10/04/2020

A HIPOCRISIA DOS HOLANDESES - «OS LADRÕES DO MAR» - 2

Do meu romance «1640», retirei este excerto em que relato o modo como actuavam os neerlandeses/holandeses, para «criarem riqueza» e construírem os Países Baixos: 



«Mal encomendara a minha alma a Deus, quando o milagre aconteceu, anunciado por brados de alarme no navio dos corsários e toque de retirada. Os assaltantes embainharam as armas e fugiram pela xareta como bugios, abandonando no nosso convés os companheiros feridos. Ainda não havíamos recobrado do espanto, já eles tinham cortado os cabos que os prendiam ao patacho e, de velas desfraldadas, voavam rumo ao Oriente.
A causa da nossa salvação era uma poderosa nau neerlandesa que surgia a barlavento e navegava a todo o pano. Apercebendo-se do nosso estado lastimoso, permitiu a fuga aos homens do Crescente para vir em nosso socorro, dando-nos uma salva de aviso e lançando ao mar esquifes com muitos remadores.
– São gente do estado rebelde da Holanda. Luteranos!
Seis províncias neerlandesas – Holanda, Zelândia, Utreque, Frísia, Groeninghen e Guélria – haviam-se rebelado contra o jugo filipino e declarado independência, tendo feito guerra à Espanha até assinarem a Trégua dos Doze Anos, em 1609.
– Nunca pensei que havia de me alegrar com a vista de hereges – disse o capitão, preparando-se para receber os batéis dos nossos salvadores que não tardaram a acostar-nos.
Ao subirem para o convés, foram saudados com grandes brados de júbilo por quantos ainda se tinham de pé, contudo a nossa alegria foi sol de pouca duração, vendo como os holandeses traziam armas de grande poder de fogo, em vez das ferramentas para o concerto do barco, cercando-nos com um movimento rápido e ameaçador. Os oficiais saudaram o nosso capitão e o renegado espanhol, que lhes servia de língua, trasladou a fala do seu comandante:
– O capitão lamenta os vossos mortos às mãos dos infiéis, porém, sois agora seus prisioneiros e, como tais, deveis entregar-lhe prestes o livro da carregação, o regimento e os demais documentos do navio, assim como a sua carga, com toda a pedraria, ouro e prata que levais arrecadados. Isto se quereis conservar a vossa vida e liberdade.
Um punhado de homens feridos e exaustos, mantidos sob a mira dos mosquetes e arcabuzes, nada podia fazer contra uma horda de hereges bem treinados nas lides do corso, que nos desarmaram num instante.
– Porque vindes, com capa de amizade, atacar-nos traiçoeiramente, estando nós assim desapercebidos e sem defesa? Há doze anos que a vossa nação tem tréguas com a Espanha... – a voz do capitão sevilhano tremia de indignação por se ter fiado na ajuda de corsários da República da Holanda, que eram conhecidos dos marinheiros das outras nações como os “mendigos do mar”, por enriquecerem à custa da pirataria, da fraude e da pilhagem dos navios.
– A “bendita” trégua acabou há dias – informou o renegado, em tom escarninho, perguntando em seguida: – Ninguém vos avisou de que estávamos de novo em guerra?
Mostraram, no entanto, alguma piedade para connosco – ou, talvez temessem represálias, se fossem capturados, pois estávamos muito perto da costa portuguesa –, permitindo-nos cuidar dos feridos e dar fundo aos mortos segundo os ritos da nossa Fé.
O capitão pediu ainda ao comandante corsário que, por sua honra, acautelasse as mulheres que iam a bordo de toda a ofensa e desacato que os seus homens lhes poderiam fazer na cobiça do saque, no que ele acedeu em parte, mandando encerrar numa câmara da popa, com guardas à porta, três donas de qualidade que viajavam com as filhas.
As escravas e algumas mulheres de baixa condição foram deixadas à mercê da chusma herética, apesar das suas súplicas e lágrimas que nos cortavam o coração e, durante muito tempo, acabrunhados de vergonha por não lhes podermos valer, ouvimos os gritos de desespero das infelizes e os risos e doestos dos seus algozes.
Os neerlandeses eram piratas formigueiros, da casta dos que roubam tudo às vítimas, até as roupas que trazem nos corpos, e os seus batéis andaram durante horas num vaivém constante a transportar o rico saque do patacho para a nau. Quando já não tinham mais que carrear, arrastaram-nos de novo para o convés, como reses de abate, onde esperávamos a todo o momento ser passados à espada ou lançados borda fora, amarrados de pés e mãos, um costume muito referido pelos raros sobreviventes dos ataques destes hereges.
– Dai-vos por afortunados – disse-nos o renegado, sempre escarninho e como se nos lesse o pensamento – por o capitão ter boas entranhas, pois em vez de vos lançar ao mar ou de vos deixar arder junto com o patacho, vai dar-vos um batel para chegardes à praia. Ora largai as jóias e pedraria que tendes escondidas nos corpos, como pagamento do transporte.
Quatro rascões de má catadura agarraram-nos e, à força de pancadas e repelões quando lhes resistimos, arrancaram-nos as botas e as roupas, deixando-nos tão nus como quando Deus nos trouxe ao mundo, e fizeram uma busca cuidadosa ao vestuário, arrecadando tudo o que acharam de valor. Sem se darem por satisfeitos, encheram copos de vinho que nos forçaram a beber, para se certificarem de que não tínhamos escondido na boca alguma pedra preciosa ou anel, porém, o pior ainda estava para vir.
– Agora o corpo – ordenou o língua e preveniu com uma risada: – É melhor não resistir se quereis viver.
Gozando com a nossa humilhação e vergonha, os bragantes manietaram-nos, forçando-nos a expor os corpos por onde metiam os dedos com a brutalidade das feras, zombando com chalaças de que não entendíamos as palavras, mas cujos arremedos não nos deixavam dúvidas quanto ao que diziam.
Lançaram-nos de mãos amarradas num batel, apenas com as calças vestidas e trouxeram as mulheres, primeiro as donas nobres com as filhas, só com os vestidos que tinham no corpo, depois as que lhes tinham servido de divertimento e cuja vista fez recrudescer a arruaça dos verdugos e nos trouxe lágrimas de piedade aos olhos pelo estado miserando a que as tinham reduzido.
Vinham rotas e ensanguentadas, umas de olhos mortiços, outras de rostos intumescidos das pancadas, por terem oferecido resistência, outras ainda soluçando e gemendo sem cessar. Foram atiradas para o batel como fardos, que alguns de nós, já libertos das cordas, recebemos nos braços, passando-as com todo o cuidado às corajosas donas que connosco estavam e as recebiam com palavras de conforto. Os corsários levaram o nosso piloto para melhor fazerem a navegação daquela costa, depois de atearem o fogo ao patacho.
À medida que nos afastávamos, com os olhos postos nas chamas que consumiam o nosso barco, suplicávamos em altos brados a Deus para que o esquife onde íamos, assim tão desconcertado e carregado de infelizes, não fosse ao fundo antes de atingir as costas de Setúbal.
Nessa hora de aflição ninguém se deu conta de como as duas formosas moças que, depois de libertadas pelos seus algozes, ainda não haviam dito uma palavra nem vertido uma lágrima, se tinham lançado silenciosamente do batel para desaparecerem no mar da sua vergonha.»

(Deana Barroqueiro - «1640»)
Nota: A capa do livro é uma parte de um quadro que comemora a vitória dos portugueses sobre os holandeses que tentaram ocupar o Brasil.




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