12/11/2013

O pai de 130 cães de rua

Christopher Barden não tem filhos mas tem a guarda de mais de uma centena de cães. O norte-americano é responsável por um abrigo e uma loja de adopção de animais nos subúrbios de Pequim, que vive de doações e do trabalho de voluntários. Há três dias recebeu a notícia de que os novos planos de desenvolvimento do bairro prevêem a demolição do espaço. Faltam leis na China para a protecção dos animais e de apoio a todos aqueles que os querem ajudar, defende Barden.
Catarina Domingues, em Pequim

“Este é o Louie, tem um ano e foi encontrado ferido à beira da estrada”, diz Christopher Barden. Louie, de pelo curto e tigrado, levanta-se, e ladra, e atira as patas da frente para as grades verdes e metálicas. É mais longo que alto, e ladra sempre que Barden aqui chega, e chora sempre que o dono não está. “Está a ver aquele castanho e pequeno a olhar para nós? Chama-se Erhuang, a tradução do chinês pode ser “o segundo amarelo”, quando chegou aqui tinha a perna esquerda partida. O bairro onde Erhuang vivia foi demolido para dar espaço a uma nova área de desenvolvimento”, explica Barden, e quando terminaram a construção, começaram a abater os cães. Foi a “Auntie Bo”, que lhes dava de comer há mais de três anos, que nos ligou.

Barden utiliza sempre a primeira pessoa do plural para falar do abrigo e da loja de adopção de animais que abriu há cerca de três anos, no distrito de Shunyi, nos subúrbios de Pequim. Mas este é um projecto de um só homem, que começou por ajudar uma dezena de animais de rua e acabou com 17 gatos em casa, trinta cães na loja de adopção e cem neste abrigo.

Dois cães, um é claro o outro escuro, disputam Barden, e querem a mão de Barden, e batalham a atenção do dono, e logo vem o “Uncle Gao”, funcionário do abrigo, para pôr ordem no pátio. Aquele mais escuro tem ciúmes e às vezes ficamos preocupados porque pode ser agressivo, diz Barden.
Atrás do pátio, outro pátio, “isn´t it awesome”?, este ano já demos para adopção 44 cães, o que para os padrões ocidentais pode não ser nada, mas para a China é muito. O Inverno vem aí, e há cada vez mais pessoas a adoptar. Este ano só morreram dois cães.

De uma pequena loja para um abrigo

Barden chegou à China em 1997 para trabalhar como jornalista e editor de uma revista em língua inglesa. “Mas há cinco anos comecei a apoiar pequenas acções de resgate de animais”, diz o norte-americano, que abriu a “Lingyang xiaopu” (Pequena Loja de Adopção) para fazer a comunicação entre abrigos de animais e equipas de resgate. “Acabei por escrever sobre este projecto no Weibo, uma rede social chinesa, e comecei a receber chamadas para dar apoio a resgates a animais em dificuldades”.

Quando tudo começou, Christopher tinha apenas trinta cães na Pequena Loja de Adopção. Mas em Abril de 2010, viu-se envolvido numa mega-operação de resgate. Cerca de 500 cães seguiam num camião, que tinha partido da província de Henan em direcção à província de Jilin, para serem abatidos e vendidos para consumo. No momento em que atravessava uma das auto-estradas da capital chinesa, o veículo foi travado por um activista dos direitos dos animais. “Ao princípio seguimos o caso no Weibo, mas depois também fomos para o meio da estrada e exigimos a libertação dos animais. Muitos dos cães que está a ver aqui neste abrigo estavam naquele camião”, explica.

