08/04/2013

DEANA BARROQUEIRO, ESCRITORA DE ROMANCE HISTÓRICO


Entrevista pelo jornalista Hélder Fernando, para o jornal Hoje Macau, no âmbito do festival literário da Lusofonia, A Rota das Letras.

Páginas centrais - 10 /11 - da edição de 8 de Março, 2013
 
DEANA BARROQUEIRO, ESCRITORA DE ROMANCE HISTÓRICO

Os livros que escreve fazem-nos navegar por todos os mares lado a lado com os grandes navegadores portugueses, mas também com os marinheiros anónimos, sofrendo horrores, sentindo mil prazeres. Formada em filologia românica, foi professora, é poliglota, dinamiza blogues culturais, conferencista, vasta obra publicada no que toca a romance histórico, Deana Barroqueiro é umas das grandes figuras convidadas para a Rota das Letras-Festival Literário que agora tem início em Macau. Logo depois continuará viajando por algumas terras onde andaram, a Oriente, certos verdadeiros heróis portugueses. Uma entrevista que vai emocionar o leitor.

Pode dizer-se que mais do que uma escritora de viagens talvez nem contando as que faz, é uma investigadora que publica romances históricos fundamentalmente situados nos Descobrimentos e Renascimento portugueses?
_ Eu não escrevo sobre as minhas viagens nem sobre as minhas experiências de vida, porque não desejo fazer diários mas sim romances históricos, dando a conhecer aos leitores, vidas e acontecimentos fascinantes da nossa História e Cultura, que são das mais ricas da Europa. Só a saga dos Descobrimentos Portugueses, oferece um manancial inesgotável de personagens reais, tão extraordinárias que podem emparelhar com os mais audaciosos heróis da ficção. Comecei a explorar o tema, talvez para contrariar a visão dos que encaram os Descobrimentos Portugueses como um período vergonhoso da nossa História que se deve repudiar e esquecer. No entanto, as nações outrora nossas rivais vangloriam-se dos seus impérios passados, conquanto tenham sido muito mais violentas do que Portugal, tendo até destruído com premeditação povos e civilizações inteiras, como a Espanha na América do Sul, a Holanda nas Molucas ou os ingleses na Austrália, em pleno século XX. Os Descobrimentos fazem parte do nosso passado colectivo que deve ser assumido com objectividade, sem desculpar os crimes e abusos, mas também sem esquecer que, com esta grande empresa, Portugal se tornou cabeça da Europa, muito à frente das outras nações, pelo desenvolvimento científico, social e civilizacional que atingiu e pelo seu protagonismo numa pioneira globalização do mundo e de outros acontecimentos que trouxeram a Europa para a modernidade.

Esta sua presença na Rota das Letras em Macau dever-se-á ao facto de ser bastante conhecida pelos leitores da diáspora?
Mapa de Cantino, de 1502, roubado aos Portugueses que já tinham desenhado os contornos do Mundo moderno

 _ Não sou uma escritora muito mediática, passo meses sem sair de casa, a estudar e a escrever, publicando um livro cada dois ou três anos, porque o romance histórico sério implica um longo trabalho de investigação. Contudo, já escrevi onze romances históricos e dois livros de contos; D. Sebastião e o Vidente recebeu um prémio e realmente tenho tido bastante divulgação nos media da diáspora portuguesa. Não é, pois de estranhar que, através dos blogues e redes sociais da internet, tenha conseguido alguns leitores em Macau, despertando a curiosidade da Sra. presidente da Casa de Portugal. Quando soube que “O Corsário dos Sete Mares” narrava a vida de Fernão Mendes Pinto e de outros aventureiros portugueses na China, a Dra. Maria Amélia António convidou-me para fazer a sua apresentação na Rota das Letras.

Do multifacetado programa em termos temáticos e quanto a diferenciados autores, que expectativas sente?
_ Conheço grande parte das obras dos autores lusófonos convidados, por isso a minha curiosidade e interesse vão para os escritores de Macau, da China e da Tailândia, porque, no meu romance, procurei mostrar a ligação entre os portugueses e o Oriente, no séc. XVI, dividindo-o em sete mares, cujos capítulos começam por um texto antigo – poema, carta, documento oficial, outros – dos países que Fernão Mendes Pinto conheceu. Li muitíssimas obras clássicas destas nações, mas desconheço os autores contemporâneos, por isso vou aprender muito nestes encontros. E há também o cinema, essa arte que possibilita viajar e conhecer o mundo e até a alma de um povo através do olhar. Sinto que vai ser uma experiência muito enriquecedora.

