Sucesso da Restauração:
«Morto o secretário e presa a duquesa no paço, era necessário fazer caucionar a nossa acção pelos três estados. Temíamos que o povo se distanciasse de nós, desconfiado de uma conjura feita por nobres, essa nobreza que o deixara desamparado, aquando dos motins de Évora e Porto, onde tanta da sua boa gente fora justiçada na forca ou condenada às galés. Era urgente trazer para as ruas esse povo, que aos primeiros rumores do golpe se tinha refugiado com medo em suas casas e nas igrejas, levando-o a aclamar Dom João. Dividimo-nos em grupos e fomos percorrer a cidade aos gritos de “Liberdade! Viva El-Rei Dom João, o Quarto!”, a que todos respondiam com muitos “Real, real por El-Rei Dom João, Rei de Portugal!”.
Eu fui, com o meu bando, buscar o senhor Arcebispo de Lisboa, Dom Rodrigo da Cunha, que estava prevenido desde a véspera e saiu logo em procissão com o seu clero, levando um padre na dianteira uma grande cruz alçada, com um Cristo. Soubemos que o Senado da Câmara estava reunido e para lá nos dirigimos, a fim de anunciar que já havia um Rei natural. Encontrámos as portas cerradas por ordem do presidente, que tomara o tumulto por um motim popular e quisera salvaguardar o palácio. Ameaçámos deitar as portas abaixo, mas, mal soube da Restauração, Dom Pedro de Meneses abriu as portas e aclamou El-Rei à janela, dando-me a bandeira da cidade para ser hasteada no Castelo de São Jorge. Podeis imaginar a minha emoção, quando montei a cavalo com ela na mão, seguido por uma multidão que começou a gritar “Milagre! Milagre!”.
A voz de Brás soa emocionada, ao declamar a oitava, contagiando-nos a todos com o seu sentimento: – Chegado em procissão à porta santa / do melhor Português, ergue influído / a vista a um crucifixo com fé tanta, / quanto está de perigos combatido, / pergunta: Se é o Rei que se levanta, / e por ele, ao primeiro prometido? / Em sinal de que o é, descrava um braço, / ditosa procissão, ditoso abraço.
– Foi assim mesmo, até parece que estiveste lá connosco! – exclama Dom Álvaro, retomando a sua narração:
«A imagem do Cristo pregado na cruz, com toda aquela agitação, soltara o braço direito e movia a mão um lado para o outro, como a abençoar-nos.
– É um milagre e obra de Deus que tenhamos rei! Viva o nosso Rei Dom João IV», bradava Dom Rodrigo da Cunha, sobre as cabeças da multidão ajoelhada.
Foi uma ajuda verdadeiramente providencial, esta bênção à nossa causa! Em Madrid disseram mais tarde que fora o próprio arcebispo que tinha desprendido o braço da imagem, para comover o povo, até aí irresoluto. Houve, todavia, uma notícia na Gazeta sobre um homem que duvidou deste milagre e a parede, junto da qual conversava com alguns companheiros, mostrando o seu descrédito, caiu-lhe em cima e matou-o.
Hasteei a bandeira no Castelo de São Jorge, depois de o tomarmos à guarnição espanhola, libertando Matias de Albuquerque e Rodrigo Botelho, conselheiros da Fazenda, que o Secretário ali fizera prender. Também no supremo Senado da Casa da Suplicação, Aires Saldanha e Dom Gastão Coutinho abriram as cadeias e deram liberdade a todos os presos que lá se achavam encarcerados por serem contrários a Castela. Os que, como eu, percorriam a cidade anunciando a boa nova – e também com o fito de impedir quaisquer desmandos do povo –, volveram ao Paço tendo deixado a cidade tão sossegada, como se aquele dia primeiro de Dezembro fosse igual a todos os outros e não o da Restauração de um reino perdido havia sessenta anos.».
– Também dei conta desse raríssimo sucesso no meu poema: Sobem graças ao Céu enquanto a terra / com lágrimas devotas se regava, / publica-se o milagre, e se desterra / o grão pavor que os peitos ocupava: / troca-se em branda paz a dura guerra, / e qual, se não passara o que passava, / teve Lisboa cheia de alegria, / dous pacíficos Reis em um só dia.
– Por último, nomeámos governadores do reino o arcebispo de Lisboa, o arcebispo de Braga (apesar da sua reconhecida fidelidade a Castela) e o visconde Dom Lourenço de Lima, enquanto Dom João não chegasse a Lisboa. Dez dias mais tarde, criámos um Conselho de Guerra, para estarmos prevenidos e tratarmos da defesa das fronteiras contra a invasão do exército espanhol que o conde-duque não tardaria em ordenar – termina, Dom Álvaro, com um suspiro fatigado, o seu longo relato.
(«1640» - de Deana Barroqueiro)