Como o transporte, a venda e o consumo destes animais não violava a lei chinesa, activistas e organizações de caridade chegaram a um acordo e compraram os animais, relembra Barden, que ficou responsável por 89 dos cães transportados. “Uma amiga tinha inaugurado um hospital veterinário e o espaço estava vazio, perguntei-lhe, que achas?, queres levar os animais?, foi uma decisão que tomei em dez minutos, e que fez com que me desviasse do meu caminho, que perdesse a noção do meu objectivo, que inicialmente era ajudar outros abrigos e não tornar-me dono de um”. Vinte dos cães resgatados morreram com doenças infecciosas graves.
Falta de lei dificulta protecção

Num caso mais recente, activistas pagaram 100 mil renminbis para resgatar cerca de 400 cães de um festival em Yulin, na província de Guangxi. O Festival de Carne de Cão realiza-se todos os anos no solstício de Verão, e só na edição de 2013 foram abatidos mais de dez mil animais. De acordo com uma sondagem online do jornal de língua inglesa Global Times, o consumo de carne de cão ainda divide a população chinesa, com 49 por cento dos inquiridos a defender a permanência desta tradição.
“Diria que apenas 0,1 por cento da população consome este tipo de carne, mas é o suficiente para que muitos cães caiam nas teias do comércio de carne”, explica Christopher Barden, que acredita que é urgente uma lei para pôr termo a este tipo de comportamento. “Não há legislação que proíba o consumo de carne de cão ou que regulamente a venda dos animais e isso torna muito difícil o nosso trabalho de resgate”, diz o responsável. Christopher chama ainda a atenção para as condições precárias dos mercados que vendem cães. “As condições são horríveis, diria que 90 por cento dos animais não são vacinados e são vendidos com doenças”, realça.

Na China, todos têm o direito de comprar, vender, consumir ou abater estes animais, sublinha Mary Peng, fundadora do Centro Internacional para os Serviços Veterinários. “Ainda não foi feita uma distinção clara daquilo que é um animal de estimação, gado ou animal para consumo”, diz a especialista, acrescentando que a lei é apenas clara quando se trata de espécies animais protegidas.

A China e o cão

Antes da era maoista, os cães faziam parte da vida de Pequim e de outras cidades chinesas. Com a Revolução Cultural, os níveis de pobreza extrema deixaram de permitir à população o luxo de um animal de estimação. Os animais serviam apenas para apoiar a agricultura e contribuir para a produtividade, e os cães eram vistos como uma marca do imperialismo estrangeiro, tinham perdido o estatuto de fieis companheiros e eram utilizados apenas como guardadores de fábricas ou celeiros.

Também os surtos de raiva contribuíram para a exclusão destes animais. De acordo com o Centro Internacional para os Serviços Veterinários, morrem anualmente na China entre 2500 e 3000 pessoas com raiva. Mais de 95 por cento das infecções mortais são transmitidas por cães.
Para prevenir novos surtos de raiva, nos anos 80 do século passado, entrou em vigor em Pequim uma nova lei de propriedade canina, que proibia a guarda destes animais nas casas chinesas. A lei sofreu alterações no início da década seguinte e hoje em dia são permitidos cães até aos 35 centímetros de altura nos oito distritos centrais da capital. “Nesses anos 1990, o primeiro registo de um cão custava cinco mil renminbis e a renovação deste registo chegava aos dois mil renminbis. Era quase o salário anual de um agregado familiar”, explica Mary Peng, realçando que o preço do registo pretendia ter um efeito desencorajador sobre as pessoas.

Os cães de grande porte ainda são vistos como animais agressivos e estão associados a esses antigos guardadores de propriedades, que bloqueavam as entradas e assustavam as pessoas, diz Peng. A lei ainda é contestada por activistas, especialistas e amantes de animais, que defendem que o tamanho do cão não deveria estar directamente relacionado com a perigosidade do animal.

Amados e abandonados

“Yaya é a ‘prima donna’, não gosta das outras senhoras e quando a levo a passear tem de ser com outros machos”, diz a sueca Lena Walther, uma das voluntárias na Pequena Loja de Adopção de Christopher Barden. Na China, a melhoria da situação económica das famílias fez com que iniciassem um processo de adopção sem precedentes, explica Walther, que em 2005 não se lembra de ver muitos cães nas ruas pequinenses.

