face ao tempo, O Corsário dos Sete Mares torna-se, assim, uma obra aberta, confluência simultânea das três dimensões do tempo. Deste modo, desde os primeiros episódios, O Corsário dos Sete Mares desenha um ambiente histórico tão fantasioso (as desmedidas e múltiplas aventuras de que Fernão Mendes Pinto se considerou protagonista) quanto realista (o modo geral narrativo), criando uma atmosfera histórica credível, confirmado pelas falas da personagem principal, que a todo o momento lamenta o contínuo balancear da sua existência entre a graça e a desgraça – o seu célebre lamento pessoal, “pobre de mim” ou “coitado de mim”. Fernão Mendes Pinto vai rememorando a sua insólita existência, construindo a rede de memória que constitui a totalidade do romance, intercalada por anotações da autora-narradora (em itálico) sobre a subversão da categoria de tempo. No todo, permanece sempre a mesma estrutura capitular: cada capítulo é introduzido “por um provérbio e um texto das época retratada” (p. 12), que introduz o leitor ao ambiente e à mentalidade do tempo.

Constata-se ter a autora dado relevo simultâneo às três grandes teses sobre Peregrinação, activando-as no texto. A tese de Rebecca Catz designa Peregrinação como a narrativa por excelência anti-Os Lusíadas, opondo o seu conteúdo realista, existencial, vivido, ao conteúdo cruzadístico da epopeia de Camões. A tese de António José Saraiva, que leu a Peregrinação como a grande narrativa pícara portuguesa – tese que Deana Barroqueira, aceitando as restantes, parece privilegiar segundo o texto da introdução. Finalmente, Maria Alzira Seixo, realçando os aspectos positivos de Peregrinação, considera ser esta obra a grande perspectiva literária popular dos Descobrimentos, em contraste com Os Lusíadas (perspectiva erudita), o primeiro grande romance português de aventura localizado num quotidiano existencial concreto, findando com o ciclo das narrativas de cavalaria de estilo mítico e fabuloso, e o primeiro grande texto mundial do encontro entre o Ocidente e o Oriente.

O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto,
Casa das Letras, 675 pp., 18,90 euros.