01/11/2012

Deana Barroqueiro - Clássico e moderno

Artigo de Miguel Real, no JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), de 31 de Outubro de 2012, na sua rubrica Os Dias da Prosa:


DEANA BARROQUEIRO
Clássico e moderno

1. Relação com os anteriores romances
Em seis anos, Deana Barroqueiro tornou-se uma perita no romance histórico. Iniciada na escrita juvenil ao longo da década de 90, operou, já este século, a passagem para a dificílima arte da escrita do romance histórico, constituindo-se hoje, com mais de 2 000 páginas publicadas e, sobretudo, com a recente edição de O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto, um dos mais singulares autores neste género literário.

Com efeito, O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto constitui um ponto de chegada e, porventura, um ponto de viragem na obra de Deana Barroqueiro. Ponto de chegada, devido ao estilo pessoal e ao rigor na investigação com que trabalha a linguagem histórica, que permanece. Ponto de viragem, devido à complexidade estrutural por que envolveu este último romance, cortando de certo modo com a “narrativa linear” (introdução da autora a O Espião de D. João II, 2009, p. 10), que estruturara os seus romances anteriores, sobretudo o referido D. Sebastião e o Vidente (2006), potencializando a “teia” labiríntica “em que se entrelaçam, alternam ou cruzam os sucessos de várias viagens [de Bartolomeu Dias], a diferentes tempos e lugares, evocados ao sabor da ocasião (…) Um puzzle cujas inúmeras peças concorrem para formar um quadro final coerente e possível…” (introdução da autora a O Navegador da Passagem, 2008). De certo modo, O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto é, quanto à forma, o desenvolvimento de O Navegador da Passagem, superiorizando (não no conteúdo, só na forma) D. Sebastião e o Vidente e O Espião de D. João II. Se, quanto ao trabalho sobre a forma estética, O Corsário dos Sete Mares é, indubitavelmente o melhor romance da autora, quanto à substância narrativa ele prolonga o rigor de investigação e o amplíssimo leque vocabular de O Espião de D. João II.

2.  O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto integra-se no habitual estilo da autora por via de uma escrita possante e enleante, animada de um luxuriante léxico de época (que as notas de rodapé esclarecem), disseminada por mil e uma pequenas histórias cujo referencial semântico cruza dois registos de escrita. Um registo colectivo e um registo existencial. O primeiro, enquadrador, obedece a uma descrição rigorosa dos acontecimentos, assente numa estrutura clássica (até à publicação do último romance), dotado de um vocabulário clássico, uma investigação séria e rigorosa, de que as bibliografias finais dos seus romances são prova evidente. Neste aspecto reside, digamos assim, o classicismo estético de Deana Barroqueiro, confirmado pela autora na introdução a O Espião de D. João II quando sublinha sofrerem as suas narrativas da “atenção que dou à contextualização e ao pormenor” (p. 11). O segundo, músculo e sangue da narrativa, ostenta um conjunto de pequenas e múltiplas histórias existenciais, ilustrando o modo de vida da época retratada, desde os códigos de cortesia da corte na Europa até à educação dos Naires na Índia e à caçada ao tigre no Malabar. Neste aspecto, cabe sublinhar a espantosa descrição da vida de Pêro da Covilhã no reino do Preste João, de certo modo retomada em O Corsário dos Sete Mares. Por via deste segundo registo de escrita, o classicismo de Deana Barroqueiro moderniza-se, relativiza-se, ostentando marcas multiculturais e intervenção directa do narrador. Com efeito, a autora não procede a juízos morais sobre as condutas das personagens, não omite o violento sangue nascido do encontro histórico entre os portugueses e os povos africanos, árabes e asiáticos no tempo dos Descobrimentos. Muito pelo contrário, ostenta-o como marca indefectível mas ultrapassada da História.

Neste sentido, os romances de Deana Barroqueiro caracterizam-se pelo cruzamento entre uma visão clássica e uma visão moderna da História. A primeira, garante a fidelidade narrativa ao real, provocando o tradicional efeito de verosimilhança; o segundo, abre os acontecimentos a uma interpretação plural, dando-nos sem recriminações a visão cultural do malaio, do chinês, do japonês, do indiano, do muçulmano. É neste enquadramento que se integram os diversíssimos episódios existenciais que perfazem a totalidade do romance: a história do Reino do Preste João, o Cerco de Diu, os mercados de escravos onde F. Mente Pinto é vendido e comprado, a descrição de Cochim, a narração da primeira portuguesa na Índia, Iria Pereira, a morte heróica de D. Lourenço de Almeida, a história dos “casados” de Goa, a busca da Ilha do Ouro, a descrição de Malaca, o destino da embaixada de Tomé Pires ao imperador chinês, os primeiros contactos com a China e com o Japão…

Assim, efeito da visão moderna da concepção de romance da autora, a estrutura romanesca de O Corsário dos Sete Mares, absolutiza o espaço em função da categoria de tempo, dissolvendo a linha cronológica numa sucessão de sete espaços que constituem os “Sete Mares” do título. Com a absolutização do espaço face ao tempo, O Corsário dos Sete Mares torna-se, assim, uma obra aberta, confluência simultânea das três dimensões do tempo. Deste modo, desde os primeiros episódios, O Corsário dos Sete Mares desenha um ambiente histórico tão fantasioso (as desmedidas e múltiplas aventuras de que Fernão Mendes Pinto se considerou protagonista) quanto realista (o modo geral narrativo), criando uma atmosfera histórica credível, confirmado pelas falas da personagem principal, que a todo o momento lamenta o contínuo balancear da sua existência entre a graça e a desgraça – o seu célebre lamento pessoal, “pobre de mim” ou “coitado de mim”. Fernão Mendes Pinto vai rememorando a sua insólita existência, construindo a rede de memória que constitui a totalidade do romance, intercalada por anotações da autora-narradora (em itálico) sobre a subversão da categoria de tempo. No todo, permanece sempre a mesma estrutura capitular: cada capítulo é introduzido “por um provérbio e um texto das época retratada” (p. 12), que introduz o leitor ao ambiente e à mentalidade do tempo.

Constata-se ter a autora dado relevo simultâneo às três grandes teses sobre Peregrinação, activando-as no texto. A tese de Rebecca Catz designa Peregrinação como a narrativa por excelência anti-Os Lusíadas, opondo o seu conteúdo realista, existencial, vivido, ao conteúdo cruzadístico da epopeia de Camões. A tese de António José Saraiva, que leu a Peregrinação como a grande narrativa pícara portuguesa – tese que Deana Barroqueira, aceitando as restantes, parece privilegiar segundo o texto da introdução. Finalmente, Maria Alzira Seixo, realçando os aspectos positivos de Peregrinação, considera ser esta obra a grande perspectiva literária popular dos Descobrimentos, em contraste com Os Lusíadas (perspectiva erudita), o primeiro grande romance português de aventura localizado num quotidiano existencial concreto, findando com o ciclo das narrativas de cavalaria de estilo mítico e fabuloso, e o primeiro grande texto mundial do encontro entre o Ocidente e o Oriente.

O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto,
Casa das Letras, 675 pp., 18,90 euros.

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