Mas, além de um maior poder de compra das famílias chinesas, houve um outro fenómeno social que influenciou a relação dos chineses com os animais de quatro patas: a política do filho único e o consequente aumento da população envelhecida. “Os mais idosos e as famílias com apenas um filho são os principais núcleos de adopção porque procuram companhia”, explica Wang Hui Wu, veterinário na clínica Ai Le no bairro de Shijingshan, em Pequim.

O espaço, que também acolhe animais para adopção, tem incorporada uma pequena loja onde se encontra de tudo e em tamanho pequeno, casaquinhos, calcinhas, sapatinhos, e outros acessórios para gatos e para cães. E é assim bairro sim, e bairro sim, em Pequim multiplicam-se os locais VIP para caninos, desde cabeleireiros, clínicas dentárias, até piscinas, cinemas e bares que permitem a entrada destes animais. Pelas ruas da cidade, passeiam-se animais com roupas de marca, cristas laranja, verde florescente e laços da Hello Kitty. “Em apenas uma geração, os animais deixaram de estar acorrentados num quintal para se tornaram membros de uma família e andarem dentro de casa e até na cama”, explica Mary Peng, que se lembra de começar por ver nas ruas da capital pastores alemães, depois golden retriever, mais tarde dálmatas, e bulldogues e agora caniches.

Como se explica então um cada vez maior abandono de animais na capital chinesa? “O que aconteceu é que os chineses não tinham experiência com animais e quando começaram a comprar ou adoptar não estavam informados sobre as características e os traços de personalidade de certas raças”, explica Peng. Cães de grande porte, realça a especialista, são animais que precisam de uma alimentação especial, de espaço, de fazer exercício e de sair à rua várias vezes por dia. Além disso, em Junho deste ano, o Gabinete de Segurança Pública reforçou a supervisão do registo canino. Peng acredita que houve famílias que entenderam que não tinham condições para tomar conta dos animais e outras que, não querendo mudar para a periferia, procuravam um novo dono para os cães de grande porte ou abandonavam-nos.
 
Começar de novo

O telefone de Christopher Barden não pára. “Às vezes já não quero atender, os pedidos de ajuda são tantos e eu não tenho coragem de rejeitar nenhum”. O norte-americano conta com três funcionários a tempo inteiro, uma série de voluntários e uma dívida de 200 mil renminbis para pagar rendas, alimentação e contas de veterinário. Acabamos sempre por pagar, mas atrasamo-nos vários meses.

Há três dias, Barden recebeu a notícia de que esta área do distrito de Shunyi vai ser demolida. Acabei de pôr os azulejos nas paredes e já vou ter de sair, diz o responsável, enquanto fotografa o local. Fala com a “Auntie Zhou”, e depois fala com o “Uncle Gao”, e depois com o Louie e os outros. O portão principal está pela primeira vez fechado, a trezentos metros está uma sucata, a quatrocentos uma estação da polícia. Agora fechamos sempre o portão para não termos surpresas, não sei quando vão deitar isto abaixo, se daqui a um mês, dois ou meio ano.

Mary Peng não ficou admirada com a notícia. Na realidade, uma grande propriedade como esta é o ideal para o desenvolvimento e é algo que tenho vindo a assistir em todos os bairros da capital há trinta anos, realça a fundadora do Centro Internacional para os Serviços Veterinários. Como os abrigos de animais em Pequim não estão registados, não têm quaisquer direitos, não podem angariar fundos e vivem da bondade das pessoas, realça a especialista.

Mas Chistopher Barden já começou a pensar num espaço novo e maior. Talvez um abrigo para 150 cães, onde possamos apostar na educação e oficinas de trabalho com veterinários. O pai dos cães sem abrigo está a pentear o pequeno Tian, quando o telefone toca, e volta a tocar, e é mais um pedido de socorro.

Ponto Final - Novembro 11, 2013

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