Que raio de povo é o nosso que se esquece das vítimas e aplaude e dá vivas, como se fosse um herói, a um assassino que matou duas mulheres e tentou matar também a esposa (que maltratava) e a própria filha, ferindo-as gravemente?
Que raio de povo é o nosso que dá guarida e esconde da polícia um assassino, sabendo que ele anda a monte para poder concluir o seu propósito de matar a mulher e a filha?
Que raio de povo é este que premeia o prevaricador e castiga o inocente? Que admira o vigarista, o corrupto e o mentiroso e faz troça do cidadão honesto e cumpridor?
São momentos destes que me envergonham de ser portuguesa e me levam a concluir que merecemos o desprezo com que nos tratam os que nos governam, cá dentro e lá fora.
Leiam esta crónica indignada de Fernanda Câncio e indignem-se também.
O vírus palito
por FERNANDA CÂNCIO
Ontem, 23 de Maio
Ontem, 23 de Maio
Toda a gente conhece o nome e a cara do homicida Manuel Baltazar, aliás Palito, mas os das mulheres que matou, alguém? Pois. Com vítimas sem nome nem rosto, apagadas como se nunca tivessem existido, Palito pode ser uma anedota - a do camponês que trocou as voltas aos chuis mais de um mês (até rima) - e mesmo, no dia seguinte ao da sua detenção, herói ovacionado à porta do tribunal.
Começa aliás na alcunha. "Palito" é lá nome de perigo, de horror. Dizemos "Palito" e não vemos corpos no chão, esfacelados pela caçadeira à queima-roupa, sangue, gritos, a coragem da filha que se atravessa pela mãe (ex-mulher do assassino), se calhar a pensar que o pai não disparará (disparou), a ex-sogra e a irmã dela ceifadas na mesma tentativa. E depois, claro, queremos proteger as sobreviventes, não lhes vamos pôr a cara e o nome em todas as notícias.
Mas podemos ao menos honrar as mortas. Mulheres, e velhas, ainda por cima, sim, não foi nenhuma criança violada e morta a seguir - se fosse teríamos a terra toda de forquilha à procura do Palito para o esventrar no meio na floresta em vez de o esconder e alimentar primeiro e aclamar depois -, assassinadas num país em que assassinar mulheres é à razão de uma por semana.
Mulheres como Manuela Costa, 35 anos, morta em 2009 pelo ex-marido, também a tiro de caçadeira (muito gostam eles, corajosos, de execuções à gangster), dentro de uma ambulância à porta da esquadra da GNR de Montemor-o-Velho onde foi pedir ajuda, GNR que agarrou no homicida e o meteu dentro da esquadra sem o algemar, sequer revistar (estou mesmo a vê-los, "Ó pá, desgraçaste-te", mão no ombro, solidários) matando ainda ele aí um agente (depois disso, aposto, já o mandaram ao chão e algemaram, quiçá lhe tenham dado umas lambadas, afinal matou um homem, polícia ainda por cima, caramba). Manuela Costa em cuja morte a GNR nunca fez mea culpa ou o Estado o que lhe competia, indemnizando os dois filhos pela flagrante incapacidade de lhes proteger a mãe.
Como podemos então surpreender-nos por haver palmas para Palito, ou que a polícia fracasse mais de 30 dias no seu encalço?
Vai haver eleições domingo, pois é. E são para decidir para onde deve ir a Europa e portanto a minha e a vossa vida, o meu e vosso país, e eu aqui a falar de duas mortas que mais a mais nunca vi. Mas que querem, são da minha raça, da minha tribo, do meu sangue, do meu clube (com metáforas futebolísticas percebem melhor?) - porque ser mulher, como se vê, é ser de um clube diferente, doutra divisão. E estou farta de perder.
De um país em que há gente a dizer "coitado" sobre quem matou, como se matar fosse uma espécie de fatalidade - desde que a morta seja mulher. Tão farta que da miséria de campanha que hoje termina só me apetece dizer: confere.
2 comentários:
Concordo com a crónica e compreendo o sentimento de revolta. Não concordo é com o criminalizar de um POVO inteiro pela atitude miserável de uns poucos. Não somos todos assim, não pensamos todos assim e ainda existem pessoas sensatas neste País. Por vezes deixa-mo-nos levar demasiado pelos sentimentos quando escrevemos.
Sem dúvida (e felizmente) que não somos todos assim, João Ribeiro, mas não são poucos os que assim agem, são "cada vez mais", de acordo com o que lemos e vemos.
Como é possível que uma média de 30 a 40 mulheres sejam assassinadas todos os anos, em Portugal, pelos maridos e companheiros, aceite quase como coisa natural (uma espécie de moral do "entre marido e mulher não metas a colher" ou "quanto mais me bates mais gosto de ti").
E porque será que todos os grandes corruptos, os criminosos de "colarinho branco" escapam impunes, SEMPRE, mesmo depois de julgados e condenados em tribunal? Começa por se aceitar (ou a praticar) a pequena corrupção e, depois, acaba por se achar normal ou até "brilhante" a grande corrupção.
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