William Ruto é o primeiro alto responsável político em exercício a ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional / TONY KARUMBA/AFP/Getty Images
Um cadáver que foi descoberto mutilado numa floresta do
Quénia a 28 de dezembro passado era mesmo o de Meshack Yebei. O nome
será familiar a quem tem acompanhado o processo do atual vice-presidente
do país, William Samoei Ruto, no Tribunal Penal Internacional (TPI), em
Haia (Holanda). Ruto enfrenta acusações por crimes contra a Humanidade,
alegadamente cometidos no período que se seguiu às eleições
presidenciais de 2007. Yebei era testemunha de defesa e estaria
envolvido em tentativas de viciar o julgamento, em especial corrompendo
testemunhas da acusação. Desapareceu em dezembro, levando a especulações
sobre a mão do governo e a pelo menos uma identificação falsa.
Já há dois meses tinha aparecido num rio um corpo, igualmente mutilado,
que a família de Yebei disse categoricamente ser o dele. Testes de ADN
revelaram, para confusão geral, que afinal era outro homem. A atenção
virou-se para então o cadáver antes descoberto, que jazia numa morgue à
espera de identificação. Desta vez os resultados foram diferentes. O ADN
corresponde ao de familiares de Yebei. Agora, os patologistas vão
tentar perceber como morreu, mas parece dado como adquirido que foi
raptado e teve um fim violento.
A família sempre garantiu que o desaparecimento estava relacionado com o processo, uma convicção que se terá fortalecido com a descoberta agora anunciada. Yebei tinha ido ao Quénia em dezembro visitar familiares quando o contacto com ele se perdeu. A sua morte violenta apenas faz adensar o mistério e junta-se a um catálogo de horrores que já vai bastante longo.
Mulheres e crianças queimadas numa igreja
A família sempre garantiu que o desaparecimento estava relacionado com o processo, uma convicção que se terá fortalecido com a descoberta agora anunciada. Yebei tinha ido ao Quénia em dezembro visitar familiares quando o contacto com ele se perdeu. A sua morte violenta apenas faz adensar o mistério e junta-se a um catálogo de horrores que já vai bastante longo.
Mulheres e crianças queimadas numa igreja
O processo judicial tem origens nas eleições presidenciais de 2007. O então Presidente Mwai Kibaki, apenas o terceiro desde que o país do leste africano se tornou independente, em 1963, conseguiu ser reeleito, mas apenas à custa de fraude maciça nas urnas. Assim confirmaram observadores, e o candidato rival Raila Odinga não admitiu outra coisa. Começaram tumultos violentos, com carácter marcadamente étnico e que se prolongariam durante dois meses. No meio de todos os crimes então cometidos, um episódio sinistro, que ficou como símbolo desse período, foi a morte de dezenas de mulheres e crianças refugiadas numa igreja em Kiambaa, à qual uma multidão pegou fogo.
A crise terminou com um acordo de partilha de poder, obtido graças à mediação de Kofi Annan, ex-secretário geral da ONU. Tinham morrido umas 1300 pessoas e mais de 600 mil foram obrigadas a fugir das suas casas. Além disso, houve incontáveis episódios de agressão sexual. Para os sobreviventes e os familiares das vítimas, começou a espera por justiça. Ao longo dos anos, as autoridades quenianas foram protelando. Até que o TPI, ao qual o Quénia tinha aderido formalmente anos antes, entrou em cena. Após uma investigação, seis pessoas foram acusadas, entre elas o então vice-primeiro ministro e actual Presidente Uhuru Kenyatta.
A ação do TPI chocou muita gente, em parte por uma certa perceção de que o tribunal apenas acusa governantes ou ex-governantes quando eles são africanos (há quem lhe chame "um brinquedo dos poderes imperiais em decadência"). O governo queniano continuou a fazer tudo o que podia para bloquear os procuradores, não respondendo a pedidos de colaboração e não disponibilizando provas que lhe eram pedidas. Por fim, o procurador acabou por abandonar a acusação contra Kenyatta por falta de evidências. Contudo, manteve Ruto como réu, acompanhado pelo radialista Joshua arap Sang, que também será julgado.
"Um plano de violência cuidadosamente preparado"
Enquanto Kenyatta era recebido de volta no seu país como um herói, Ruto manteve-se no banco dos réus. Por entre expressões de uma atitude calma e sorridente, o seu incómodo por vezes era visível. Afinal, ele é o primeiro alto responsável político em exercício a ser julgado pelo TPI. Embora o tribunal não tenha conseguido evitar que muitas testemunhas, pressionadas pelo governo, desistissem de testemunhar contra Kenyatta, nem tenha conseguido proteger Yebei (o TPI diz que lhe ofereceu residência segura num lugar diferente, entre outras medidas de proteção), não é seguro que ele evite uma condenação.
"Os crimes de que o senhor Ruto e o senhor Sang são acusados não são meros atos espontâneos e casuais de brutalidade. Isto foi um plano de violência cuidadosamente preparado e executado", disse Fatou Bensouda, o procurador-chefe do TPI. "Em termos legais, um caso num tribunal apenas pode ser resolvido por vias judiciais. Tenho dúvidas que vias não judiciais sejam eficazes", disse George Kegoro, director executivo da Secção Queniana da Comissão Internacional de Juristas.
Ruto nega as acusações. Já há anos tinha explicado que o incêndio na igreja em Kiambaa, que matou sobretudo membros da etnia Kikuyu, a do então Presidente Mwai Kibaki, foi um acidente. Diz que não tem culpa de nada. Entretanto, escândalos de outro tipo, relacionados com negócios muito lucrativos feitos à custa do interesse público, foram ficando pelo caminho.
A acumulação de vastas fortunas por gente ligada à política é um fenómeno comum no Quénia. O primeiro Presidente do país, Jomo Kenyatta, pai do atual Presidente, ter-se-á apropriado de não menos do que um sexto das terras antes pertencentes a colonos que estavam destinadas a quenianos sem terra. Num sistema que funciona assim, é inevitável que de vez em quando os conflitos eleitorais, que são muitas vezes, também ou sobretudo, conflitos sobre terra, rebentem em violência.
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