15/11/2013

Don DeLillo. O contador da história americana


Por Maria João Lourenço
 
A pretexto do filme de Zapruder, o escritor foi ao Nimas ler excertos de "Submundo" e falar de "Libra". Integra o júri da competição de curtas do Lisbon & Estoril Film Festival

"Tudo o que queria quando comecei a escrever era contar algo sobre o meu bairro e sobre as pessoas que conhecia." A frase de Don DeLillo, sintética e sentimental, diz bastante sobre o escritor. O bairro é o Bronx, onde nasceu há 76 anos (à beira de 77), filho de pais italianos. Nos seus romances (em número de 15, a caminho de 16), nas suas cinco peças de teatro, no recente livro de contos "O Anjo Esmeralda", o Bronx vive em toda a vitalidade das personagens e dos cenários. Mas o bairro de DeLillo é, numa leitura mais profunda, a América inteira e o mundo em que vivemos.
"Submundo", premiado com o American Book Award em 1987, surge como o grande romance americano que conta a história de um país dividido, habitado por todas as raças e povoado de contradições. O escritor põe na boca das suas personagens as hesitações e os medos comuns, a angústia do cidadão moderno diante da alta tecnologia, a ditadura dos "ismos". Frank Sinatra, J. Edgar Hoover, Lenny Bruce, entre outros, partilham o enredo com jogadores de basebol e peões da história. As pequenas figuras agigantam-se, pedem meças aos heróis: não calam a sua voz, falam a nossa linguagem e, como tal, exprimem muitas vezes sentimentos contraditórios. DeLillo escreve com os pés na terra ("o acto de escrever requer concentração intensa", explica) e para além das fronteiras do pensamento.
No cinema Nimas, o público abre alas e deixa passar Coetzee. Não é todos os dias que temos um Nobel da Literatura entre nós, oiço dizer a um crítico. Seguem-se Paul Auster e Siri Hustvedt, marido e mulher, escritores nossos conhecidos. Discreto, Don DeLillo vem atrás e entra sozinho na sala de cinema, quase igual à imagem que tenho dele. Uma diferença evidente? Usa óculos de aros redondos. Cabelo praticamente todo branco, porte elegante e enxuto, postura recatada. Quase jurava que a camisa azul-celeste é a mesma das fotografias. Não vai ser possível confirmar. Não há fotografias para ninguém, avisa o produtor Paulo Branco.
Nada de imagens, portanto. Antes de começar a ler, diante do púlpito, fala de improviso sobre o filme "Frame by Frame", de Abraham Zapruder, o alfaiate que captou com a sua câmara o momento em que Kennedy foi assassinado. Tem voz rouca, com inflexões suaves. "Os mais importantes 26 segundos de filme na história dos Estados Unidos." O filme é curto, os fotogramas são repetidos à exaustão. "Esticámos ao máximo o material que havia", refere DeLillo. No total, 486 fotogramas que se prolongam por mais de oito minutos. A montagem privilegia, entre outras, a repetição do fotograma 313, quando John F. Kennedy é atingido na cabeça pela frente, e que "mostra pedaços do cérebro e sangue".
O cansaço começa a traduzir-se na voz. O escritor aclara a garganta. Aquele velho rebuçado para a tosse no bolso podia ajudar, penso. A leitura chega ao fim, as imagens continuam a ser projectadas, no canto do ecrã recorta-se a sombra de DeLillo. Toca com o dedo na cana do nariz, uma vez. Kennedy tombou ene vezes. Às tantas, sinto a minha cabeça cair para trás, imitando sem querer o movimento feito pelo presidente dos Estados Unidos sob o impacto da última bala (deixemos as teorias para os estudiosos). DeLillo aproveita o silêncio e percorre a plateia com o olhar, atentamente.
"Foi um grande momento", dirá Paulo Branco no final. A sessão não acabou com o filme. Ao produtor juntou-se Paulo Faria, excelente tradutor das obras mais recentes. A conversa parte de "Submundo" e acaba" em "Libra", poderoso exercício de ficção sobre os acontecimentos que antecederam a morte de Kennedy, focado em Lee Harvey Oswald (LHO). "A dor e o luto, o mal-estar, os protestos..." marcaram os tempos que se seguiram. A paranóia, como não podia deixar de ser, é uma palavra-chave na escrita de DeLillo: "A paranóia alastrou a todo o país."
"Não fazia ideia de que ele vivia tão perto de mim", confessou DeLillo. Um dia deu-se conta de que tinham vivido separados por cinco ou seis quarteirões. "Eu via e ouvia as mesmas coisas que ele via e ouvia." Se calhar frequentaram o mesmo jardim zoológico, uma vez que gostavam ambos de passear por lá, efabula o escritor. Paulo Faria pergunta-lhe se teve alguma epifania. DeLillo rejeita a ideia. "Nos três anos que demorei a escrever o livro conservei uma fotografia do LHO sobre a secretária. Depois, em Agosto ou Setembro de 1987, a fotografia caiu." Toda a gente ri. "É uma história verdadeira", afirma.
O escritor olha para a sala, procura os olhares de quem foi até ali, mais do que ver um filme histórico, ouvir de viva voz um dos grandes escritores do nosso tempo. O grande autor americano, para muitos. Vê-se que está cansado, oiço dizer mesmo ao meu lado.
"Uma coisa sei", diz DeLillo, "estamos a chegar ao fim". No meu bairro, duas chinesas de meia-idade desafiam as primeiras horas da manhã e jogam badminton. Uma delas (a mais velha?) nunca tira a mão da cintura. Se Don DeLillo morasse ao pé de mim já estariam dentro de um romance dele, transformadas em personagens de ficção, aposto.

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