O "Barco Negro", a nau dos Porgueses que levava para a China e o Japão produtos e maravilhas nunca antes vistas, concretizando o primeiro projecto de globalização

Durante umas semanas, dentro e fora do âmbito da Rota das Letras, vai viver um pouco deste Oriente, agora num tempo tão diferente dos séculos XVI, XVII ou XVIII que costuma contemplar nos seus estudos em grande parte reflectidos na globalidade da sua obra literária…
_ Vou fazer aquilo que sempre faço quando termino um livro: viajar pelos lugares onde as minhas personagens viveram durante as suas vidas reais, para ver quanto dessa realidade ainda permanece no séc. XXI e até que ponto se aproxima da realidade virtual das vidas ficcionadas que eu lhes criei no meu romance, a partir dos mais variados textos coevos. Em todas as minhas obras, procuro fazer com que o leitor viaje no tempo e veja esse mundo antigo através do olhar dessas personagens do séc. XV ou XVI, respire os mesmos odores e fedores, saboreie os mesmos exóticos manjares ou se mareie com o biscoito bichoso e a água salobra. Por isso, nunca vou conhecer os lugares por onde peregrinaram os meus heróis antes de terminar o livro, para não contaminar o seu mundo com o meu olhar de turista do século XXI. Na muralha da China, imaginarei Fernão Mendes Pinto e os oito companheiros, a cumprirem a pena de trabalhos forçados na sua construção, tal como o descrevi no meu romance. Seguirei o seu rasto pelos rios que o levaram de Nanquim a Pequim; evocarei Tomé Pires com a trágica odisseia da primeira embaixada de uma nação europeia à China, há 500 anos; e em Cantão recordarei Galiote Pereira, catorze anos preso na terra estranha, e sentirei emoção e respeito por estes homens, muitos deles anónimos, que redesenharam o Mundo, fazendo a sua História. Presto-lhes homenagem com os meus romances, dando voz a essa gente ignorada que não deixou o nome mas a vida pelo mundo repartida em sangue, sémen, suor e lágrimas.
Fortaleza de Macau, da qual aimda restam as muralhas originais
 
É tão aliciante o que acaba de dizer e a forma como nos diz! É nítido que concebe as suas personagens, os cenários, com base na realidade histórica. Alguns observadores da sua obra, dizem que a investigação que faz (“O Espião de D. João II”, “D. Sebastião e o Vidente”, “O Romance da Bíblia”, por exemplo), é obedecida com o produto final dos livros, ou seja o que lá está é verdade. É assim?
_ O romance histórico deve dar ao leitor algo mais do que uma simples narrativa para entretenimento, pode e deve contribuir para um melhor conhecimento da época e do espaço retratada, da geografia, dos ambientes, das gentes e costumes. Por isso se considera o histórico como o mais difícil de todos os romances, porque, para se impregnar desse “espírito de época”, é necessário muito estudo e imensa pesquisa, um sacrifício que poucos se dispõem a fazer neste tempo em que tudo é ligeiro e superficial, até a Literatura. A minha melhor recompensa está em os leitores reconhecerem e apreciarem esse trabalho meticuloso de recriação histórica, que eu julgo ser um dos aspectos mais importantes nas minhas obras.
 Barcos chineses, do tipo em que navegavam os Portugueses
 
Poderá dizer-se que esses portugueses realizaram a globalização ainda antes de existir esse conceito?
_ Os Portugueses foram, sem dúvida, os pioneiros da globalização, não por mero acaso mas com um projecto começado no tempo de D. João I, com a conquista de Ceuta e o domínio da costa Marrocos, continuado pelas navegações henriquinas até à Serra Leoa, retomado por D. João II de forma pensada e sistematizada, à luz dos conhecimentos científicos mais avançados da época, e prosseguido triunfalmente por D. Manuel I. Os Portugueses povoaram lugares desérticos, influenciaram a língua, a política, as religiões e os costumes – por vezes até a geografia – dos lugares e nações que visitaram. Contudo, não souberam gerir e manter essa grande empresa, acabando por ser espoliados dela pelas nações rapaces suas rivais, nomeadamente os Países Baixos.

Tem assinalável experiência em visitar estabelecimentos de ensino secundário e superior, como acontecerá em Macau. A generalidade dos alunos gosta mesmo de ser estimulado para a leitura, para a literatura de língua portuguesa, ou a preocupação sobre a escassez de saídas profissionais, é demasiado absorvente?
_ Há mais de uma década que o ministério da Educação tem promovido o facilitismo no ensino, com consequências catastróficas. Entre outros cortes nas disciplinas de Humanidades, os programas de Português do ensino básico e secundário foram esvaziados dos conteúdos literários, em prol de uma pretensa competência em textos não literários, todavia, muito redutores para o conhecimento da nossa língua e também dos seus escritores. Enquanto um aluno habituado a ler e interpretar textos literários não tinha dificuldade em escrever uma carta, elaborar uma lista ou o regulamento de um concurso, o inverso já não acontece, como se pode constatar pela dificuldade que a maioria dos jovens, universitários ou já com os cursos concluídos, têm em interpretar um texto ou até uma pergunta, expressar um pensamento e pior ainda escrevê-lo. Se, nas escolas, os alunos não conhecem nem aprendem a gostar das obras dos grandes escritores, dificilmente se tornarão bons leitores em adultos e ainda menos saberão escrever uma carta. Teremos cada vez mais gente capaz de manejar com perícia as novas tecnologias, mas cada vez menos culta e com uma visão estreita do mundo que a rodeia, formada pelos “saberes” pesquisados na internet, habituada ao parasitário “copy/paste”, em prejuízo de um trabalho original que implique estudo e esforço.
 
