por GUILHERME VALENTE**, 17 Janeiro 2014
Os portugueses
com mais habilitações e mais rendimentos são os que dão menos
importância à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos. Esta
é apenas uma das conclusões do estudo da Universidade Católica e do
Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano" (notícia no Público
de 15/01/14). E, diz ainda o estudo, também menos felizes.
Foi,
como se sabe, o que, infelizmente, previmos, que andámos a dizer há
mais de vinte anos. Está escrito nos inúmeros artigos que publiquei,
registado no meu livro com um título, Os Anos Devastadores do Eduquês*,
expressivamente convergente com os resultados do estudo agora divulgado.
Quanto mais tempo na escola que temos tido, pior.
As
consequências destes anos de domínio da ideologia e das práticas
educativas que tenho designado com a palavra "eduquês" eram já bem
visíveis para quem pudesse olhar com espírito livre. Desde logo, em
várias manifestações na escola, e, depois, na sociedade, da política à
economia, manifestações que cada vez são mais impressionantes.
A
solidariedade, o seu sentimento e necessidade, a felicidade,
seguramente, só podem assentar nos grandes valores e nas manifestações
mais elevadas da cultura, do conhecimento, da religião, do altruísmo,
da generosidade humanos. Valores, conhecimento e cultura que, pelo
contrário, foram desvalorizados, durante todos estes anos, por esta
escola, dita moderna, mas pós-moderna, das "ciências" da educação.
Escola
dos "chavões" da "aula como continuação do recreio", do "aprender a
aprender", do "aprender sem esforço", das avaliações a fingir, cujos
resultados, mesmo assim, esconderam ao País enquanto os deixámos; do
"ensino centrado no aluno", que, como demonstrámos, não queria dizer
"ao serviço do aluno", como devia querer ser, mas sim "o ensino definido
pelo aluno", imagine-se. Escola marcada (até David Justino e José
Sócrates, registe-se) pela estigmatização do ensino técnico, escola da
grande mentira da "inclusão" - como pode ser isso apregoado, quando se
foi vendo logo que as crianças mais desfavorecidas fugiam cada vez
mais dela?
Aqueles que, durante todos estes anos, ignorando a
prova da realidade, teorizaram e impuseram o ensino que temos tido - um
ensino que expulsou ou foi desvalorizando a memória, a história, a
grande literatura e com ela o ensino da língua e a expressão do
pensamento, a filosofia, o conhecimento que conta; um ensino sem
exames, sem exigência, sem emulação, sem a valorização do mérito, sem
regras; um ensino permissivo, com os jovens abandonados ao "instinto
reptiliano", e mesmo, nalgumas situações, encorajados a manifestá--lo -
um ensino que, diziam, e continuam a dizer, tornaria os portugueses
mais tolerantes, solidários, participativos e cooperantes, criativos e
empreendedores, mentiram ou falharam. Aconteceu o contrário. Não
tornou os portugueses mais informados, nem mais cultos, como
imediatamente se podia ter percebido, mas também não os tornou mais
generosos e solidários. O verdadeiro, interiorizado, reflectido
conhecimento é gerador de solidariedade, a ignorância é sua inimiga.
E
quanto mais anos neste ensino, pior. Mais instruídos? Mais solidários e
empenhados no bem social? Não. Apenas com mais anos na escola errada.
Como este estudo da Universidade Católica parece ter já podido
verificar. Essa ideologia e essa prática "educativa" roubaram as
crianças, deixaram que perdessem os valores tradicionais que
transportavam, e que fossem substituídos por uma espécie de lei da
selva, que chegou até, de algum modo, a ser valorizada. Violência que
tem a expressão mais imediata e visível nas agressões aos professores
e entre os alunos, e o seu espaço natural na anomia antieducativa dos
hiperestabelecimentos escolares. Violência que cresceu sempre, em
número e em grau.
E mesmo que se actuasse já no ensino, num
grande movimento nacional que tudo, infelizmente, indica parecer
impossível - e ainda que resultados dessa boa mudança logo se
manifestassem no ambiente das escolas e no aproveitamento dos alunos,
como tenho dito -, a alteração do perfil médio dominante dos
portugueses que o tal estudo da Universidade Católica revela, só no
longo prazo, como se compreende, se verificaria. E Portugal, entretanto,
como se tem visto, irá pagando a factura.
Há de resto muitos
outros indicadores desta realidade. Por exemplo, no domínio,
determinante, da leitura. A escritora Alice Vieira referiu que há dez
anos ia às escolas apresentar e discutir os seus livros com miúdos de 12
anos. Hoje vai à escola apresentar e discutir os mesmos livros... com
jovens do 12.º ano!
E é urgente divulgar e pensar uma situação
terrível que terá consequências dramáticas para o País: os grandes
livros que veiculam o conhecimento universal estão já a deixar de ser
publicados em português. Por falta de leitores. De um número mínimo de
leitores que viabilize os custos da sua edição.
O que o
estudo da Universidade Católica - que é também, curiosamente, uma tese
de doutoramento em "ciências" da educação - parece provar é, pois,
infelizmente, o que eu sempre disse, e que não era, aliás, difícil de
prever.
"Tudo é igual a tudo" é, afinal, a expressão pós-moderna
que melhor traduz a ideologia e a pedagogia que também à nossa escola
foram impostas durante todos estes anos de devastação. O resultado aí
está, documentado agora por um estudo que parece ser insuspeito e
merecer, por esta primeira notícia, credibilidade. Mas não era preciso
estudo nenhum para o provar, bastaria pensar e, depois, olhar.
Claro
que certamente há gente boa e muito boa, como sempre houve e haverá.
Tendo havido também bons professores que conseguiram resistir, como
sempre aconteceu no passado, há também bons alunos que sobreviveram ao
sistema. Instruídos e bem formados... fora dessa escola. Como pode
falar-se nas "gerações mais qualificadas que Portugal teve"...
Mas mudar está ao nosso alcance, depende apenas da nossa vontade. O que é preciso primeiro é ver e assumir a verdade.
*Os Anos Devastadores do Eduquês, Lisboa, Presença, 2012
** Editor da Gradiva
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