Peregrinação:
João Botelho acusado de adaptar romance sem autorização
Deana
Barroqueiro, a autora de O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto, garante
que o realizador retirou do seu livro várias personagens e cenas que aparecem
no filme em que conta a história do célebre explorador português do
século XVI sem que ela ou a sua editora soubessem que o ia fazer. A
escritora pondera processar o cineasta.
30
de Março de 2018, 17:12
Deana Barroqueiro, a autora de O Corsário dos Sete
Mares – Fernão Mendes Pinto, está indignada. Na quinta-feira, o
jornal Hoje Macau tornou públicas as acusações que a
escritora fez ao realizador João Botelho na sua página no Facebook. Barroqueiro
garante que o cineasta que em 2017 estreou Peregrinação,
filme em que diz adaptar a obra homónima do explorador do século XVI que
é o mais célebre dos títulos da literatura de viagens portuguesa, usou, sem a
sua autorização, alguns personagens e episódios que não constam do original,
mas do romance que a escritora lançou em 2012, na Casa das Letras (chancela do
grupo LeYa).
“É mesmo uma adaptação só que o João Botelho esqueceu-se
de falar comigo ou com a editora”, disse Deana Barroqueiro ao PÚBLICO esta
sexta-feira, acrescentando ainda, como fizera já por escrito na rede social,
que, em momento algum, o realizador terá reconhecido publicamente que o seu
livro fora uma das fontes de Peregrinação.
Foi quando os leitores de O Corsário dos Sete Mares começaram
a dizer-lhe que o livro era melhor do que o filme e que o seu nome aparecia na
ficha técnica, nos agradecimentos, que tomou conhecimento do que se passava,
conta. Até aí não tinha visto Peregrinação.
Resolveu então, e antes de se sentar numa sala de cinema, ler as entrevistas
que Botelho dera a propósito do filme e começou a constatar que o cineasta
atribuía cenas e personagens que ela criara à obra escrita por Fernão Mendes
Pinto e que falava de outras fontes, sem nunca tocar no seu nome: “Ele menciona
o Aquilino Ribeiro, menciona o Fausto e não faz uma referência ao meu livro
nunca, em nenhuma entrevista, em nenhum artigo.”
Para tornar mais claro até que ponto o seu romance é
importante para a Peregrinação de Botelho, a autora exemplifica –
Meng, a amante chinesa que aparece em muitas das fotografias de promoção do
filme a lavar as cicatrizes das costas de Fernão Mendes Pinto, é uma criação
sua, só que Barroqueiro coloca a cena numa aldeia junto à Muralha da China e
Botelho transporta-a para Pequim. "Eu estava a assistir ao filme e a ver
as minhas cenas com os pormenores todos. Quase que estaria encantada se não
estivesse tão indignada. Senti-me violada.”
João Botelho e o produtor de Peregrinação, Alexandre
Oliveira, não estão disponíveis para prestar declarações, mas a Ar de Filmes
fez chegar ao PÚBLICO por email o seguinte esclarecimento: “Na
construção do guião João Botelho inspirou-se em variadíssimos ensaios e
referências à obra de Fernão Mendes Pinto. Um deles, efectivamente, foi um
livro de Deana Barroqueiro, fonte de inspiração para duas ou três cenas dos
episódios na China.”
Barroqueiro contesta, abertamente, esta leitura redutora
que a produtora faz das cenas adaptadas do seu romance e elenca vários
exemplos, muitos deles também referidos na sua página no Facebook, cenas que
resultaram de cinco anos de investigação: o amor e o desejo não correspondidos
de Fernão Mendes Pinto por uma chinesa que os companheiros tinham comprado; a
filha do capitão que o ensina e ler mandarim; as cenas com as prostitutas, que
permitiram “criar episódios cómicos”; a cortesã que fala sobre “o Yin e o Yang
no sexo” a Cristóvão Borralho; as referências à rua dos cavalos magros, que era
onde se iam comprar as concubinas e as esposas na China; ou o adultério de
Joana Aires da Silva com Manuel Freire, que a escritora foi buscar a outras
fontes da época, que dão conta de um escândalo semelhante. “Ele fez uma
adaptação não autorizada porque não pediu a ninguém”, defende. “As únicas cenas
que não estão no meu livro e estão no filme são as da morte do Pinto com a
família porque, no meu romance, fiquei com o Pinto no Oriente, em 1577/1578.
