24/04/2018

O plágio do livro de Deana Barroqueiro


O Clarim - Abril 20, 2018   Cultura
 Joaquim Magalhães de Castro

A noiva de Fernão Mendes Pinto
Respigo esta semana, e a respeito do plágio que João Botelho fez da obra de Deana Barroqueiro “O Corsário dos Sete Mares” no seu mais recente filme “Peregrinação”, um resto de conversa que ficou por transcrever após uma entrevista feita a essa escritora de romances históricos aquando da sua participação no festival literário Rota das Letras, já lá vão alguns anos. Curiosamente, a temática desse resto de conversa diz respeito a um dos episódios que Botelho incluiu no seu filme como se fizesse parte do enredo da obra de Fernão Mendes Pinto, quando, na verdade, é uma ficção de Deana Barroqueiro, se bem que inspirada na tradição oral da região de Tanegashima.
Confessou-me, na altura, Deana Barroqueiro, que apenas visita os países que lhe servem de inspiração para as suas obras uma vez estas concluídas, e isto para «não contaminar com o olhar actual a realidade da época». Aquando da sua visita a Macau acabara de ser editado “O Corsário dos Sete Mares” (hoje de novo notícia, devido à polémica instalada), que nos fala das viagens de Fernão Mendes Pinto, por isso pudera a autora visitar, «finalmente», o Japão, palco, como se sabe, de muitas das peripécias do aventureiro de Montemor-o-Velho.
Em terras do Sol Nascente, Deana e o marido, inseparável companheiro de viagem, seriam recebidos «com uma imensa simpatia, quase carinho». Lembrava a escritora «uma cidadezinha perto de Quioto onde há uma família de japoneses que mantém, numa vivenda de dois andares, situada no centro da cidade, um pequeno museu ligado aos portugueses». Trata-se de um espaço recheado com «uma espécie de painéis namban» que de certa forma continuam «a narrativa dos painéis presentes no Museu de Arte Antiga. Tudo muito bem arranjado, com aquele brio próprio dos nipónicos». Teve o casal de portugueses a oportunidade de conhecer a actual proprietária, que ciosamente dava continuidade à tradição iniciada pelo pai.
Embora haja quem refute a hipótese, Fernão Mendes Pinto terá sido um dos três primeiros ocidentais, juntamente com António da Mota e Diogo Zeimoto, a chegar ao arquipélago nipónico, «em 1541 ou 1543», pois ele mesmo o afirma na sua imortal obra. Terá sido ele também quem ofereceu uma das armas ao daimio de Tanegashima (Zeimoto ofereceu um outro exemplar), na altura um deslumbrado jovem de 17 anos. Perdera esse nobre japonês uma série de possessões do seu domínio a favor do tio que expulsara o pai, «pois este era um tirano», ocupando assim o seu lugar. O daimio logo encarregou o seu armeiro-mor de fazer uma réplica de um mosquete e outra de um arcabuz. Aita – assim se chamava o armeiro – apenas manufacturava armas brancas, mas atendeu ao pedido do seu senhor o melhor que pôde. De tal modo ficou o daimio entusiasmado com o produto final que não o deixava sair do palácio, «pois o considerava tesouro da família». Contudo, essas armas de fogo tinham um grave defeito: a culatra não fechava. Confrontado com essa falha, «sentindo-se profundamente desonrado», Aita estava pronto a fazer haraquiri quando, ao olhar para a sua jovem filha Wakasa num derradeiro acto de despedida, teve uma ideia brilhante. Mandá-la-ia de presente ao namban em troca do segredo do fecho da culatra. Ou seja, se o português casasse com a filha teria de trabalhar com ele e revelar-lhe esse segredo, assim como o segredo da pólvora.
«A primeira história de amor entre um ocidental e uma japonesa, surge, assim, no seguimento da introdução das armas de fogo no Japão pelos portugueses do século XVI», concluia Deana Barroqueiro.
Para os habitantes de Tanegashima o dito namban era o nosso Fernão Mendes Pinto, que acabaria até por casar com a bela Wakasa. Afirmava Deana Barroqueiro ter lido quatro crónicas da época, «embora traduzidas para Inglês», atestando esse facto. Aliás, os «amores entre Pinto e Wakasa» dariam azo a todo tipo de literatura: do pequeno poema ao género épico, passando pela literatura de cordel. Dizia-me Deana Barroqueiro: «Logo a seguir a essas crónicas apareceram uma série de textos avulsos, contos, peças de teatro, romances, poemas narrando esse casamento em várias versões, inclusive uma versão em que a princesa Wakasa engravida e tem um filho, que o namban, entretanto casado no seu país de origem, virá mais tarde buscar, o que leva a princesa a suicidar-se. Uma das versões mostra-nos Wakasa no alto de um monte, vendo os barcos a chegar, suicidando-se de seguida».
Curiosamente, esse é um cenário que lembra em tudo a história de Madame Butterfly, imortalizada por Puccini na ópera homónima. Não seria a primeira vez que os estrangeiros, à falta da capacidade nossa ou, quiçá, audácia, se apropriam de histórias extraordinárias protagonizadas por portuguesas para as transformar em êxitos de vendas em todo o mundo. O caso mais paradigmático é o de Robinson Crusoe, obra de Daniel Defoe inspirada na desdita de um degredado português.
É muito possível, pois, haver entre os nipónicos descendentes de Fernão Mendes Pinto. Deana não descarta a hipótese: «No meu romance apresento versões possíveis, conseguindo conciliá-las recorrendo a vários narradores. É muito natural que haja descendência desse encontro. Na referida literatura de cordel há até uma gravura com o rosto de Fernão Mendes Pinto, algo que em Portugal não acontece». Quanto a Wakasa ela é, entre muitas outras coisas, nome de mercearia e marca de rebuçados e, no centro de Tanegashima, surge em forma de estátua essa filha do armeiro Aita, elevada à condição de princesa, empunhando um arcabuz.
Joaquim Magalhães de Castro

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