Defenestração de Miguel de Vasconcelos
– Não duvido de que Deus nos ajudou porque fizemos uma revolta quase sem derramamento de sangue, coisa raríssima que espantou todas as nações da Europa – diz Dom Álvaro, assim que o alvoroço sossega, retomando o fio à sua história. – Não podíamos deixar Miguel de Vasconcelos com vida, mas queríamos evitar mortes desnecessárias.« Dom António Telo entrou na Secretaria, a fim de cumprir o juramento que fizera de o matar com as suas próprias mãos, mas não achou rasto dele. Quando se preparava para prosseguir com a busca em outras salas do paço, uma escrava que, se refugiara assustada a um canto, apontou para um armário de papéis contra o qual disparou dois tiros. Ouviu-se uma restolhada e o traidor, perdida toda a arrogância e a tremer de medo, saltou de dentro como uma mola, escancarando as portas, com uma clavina engatilhada, atirando à toa, antes de cair ferido ou moribundo. Muitas mãos apoderaram-se dele e, erguendo-o no ar, defenestraram-no.
Mal o corpo caiu na praça, a regateira Brígida d’Alfama, à frente de um magote de petintais, agarrou-o pelos cabelos e levou-o de rojo para o meio da turba, que o golpeou com pedras, paus e navalhas, socos e pontapés, rasgando-lhe as roupas para levar mementos, até dele não restar senão uma massa sangrenta sem forma humana. Acabava, de modo ignominioso, o ministro prepotente que tantas vidas pisara e a tantos desdenhara, calcado a pés e cuspido de desprezos, como o mais miserável dos criminosos. Na sua escrivaninha achámos uma carta com uma denúncia da conspiração com os nomes de todos os conjurados, que ele não chegara a ler e, por isso, não tomou medidas para a fazer abortar.».
– Ele não acreditava numa revolta da nobreza e o golpe apanhou-o desprevenido – zomba Dom Rodrigo. – Da mesma arrogância comungava Olivares, achando que nos podia humilhar à sua guisa. Quando teve notícia de que perdera o reino de Portugal, foi pedir alvíssaras a Dom Filipe pela boa nova, dizendo-lhe: “Tem Vossa Majestade mais um grande Estado, dentro da Espanha, o de Bragança, para possuir ou dar, como for servido”. Queria com isto dizer, que agora já podiam dispor de Portugal como mais uma província ou coutada espanhola, porque os vastíssimos domínios do duque de Bragança passariam para a coroa, por crime de lesa-majestade. Chamaram “rei de um inverno” a Dom João, seguros de que o seu reinado só duraria uns meses.
– Pelas leis da guerra era forçoso matar a Miguel de Vasconcelos – insiste Dom Álvaro, prosseguindo com a sua narrativa. – Se o deixássemos vivo, haveria de ser causa de maior infelicidade para Portugal, que aquela que já havia causado.
«Dom Miguel de Almeida e um bom número de companheiros foram pelo interior do paço, em busca de Dona Margarida de Sabóia, achando-a junto a uma janela da Casa da Galé, muito assustada com o tumulto e a rogar ao povo que a socorresse e livrasse das mãos dos amotinados. Afastaram-na da janela com muita cortesia e, com igual decoro, impediram-na de descer para o Terreiro do Paço.
– Senhores, já estais satisfeitos e vingados com a morte do ministro culpado – arengou ela, recuperando o alento. – Ele foi castigado. Não passe adiante o furor, que não deve entrar em corações tão nobres. Prometo-vos que El-Rei perdoará a todos, vendo a obediência com que respeitais o seu serviço.
D Sebastião de Matos de Noronha, o arcebispo de Braga, irrompeu na sala a vociferar contra os conjurados. O presidente do Tribunal do Paço era conhecido por ser do partido de Castela e pelo seu génio violento.
– Peço a Vossa Reverência que se cale – atalhou Dom Miguel, num tom nada respeitoso. – Muito me tem custado livrá-lo da morte, porque os portugueses leais o tomam por traidor e já ontem à noite o queriam matar.
O arcebispo achou prudente obedecer e retirar-se em silêncio para lugar seguro, longe da vista dos homens armado. A duquesa de Mântua, vendo que a tratavam com grande acatamento, retomou a sua sobranceria e as promessas:
– Eu rogarei a El-Rei Dom Filipe pelo perdão…
Não chegou a terminar a frase, interrompida por muitas vozes:
– Já não conhecemos outro rei, senão Dom João IV.
– Aclamámos ao duque de Bragança por nosso Rei natural.
– O reino de Portugal está de novo livre e restaurado!
Dona Margarida enfureceu-se ao ouvi-los e, perdendo o ar conciliatório que usara até àquele momento, insultou-os de modo tão destemperado que Dom Carlos de Noronha lhe disse em voz dura, mais de mando que de cortesia:
– Rogo a Vossa Alteza que se retire, porque desta sorte posso perder-lhe o respeito!
– A mim? E como? – desafiou, empertigando-se.
– Obrigando Vossa Alteza, se não quiser entrar por esta porta, a sair por aquela janela.
Sentindo na voz de Dom Carlos que este não hesitaria em cumprir a ameaça, a duquesa sufocou os protestos e retirou-se com as suas damas para a capela, não sem antes ter assinado uma ordem ao governador do Castelo, para que não saísse em armas contra os revoltosos. Dom Antão de Almada montou guarda com alguns homens aos seus aposentos, para a impedir de comunicar com Madrid e dar notícia da Restauração.
(«1640» - Deana Barroqueiro)
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