Luís Miguel Queirós 24/03/2015
Comemora-se hoje o centenário de Orpheu, cujo primeiro número terá saído da gráfica no dia 24 de Março de 1915. Como um grupo de rapazes de vinte e poucos anos, liderado por Pessoa e Sá-Carneiro, lançou o modernismo em Portugal e mudou para sempre a paisagem cultural e literária do país.
Retrato de Fernando Pessoa de Almada Negreiros, com a revista Orpheu
Enric Vives-Rubio
“Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!// Hup lá, hup lá, hup-la-hô, hup-lá!/ Hé-há! Hé-hô! Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!// Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”. Estes versos finais dum poema intitulado Ode Triunfal, assinado por um tal Álvaro de Campos, fechavam o primeiro número da revista Orpheu, que há exactamente cem anos, no dia 24 de Março de 1915, saía dos prelos para escandalizar os meios culturais portugueses.
Todos sabemos hoje que Orpheu foi o primeiro grande momento de afirmação das vanguardas modernistas em Portugal e não é exagero afirmar que as réplicas desse já longínquo terramoto de 1915 se fazem sentir até aos nossos dias. Mas quando a revista saiu, se não passou de todo despercebida, também não se pode dizer que tenha sido propriamente saudada como o decisivo marco literário e cultural que efectivamente foi. “Literatura de manicómio”, chamou-lhe A Capital no título de um dos muitos artigos de crítica mais ou menos galhofeira que assinalaram na imprensa o nascimento de Orpheu.
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, sem os quais Orpheu não teria passado de uma curiosidade cujo centenário ninguém se lembraria hoje de comemorar, teriam de esperar uma dúzia de anos até que a geração de autores reunida em torno da revista presença reconhecesse o seu génio e procurasse divulgar o contributo decisivo dessa primeira geração modernista.
Tendo sido a mais icónica revista literária portuguesa de todo o século XX, e seguramente a que exerceu uma influência mais duradoura, Orpheu foi também uma publicação efémera, com apenas dois números publicados no primeiro semestre de 1915. O terceiro, já em provas tipográficas, não saiu por falta de financiamento – tornou-se inviável continuar a recorrer ao mecenato bastante involuntário do pai de Mário de Sá-Carneiro –, e só veio a ser publicado em meados dos anos 80, num fac-símile da prova tipográfica, com a chancela da Nova Renascença, e numa edição organizada por Arnaldo Saraiva para a Ática.
Segundo informa José Barreto num artigo publicado no recém-lançado volume colectivo 1915 – O Ano de Orpheu, organizado por Steffen Dix e editado pela Tinta da China, a primeira das várias notícias que assinalaram o lançamento do número inaugural de Orpheu terá saído no dia 27 de Março, no jornal O Mundo. Até ao final da tarde do dia anterior, diz ainda Barreto, tinham-se vendido apenas 17 exemplares. Apesar deste arranque pouco auspicioso, duas ou três semanas depois a edição estava praticamente esgotada. Tudo indica, pois, que a insistência dos jornais em sugerir que os autores de Orpheu não destoariam entre os loucos internados no manicómio de Rilhafoles terá dado uma ajuda preciosa às vendas, confirmando a cínica máxima de que publicidade negativa é uma contradição nos termos.
Doidos com pedigree
O escândalo provocado por Orpheu não surpreende. Basta dar uma vista de olhos pela poesia que se publicava ao tempo em Portugal para se perceber que, pese embora a qualidade de poetas como Teixeira de Pascoaes ou Afonso Duarte, para citar apenas dois, os meios literários da época, submersos no saudosismo ou no lusitanismo, não estavam preparados para algo tão cataclísmico como a Ode Triunfal.
Nem sequer os poucos livros já então publicados por alguns dos colaboradores de Orpheu, como Distância (1914), de Alfredo Guisado, Luz Gloriosa (1913), do co-director brasileiro do primeiro número, Ronald de Carvalho, ou, no limite, mesmo Dispersão (1914), de Mário de Sá-Carneiro, prenunciavam o frenesi vanguardista de Álvaro de Campos: “(…) Ó tramways, funiculares, metropolitanos,/ Roçai-vos por mim até ao espasmo!/ Hilla! hilla! hilla-hô!/ Dai-me gargalhadas em plena cara,/ Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)”.
No já referido artigo d’A Capital, lia-se: “O que se conclui da leitura dos chamados poemas subscritos por Mário de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Álvaro de Campos e outros é que eles pertencem a uma categoria de indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro dos manicómios, mas que podem sem maior perigo andar fora deles”. Talvez o jornalista estivesse a ser um pouco injusto ao irmanar os três autores no mesmo insulto, já que em matéria de sinais exteriores de vanguardismo (mas em Pessoa e Sá-Carneiro o próprio vanguardismo foi sempre sinal exterior de rupturas de outra ordem, mais fundas e irremediáveis), nada neste primeiro número de Orpheu é rigorosamente comparável à Ode Triunfal. Nem mesmo alguns versos mais alucinados de Sá-Carneiro, como os que fecham o notável poema 16: “As mesas do Café endoideceram feitas ar.../ Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai ele a valsar/ Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...// (Subo por mim acima como por uma escada de corda,/ E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado...)”.
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