À conversa com os alunos da Escola Portuguesa de Macau
 
Lendo-a, nos seus livros e nos blogues literários que mantém, noto que não utiliza o chamado Novo Acordo Ortográfico. Trata-se de uma não concordância assumida por uma filóloga românica, como é o seu caso?
_ Não aceito este Acordo Ortográfico, feito no segredo dos gabinetes e à revelia das instituições que estudam a língua, suscitando o mais firme repúdio da maioria dos seus utentes, que sentiram este acordo como um bom serviço prestado pelos nossos governantes ao Brasil que, para cúmulo do ridículo, se recusa agora a assiná-lo! Fruto de um trabalho apressado, pouco reflectido e incompetente que, na sua ânsia de uniformizar a diversidade da língua, acabou por complicar em vez de simplificar, levando o caos às escolas e ao país. Uma língua é um organismo vivo que se modifica, desenvolve, moderniza e enriquece, de forma natural e harmoniosa, diversificando-se. Ela é a expressão da identidade de um povo. Nós somos a nossa língua, uma língua com muitos séculos de história, tão sábia, pujante e maleável, que se tornou matriz, língua-mãe da Lusofonia e das suas soberbas variantes, dispersas pelos quatro cantos do mundo. E é essa multiplicidade que a torna única no mundo, por isso não se deve permitir a uns poucos a destruição de um valioso património que é de todos.

Para além de no evento Rota das Letras, a Deana Barroqueiro integrar um painel de escritores de literatura de viagem, vem apresentar o seu mais recente trabalho literário, o já considerado empolgante “O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto”. Não querendo este jornal antecipar o tanto que dirá, pergunta: ele foi um aventureiro cheio de sorte, um grande cronista e relator de factos vividos, uma pessoa à procura de fronteiras ou um peregrino?
Casamento em Goa
_ Fernão Mendes Pinto encarna o espírito empreendedor, criativo e aventureiro do homem dos Descobrimentos, mas também do nosso tempo, com todas as qualidades e defeitos que fazem dos portugueses um povo singular, disposto a emigrar para longes terras em busca de nova vida, sujeitando-se aos caprichos da sorte, adaptando-se às mais duras condições e prosperando em qualquer lugar habitável do planeta. Por outro lado, a Peregrinação mostra-o como o grande precursor do romance moderno, cujas personagens são gente comuns, expondo, com grande realismo, os vícios e virtudes dos homens em luta constante com a adversidade e capazes de tudo para sobreviver. Personalidade das mais importantes do séc. XVI, está profundamente ligado à saga dos Portugueses no Oriente, quer como embaixador nos reinos vizinhos de Malaca, quer como mercenário ou ainda navegador experiente e descobridor de mundos ignorados na Europa. Inteligente e com uma surpreendente abertura de espírito, a sua curiosidade insaciável leva-o a procurar saber tudo sobre os povos e terras que encontra ao longo da sua peregrinação de 21 anos no Oriente, sem emitir juízos de valor depreciativos, denunciando igualmente a violência, a corrupção e os crimes dos Portugueses, mouros e gentios.

Afinal, Fernão Mendes Pinto não foi, mesmo ironicamente, um mentiroso…
_ Como costuma acontecer aos que mais contribuem para a valorização de Portugal, Fernão foi desacreditado pelos seus compatriotas, que se encarniçaram contra a “inveracidade” da sua narração, incapazes de apreciarem o valor e a singularidade da Peregrinação que, logo após a sua publicação em 1614, teve vinte edições em várias línguas, tornando-se o roteiro dos viajantes e dos corsários das nações rivais, em particular dos Holandeses. Estudos actuais, feitos por um naipe de especialistas internacionais provam que mais de 80% do conteúdo da Peregrinação é verdade. Afinal Fernão não mentiu.
 
O Templo da deusa A Ma, protectora dos pescadores e navegantes, achado pelos Portugueses ao desembarcarem na baía da península, há quase 500 anos. A Ma Gau viria a ser Macau
 
A viagem está como que no seu ADN. Filha de portugueses, nasceu na América, ou seja é filha da diáspora.
_ Aos dois anos de idade, fiz o percurso contrário ao dos nossos emigrantes, vindo com a minha mãe e irmãos, dos Estados Unidos, onde nasci, para Portugal. Por isso costumo dizer que o meu gosto pelas viagens e pelo tema dos Descobrimentos, começou aí, com esse ritual da passagem transatlântica. E logo a saudade pela ausência do pai, a família dividida, tudo isso me formatou a alma e me converteu no que sou.

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