Amanhã é o Aniversário da Restauração de 1640. Eis o relato dos preliminares da revolução pela voz da minha personagem e protagonista dos acontecimentos reais:
«Quarenta confederados, não muitos para tão difícil empresa, mas assim o exigia o segredo. Cada um de nós tinha às suas ordens um punhado de parentes e amigos leais para levar a bom porto a tarefa que lhe fora destinada, porque se alguém falhasse poderia comprometer toda a missão. Reuníamo-nos, pela calada da noite e no maior segredo, nunca na mesma casa, que mantínhamos às escuras, usando apenas uma sala ou quarto interior; na rua tomávamos as maiores precauções para não levantar suspeitas, indo cada um por sua vez e embuçados, para não sermos reconhecidos. E sempre em pequeno número, para minorar o desastre se fôssemos descobertos, transmitindo em seguida as informações ou ordens aos nossos aliados e restantes conjurados.O ponto de encontro para o derradeiro lance foi o Terreiro do Paço e a hora aprazada as nove da manhã de Sábado, dia primeiro de Dezembro. O palácio, onde se alojava a Vice-Rainha e Vasconcelos tinha o seu ofício, estava protegido por uma força de alabardeiros alemães e pela guarnição castelhana do forte. Era a cabeça da hidra que precisava de ser decepada, logo de início, conquanto a surpresa jogasse a nosso favor. Esperava-nos a morte, se fôssemos mal sucedidos, e para ela nos preparámos, na véspera, uns fazendo o seu testamento, todos confessando-se e comungado com os padres, nossos companheiros.
Houve momentos de grande emoção, como aquele que presenciei na casa do falecido Luís da Silva, o comendador e alcaide-mor de Seia, quando às sete horas da manhã fui buscar os seus filhos, António e Fernão, porque, sendo assaz moços, iriam comigo para o Terreiro do Paço. Fizeram-me entrar para a capela, onde Dona Mariana de Lencastre, uma fervorosa crente na vinda do Encoberto, com varonil inteireza e procurando manter firmes as mãos que seguravam a espada, armava os dois filhos para a luta que se avizinhava, exortando-os a cumprirem o seu dever, para maior honra dos seus antepassados. Anunciou-me, com muito orgulho, que também havia mulheres patriotas que queriam participar na Restauração da Pátria, mesmo as viúvas como ela e Dona Filipa de Vilhena, a condessa de Atouguia, que na falta do marido, armara igualmente os filhos, Dom Jerónimo e Dom Francisco. Devemos muito a inúmeras mulheres, cujos nomes injustamente esquecemos. Injustiça maior não terem sido cantadas como mereciam, nem terem os seus nomes registados para futura memória, por mais cronistas e poetas da fibra de Brás Garcia».
– Que inda tem Portugal tão generosas / matronas, que não somente guardaram / segredo varonil, mas animosas / seus próprios filhos com suas mãos armaram; / imitando as antigas valorosas, / que aos maridos nas guerras ajudaram, / que brotou sempre a planta portuguesa / assombros de valor e de beleza. – recita o poeta.
– Assim mesmo, Brás, sem tirar nem pôr! Fomos chegando ao Terreiro do Paço, sós ou em pequenos grupos, a pé, a cavalo ou em coches, dispondo-nos em bandos pela praça, em lugares estratégicos, desde o Arco dos Pregos ao do Ouro, de modo a acorrer prestes ao chamado.
«Decididos a arriscar a vida pela mais nobre das empresas, sabíamos o que estava em jogo e como a responsabilidade de muitas vidas pesava nos nossos ombros, por isso o sentimento era de apreensão e temor. O que também deu azo a algumas anedotas, de que não posso deixar de vos dar um exemplo, protagonizado por alguém que todos conhecemos. Quando nos cruzávamos com algum conhecido, para sabermos se era do nosso partido, perguntávamos o santo-e-senha. Ora aconteceu que passou por nós Dom Manuel Pereira da Cunha e parou para nos falar, porém, ao ouvir a pergunta “Quem vive?”, em vez de dar a contra-senha “El-Rei Dom João IV”, respondeu num tom agastado, Quem vive? Vive minha sogra, que por meus pecados ninguém vive mais que ela! O infeliz era malcasado e vivia infernizado pela sogra, embora esperasse dela uma boníssima herança.
Ainda nos ríamos quando o relógio deu a primeira badalada das nove e João Pinto Ribeiro bradou: Ide então ali, à sala dos tudescos, a tirar um Rei e pôr outro, para logo nos tornarmos para casa! Todos vós, mesmo os que não estivestes presentes, sabeis o que então se passou. Saltámos dos cavalos e coches e corremos para o Paço, onde alguns dos nossos já tinham entrado na sala da guarda real (como se fazia, de ordinário, enquanto se esperava para ser recebido por Vasconcelos) e, em ouvindo o sino, dominaram os archeiros e os guardas tudescos, após uma breve mas renhida luta.
Houve poucos feridos de parte a parte e apenas um morto, o corregedor Francisco Albergaria, que levou dois tiros por ter gritado Viva El-Rei Dom Filipe, em resposta a Dom Miguel de Almeida, que bradava, de espada em punho e com uma força de espantar num ancião de oitenta anos, Liberdade, liberdade! Viva El-Rei Dom João o IV! A multidão ia engrossando na praça: aprendizes, oficiais e mestres de desvairados ofícios, atraídos pelo alvoroço ou convocados pelos Vinte e Quatro dos Mesteres e também pelo Juiz do Povo, gente que o padre Nicolau da Maia trouxera para a nossa causa. Dom Miguel apareceu na varanda e repetiu o grito: Valorosos Lusitanos, viva El-Rei Dom João, o quarto de Portugal, até agora duque de Bragança. Viva! Morram os traidores, que nos arrebataram a liberdade! E o Terreiro do Paço estremeceu com o estrondo dos grandes vivas dados em resposta.»
(Deana Barroqueiro - «1640»)
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