Também não está a cena das mantas a voarem. São as únicas, porque as de lutas
também lá estão.”
Antes das filmagens, continua a mesma nota breve da Ar de
Filmes, a produtora tentou contactar a escritora, “mas a verdade é que não
foi possível”: “Houve o cuidado de mencionar o nome da autora em primeiro lugar
nos agradecimentos do filme e, posteriormente, a produtora foi contactada pela
editora do livro em questão para que, em forma de retribuição, fosse possível
utilizar imagens do filme para promover a nova edição, ao que simpaticamente
acedeu. Sobre o assunto não faremos mais comentários."
De acordo com a autora, durante este processo, Botelho
ter-lhe-á escrito uma carta, que a sua produtora lhe fez chegar através da
LeYa. Nela o realizador assume ter-se inspirado no romance de Barroqueiro e diz
ter tentado contactá-la antes, sem ter insistido o que devia. “Sou o autor do
filme Peregrinação e durante meses nesta ‘arte de vampiro’ que é
afinal o cinema, li, consultei, adaptei e reescrevi cenas para a minha curta
adaptação da vida e do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto. Na verdade o
seu livro O Corsário dos Sete Mares foi forte inspiração para algumas
cenas do filme, as da China”, diz-lhe o realizador que já adaptou ao cinema
obras de Fernando Pessoa e de Eça de Queirós, numa carta que começa com uma
admissão de culpa – “escrevo-lhe para reparar um mal e, ao mesmo tempo,
agradecer tardiamente um bem” – e termina com um pedido de desculpas:
“Perdoe-me”.
Da editora de Barroqueiro, os comentários à situação por
ela denunciada também chegaram por email, via direcção de comunicação: “A
LeYa e a Casa das Letras colocaram-se, naturalmente, ao lado da autora Deana
Barroqueiro desde que, há alguns meses, foram detectadas evidentes semelhanças
entre o filme e o livro O Corsário dos Sete Mares. Essa posição
mantém-se.”
A LeYa não menciona qualquer possibilidade de vir a
avançar com um processo judicial no domínio dos direitos de autor, mas a
escritora não se coíbe de o fazer: “Não sei se no cinema se considera plágio
quando se pega numa grossa parte de um livro e se aplica como guião de um
filme… […] Mas eu estou muito indignada e sinto-me injustiçada. Levei cinco
anos a fazer investigação, ponho tudo na bibliografia - tenho uma bibliografia
extensíssima - e depois vem alguém que se apodera da minha obra e que nem a
menciona? Eu não admito isto e, se a LeYa não for para o tribunal, vou eu.”
Deana Barroqueiro, que tem uma já longa carreira como
professora, teme ainda que o filme e o que sobre ele disse Botelho, misturando
o original de Mendes Pinto com aquilo que saiu do seu romance, possam vir a dar
origem a equívocos perigosos: “O [crítico de cinema] João Lopes disse que o
filme é muito didáctico para ir para as escolas e é isso que eu, com 35 anos de
ensino, me recuso a aceitar. As minhas cenas, que são imensas, vão passar nas
escolas como se fossem do Fernão Mendes Pinto? Não pode ser.”
Editado em 2012, O Corsário dos Sete Mares vendeu
até hoje, segundo a editora, cerca de 2500 exemplares.
Notícia actualizada às 18h30 para acrescentar a tomada de
posição da Casa das Letras/LeYa, editora de O Corsário dos Sete Mares, e
outras declarações de Deana Barroqueiro.
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