24/01/2014

Os anos devastadores do eduquês - outra prova

por GUILHERME VALENTE**, 17 Janeiro 2014

Os portugueses com mais habilitações e mais rendimentos são os que dão menos importância à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos. Esta é apenas uma das conclusões do estudo da Universidade Católica e do Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano" (notícia no Público de 15/01/14). E, diz ainda o estudo, também menos felizes.
Foi, como se sabe, o que, infelizmente, previmos, que andámos a dizer há mais de vinte anos. Está escrito nos inúmeros artigos que publiquei, registado no meu livro com um título, Os Anos Devastadores do Eduquês*, expressivamente convergente com os resultados do estudo agora divulgado. Quanto mais tempo na escola que temos tido, pior.

As consequências destes anos de domínio da ideologia e das práticas educativas que tenho designado com a palavra "eduquês" eram já bem visíveis para quem pudesse olhar com espírito livre. Desde logo, em várias manifestações na escola, e, depois, na sociedade, da política à economia, manifestações que cada vez são mais impressionantes.
A solidariedade, o seu sentimento e necessidade, a felicidade, seguramente, só podem assentar nos grandes valores e nas manifestações mais elevadas da cultura, do conhecimento, da religião, do altruísmo, da generosidade humanos. Valores, conhecimento e cultura que, pelo contrário, foram desvalorizados, durante todos estes anos, por esta escola, dita moderna, mas pós-moderna, das "ciências" da educação.

Escola dos "chavões" da "aula como continuação do recreio", do "aprender a aprender", do "aprender sem esforço", das avaliações a fingir, cujos resultados, mesmo assim, esconderam ao País enquanto os deixámos; do "ensino centrado no aluno", que, como demonstrámos, não queria dizer "ao serviço do aluno", como devia querer ser, mas sim "o ensino definido pelo aluno", imagine-se. Escola marcada (até David Justino e José Sócrates, registe-se) pela estigmatização do ensino técnico, escola da grande mentira da "inclusão" - como pode ser isso apregoado, quando se foi vendo logo que as crianças mais desfavorecidas fugiam cada vez mais dela?

Aqueles que, durante todos estes anos, ignorando a prova da realidade, teorizaram e impuseram o ensino que temos tido - um ensino que expulsou ou foi desvalorizando a memória, a história, a grande literatura e com ela o ensino da língua e a expressão do pensamento, a filosofia, o conhecimento que conta; um ensino sem exames, sem exigência, sem emulação, sem a valorização do mérito, sem regras; um ensino permissivo, com os jovens abandonados ao "instinto reptiliano", e mesmo, nalgumas situações, encorajados a manifestá--lo - um ensino que, diziam, e continuam a dizer, tornaria os portugueses mais tolerantes, solidários, participativos e cooperantes, criativos e empreendedores, mentiram ou falharam. Aconteceu o contrário. Não tornou os portugueses mais informados, nem mais cultos, como imediatamente se podia ter percebido, mas também não os tornou mais generosos e solidários. O verdadeiro, interiorizado, reflectido conhecimento é gerador de solidariedade, a ignorância é sua inimiga.

E quanto mais anos neste ensino, pior. Mais instruídos? Mais solidários e empenhados no bem social? Não. Apenas com mais anos na escola errada. Como este estudo da Universidade Católica parece ter já podido verificar. Essa ideologia e essa prática "educativa" roubaram as crianças, deixaram que perdessem os valores tradicionais que transportavam, e que fossem substituídos por uma espécie de lei da selva, que chegou até, de algum modo, a ser valorizada. Violência que tem a expressão mais imediata e visível nas agressões aos professores e entre os alunos, e o seu espaço natural na anomia antieducativa dos hiperestabelecimentos escolares. Violência que cresceu sempre, em número e em grau.

E mesmo que se actuasse já no ensino, num grande movimento nacional que tudo, infelizmente, indica parecer impossível - e ainda que resultados dessa boa mudança logo se manifestassem no ambiente das escolas e no aproveitamento dos alunos, como tenho dito -, a alteração do perfil médio dominante dos portugueses que o tal estudo da Universidade Católica revela, só no longo prazo, como se compreende, se verificaria. E Portugal, entretanto, como se tem visto, irá pagando a factura.
Há de resto muitos outros indicadores desta realidade. Por exemplo, no domínio, determinante, da leitura. A escritora Alice Vieira referiu que há dez anos ia às escolas apresentar e discutir os seus livros com miúdos de 12 anos. Hoje vai à escola apresentar e discutir os mesmos livros... com jovens do 12.º ano!
E é urgente divulgar e pensar uma situação terrível que terá consequências dramáticas para o País: os grandes livros que veiculam o conhecimento universal estão já a deixar de ser publicados em português. Por falta de leitores. De um número mínimo de leitores que viabilize os custos da sua edição.

O que o estudo da Universidade Católica - que é também, curiosamente, uma tese de doutoramento em "ciências" da educação - parece provar é, pois, infelizmente, o que eu sempre disse, e que não era, aliás, difícil de prever.
"Tudo é igual a tudo" é, afinal, a expressão pós-moderna que melhor traduz a ideologia e a pedagogia que também à nossa escola foram impostas durante todos estes anos de devastação. O resultado aí está, documentado agora por um estudo que parece ser insuspeito e merecer, por esta primeira notícia, credibilidade. Mas não era preciso estudo nenhum para o provar, bastaria pensar e, depois, olhar.

Claro que certamente há gente boa e muito boa, como sempre houve e haverá. Tendo havido também bons professores que conseguiram resistir, como sempre aconteceu no passado, há também bons alunos que sobreviveram ao sistema. Instruídos e bem formados... fora dessa escola. Como pode falar-se nas "gerações mais qualificadas que Portugal teve"...

Mas mudar está ao nosso alcance, depende apenas da nossa vontade. O que é preciso primeiro é ver e assumir a verdade.
*Os Anos Devastadores do Eduquês, Lisboa, Presença, 2012

** Editor da Gradiva

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