Cinema
João Botelho
assume plágio de romance histórico no filme “A Peregrinação”
ANDREIA
SOFIA SILVA - 29 MAR 2018
O cineasta João Botelho assumiu o plágio do livro “O
Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto”, na escrita do argumento do
filme “A Peregrinação”, rodado parcialmente em Macau. A autora da obra, Deana
Barroqueiro, não esconde a revolta e denunciou o caso na sua página pessoal
do Facebook
Afinal, o cineasta português João
Botelho não escreveu o argumento do seu filme “A Peregrinação” com base na obra
original do escritor Fernão Mendes Pinto, mas sim a partir do romance histórico
de Deana Barroqueiro, intitulado “O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes
Pinto”. O filme foi parcialmente filmado em Macau e ambos os autores estiveram
presentes no território a convite do festival literário Rota das Letras.
Foi a própria autora que fez a denúncia
do caso na sua página pessoal de Facebook, depois de ter recebido uma carta de
João Botelho, também endereçada à sua editora, Casa das Letras/Leya.
Na missiva, o cineasta explicou que
tentou, durante meses, contactar Deana Barroqueiro, mas que nunca conseguiu.
“Sou o autor do filme “A Peregrinação” e durante meses, nesta ‘arte de vampiro’
que é afinal o cinema, li, consultei, adaptei e reescrevi cenas para a minha
curta adaptação da vida e do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto. Na
verdade, o seu romance, o Corsário dos Sete Mares, foi forte inspiração para
algumas cenas do filme, as da China”, pode ler-se.
Botelho adiantou ainda que pensou que a
autora estaria nos Estados Unidos, pois tentou “contactar a editora e não
conseguiu à primeira nem à segunda”. “É evidente que devia ter insistido três,
quatro vezes. Mas meteu-se a produção – trabalhosa, longa e difícil. Tive o
cuidado de colocar em primeiro lugar nos agradecimentos, no genérico final do
filme, o seu nome. É pouco, eu sei. Eu e o produtor aceitamos a sugestão da sua
editora para colocar uma cinta com os dizeres: ‘Inclui episódios adaptados do
romance O Corsário dos Sete Mares’. Perdoe-me”, conclui a carta.
Na sua resposta, que também partilhou no
Facebook, Deana Barroqueiro não escondeu a indignação. “A sua justificação de
que não me conseguiu contactar nem à editora Leya é inverosímil, bastava que
algum dos seus ajudantes pusesse o meu nome no Google e acharia diversos meios
para o fazer – sou figura pública, tenho blogues, várias páginas no Facebook,
e-mails e telefones e passo meses sem sair de casa, a escrever; do mesmo modo,
a Leya não é uma editora de vão de escada, que não atende o telefone.”
Uma das mais conhecidas autoras de
romance histórico em Portugal defendeu ainda, na sua resposta, que o
cumprimento dos direitos de autor nem sempre é cumprido no seu país. “João
Botelho, se eu vivesse na América, o senhor não se atreveria a usar a minha
obra do modo como o fez, porque lá os direitos de autor são sagrados. Em
Portugal, as leis existem, mas só são cumpridas por alguns.”
Deana Barroqueiro confessou ainda ter
tido conhecimento da situação de plágio depois de ter sido avisada por leitores
mais atentos. “Fui alertada por leitores que comentaram a ‘adaptação
cinematográfica do Corsário dos Sete Mares’, convencidos de que o realizador
usara o meu romance e que eu sabia. Perplexa, fui pesquisar na internet. O
primeiro texto/entrevista que li foi o de Nuno Pacheco, no Ípsilon. E passei da
admiração ao pasmo. O senhor fala das personagens que eu inventei no meu
romance, como se fossem da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. E refere como
fontes a obra do próprio aventureiro, as canções do Fausto e a adaptação do
Aquilino, de onde tirou a conhecida e rebatida ideia do alter ego de Fernão,
sem nunca mencionar o meu livro, que tantas personagens e ideias lhe deu.”
A autora viu o filme e gostou “bastante”
dele, mas viu nele todo o romance que escreveu. “Fiquei com a sensação de que o
senhor seguiu mais de perto o guião do meu romance (porque de um guião se
trata) do que o da Peregrinação, que é confuso e de tal maneira intrincado, que
me levou muitíssimo tempo a destrinçar.”
CENAS DA CHINA COPIADAS
Segundo as declarações do cineastas, as
partes do romance histórico que mais usou no filme são as que dizem respeito à
China. A respostas da escritora nessa matéria é peremptória. “Sabe bem que não
foram apenas as cenas da China que adaptou do meu romance ou nas quais se
inspirou, João Botelho. A japonesa Wakasa também não existe na Peregrinação,
foi com muita pesquisa que encontrei a história e as crónicas japonesas,
ficcionei o seu casamento com Fernão, fazendo dela uma espécie de Madame
Butterfly.”
A autora dá ainda outros exemplos de
plágio. “A ‘Senhora’ adúltera foi também uma ficção minha a partir de um crime
do tempo, que encontrei num arquivo e numa genealogia. Até o ‘número mágico
nove’, de que fala nas entrevistas, é o leit-motiv do meu livro. Assim, é de
facto muitíssimo pouco o seu reconhecimento.”
Além disso, “não há nenhuma namorada ou
amante de Pinto na sua obra, só existem no meu romance (exceptuando a rainha da
Etiópia)”, sendo que “a violação da chinesa, por António de Faria, não existe
de todo na Peregrinação”.
Deana Barroqueiro escreveu também que
criou a personagem da amante chinesa, “assim como o nome Meng e os seus
amores”. “Inventei-os a partir da menção feita por Pinto aos filhos do
português Vasco Calvo – ‘dois meninos e duas moças’ -, no cap. 116 da sua
Peregrinação. Ora, a cena que se vê no filme de ‘Meng’ com uma bacia de água
perfumada de flores, a lavar as cicatrizes que Pinto tem nas costas, das
chicotadas na prisão, é um dos episódios do meu romance que considero melhor
conseguidos. A diferença é que João Botelho coloca a cena em Pequim e não na
aldeia onde vão viver os portugueses junto à muralha da China, como condenados
a trabalhos forçados”, escreveu ainda a autora, que deu outros exemplos.
O caso já gerou reacções nas redes
sociais, nomeadamente do escritor Rui Zink, que também esteve no festival
literário Rota das Letras. “Por que motivo os gajos que fazem filmes são amiúde
tão desrespeitadores para com quem escreve os livros que, ora com autorização,
ora surripiando, vampirizam?”, questionou.
“Curiosamente, no teatro acontece menos.
Há um desejo de apropriação (já vi cartazes de peças sem nome do autor, e
faz-me espécie a moda dos «a partir de», e uma cultura do DJ quase como quase
verdadeiro compositor das musiquetas que ‘sampla’) mas é em menor grau. No caso
do cinema, o abuso torna-se tão natural como, em tempos idos, o realizador
casar com a estrela do filme. É chato”, escreveu ainda Zink.
O HM tentou chegar à fala com a autora,
mas até ao fecho da edição não foi possível estabelecer contacto. Nos prémios
Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, o filme “Peregrinação” foi um dos
nomeados em várias categorias, incluindo a de melhor argumento.
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