18/01/2015

Radicalizados em casa pela Internet, de França a caminho da Síria


Fizeram cortes. Repudiaram costumes e família. Substituíram a sua visão do mundo pela dos sectários. Assim é parte da mão-de-obra dos radicais islâmicos.

 Em França, 160 famílias, a maioria de classe média, sem estigmas de integração ou confissão religiosa arreigada, vivem um drama. Os filhos, na solidão dos seus quartos, após inúmeras jornadas de Internet, decidiram mudar de vida. Foram doutrinados, radicalizaram-se e partiram para a Síria.


“Os jovens captados por este discurso viviam como indivíduos globalizados, mas não se sentiam parte integrante de nenhuma cultura e de nenhum espaço cultural”, refere o relatório A metamorfose operada nos jovens pelos novos discursos terroristas, de Novembro do ano passado, do Centro de Prevenção contra as Derivas Sectárias ligadas ao Islão (CPDSI). Um organismo criado em Maio de 2014, animado pela antropóloga Dounia Bouzar, ex-membro do Conselho Francês do Culto Muçulmano, por Christophe Caupenne, durante 13 anos chefe da equipa de negociadores do RAID, corpo de elite da polícia antiterrorista gaulesa, e pelo pedagogo Sulayman Valsan.

Os autores trabalharam sobre os relatos dos pais dos radicalizados e os seus perfis no Facebook. O estudo abre a porta para uma nova realidade, tão inquietante quanto surpreendente. Em causa ficam os estereótipos da adesão a práticas violentas e a organizações como o autoproclamado Estado Islâmico (EI), única e essencialmente baseada no desemprego, na marginalização social e na guetização suburbana de segundas gerações da emigração.

Das 160 famílias de nacionalidade francesa que recorreram ao CPDSI, 80% eram ateias e só 16% eram de classes populares a braços com o desemprego. A maioria (63%) dos jovens considerados pelo estudo tem entre 15 e 21 anos, e são raros os casos de doutrinamento acima dos 30 anos. Apenas uma ínfima parte destes adolescentes, cinco em cada cem, cometeram actos de pequena delinquência. Mas já em 40% dos casos sofreram episódios de depressão. E a quase totalidade deles – 98 em cem – chegaram ao contacto com o discurso radical através de Internet.

“Quando um discurso religioso conduz o individuo à ruptura – social e familiar – a ponto de ele se privar dos seus direitos mais fundamentais, podemos falar de efeito sectário”, afirmam os autores do estudo. Ou seja: a forma como os jovens foram captados, as etapas do seu trajecto de radicalização e o corte pessoal e social operado nas suas vidas são em tudo idênticos aos processos de envolvimento com as seitas.

Ao longo de 91 páginas, este percurso é detalhado. As fases da metamorfose são sistematizadas num processo de sucessivas rupturas dos jovens. Com os antigos amigos, com as actividades de tempos livres e com a escola. Depois, com a família. “Para que a primazia do grupo radical seja completa, a autoridade do grupo deve substituir a autoridade dos pais”, constatam os autores do relatório.

Para o corte familiar são usados todos os expedientes, contrariando-se gestos, costumes e símbolos sociais numa escalada em direcção à alegada e inevitável ruptura, que leva os jovens a considerar a impossibilidade de viver com os pais. A alimentação é um recurso fácil. Nas suas comunicações por Internet, numa fase de doutrinamento primário, são abundantes as referências àquilo que Bouziar, Caupenne e Valsan designam “conspiração do porco”: a presença de elementos porcinos em gelatinas leva à elaboração de uma lista de alimentos e seus derivados proibidos. A oposição ao álcool não se fica, apenas, pela sua ingestão, mas também inclui a utilização de perfumes e desodorizantes, de acordo com os relatos dos pais.

Pouco a pouco, cresce o isolamento do jovem. “O doutrinado deixa de ter qualquer ligação com a sua antiga visão do Mundo que foi substituída pelas ideias do grupo sectário, para alguns este grupo é uma organização que regula a sua desorganização interna, o que os apazigua”, sintetiza o estudo.

Consagrado o corte com as suas referências, o processo de doutrinamento sobe um patamar. “A partir da rejeição do mundo real é-lhes injectada a ideia de que apenas um confronto total e final poderá mudar as coisas”, conclui esta investigação. As formas de propaganda – os vídeos – não são método casual. “São destinados a um público jovem, habituado a imagens que são um universo familiar para eles, de que conhecem os códigos”, observa-se no trabalho do CPDSI. E a violência dos jogos comerciais já os imunizou para o repúdio.

Diversas são as motivações dos jovens destas 160 famílias. Do ideal cavalheiresco de mudança, oferecendo o seu envolvimento até ao sacrifício, à causa humanitária insuflada às raparigas confrontadas com os horrores da guerra na Síria e o cortejo de privações sofridas pelos refugiados. Segundo os relatos dos pais, elas quando chegam ao terreno sentem-se decepcionadas. Mas o regresso é difícil.

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