Artigo de Miguel Real, no JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), de 31 de Outubro de 2012, na sua rubrica Os Dias da Prosa:
DEANA
BARROQUEIRO
Clássico e moderno
1. Relação com os anteriores romances
Em seis anos,
Deana Barroqueiro tornou-se uma perita no romance histórico. Iniciada na
escrita juvenil ao longo da década de 90, operou, já este século, a passagem
para a dificílima arte da escrita do romance histórico, constituindo-se hoje, com
mais de 2 000 páginas publicadas e, sobretudo, com a recente edição de
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes
Pinto, um dos mais singulares autores neste género literário.
Com efeito,
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes
Pinto constitui um ponto de chegada e, porventura, um ponto de viragem na
obra de Deana Barroqueiro. Ponto de chegada, devido ao estilo pessoal e ao
rigor na investigação com que trabalha a linguagem histórica, que permanece.
Ponto de viragem, devido à complexidade estrutural por que envolveu este último
romance, cortando de certo modo com a “narrativa linear” (introdução da autora
a
O Espião de D. João II, 2009, p.
10), que estruturara os seus romances anteriores, sobretudo o referido
D. Sebastião e o Vidente (2006),
potencializando a “teia” labiríntica “em que se entrelaçam, alternam ou cruzam
os sucessos de várias viagens [de Bartolomeu Dias], a diferentes tempos e
lugares, evocados ao sabor da ocasião (…) Um
puzzle cujas inúmeras peças concorrem para formar um quadro final
coerente e possível…” (introdução da autora a
O Navegador da Passagem, 2008). De certo modo,
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes Pinto é, quanto à forma, o
desenvolvimento de
O Navegador da
Passagem, superiorizando (não no conteúdo, só na forma)
D. Sebastião e o Vidente e
O Espião de D. João II. Se, quanto ao
trabalho sobre a forma estética,
O
Corsário dos Sete Mares é, indubitavelmente o melhor romance da autora,
quanto à substância narrativa ele prolonga o rigor de investigação e o
amplíssimo leque vocabular de
O Espião de
D. João II.
2. O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes
Pinto
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes
Pinto integra-se no habitual estilo da autora por via de uma escrita
possante e enleante, animada de um luxuriante léxico de época (que as notas de
rodapé esclarecem), disseminada por mil e uma pequenas histórias cujo
referencial semântico cruza dois registos de escrita. Um registo colectivo e um
registo existencial. O primeiro, enquadrador, obedece a uma descrição rigorosa
dos acontecimentos, assente numa estrutura clássica (até à publicação do último
romance), dotado de um vocabulário clássico, uma investigação séria e rigorosa,
de que as bibliografias finais dos seus romances são prova evidente. Neste
aspecto reside, digamos assim, o
classicismo
estético de Deana Barroqueiro, confirmado pela autora na introdução a
O Espião de D. João II quando sublinha sofrerem
as suas narrativas da “atenção que dou à contextualização e ao pormenor” (p.
11). O segundo, músculo e sangue da narrativa, ostenta um conjunto de pequenas
e múltiplas histórias existenciais, ilustrando o modo de vida da época retratada,
desde os códigos de cortesia da corte na Europa até à educação dos Naires na
Índia e à caçada ao tigre no Malabar. Neste aspecto, cabe sublinhar a espantosa
descrição da vida de Pêro da Covilhã no reino do Preste João, de certo modo
retomada em
O Corsário dos Sete Mares.
Por via deste segundo registo de escrita, o classicismo de Deana Barroqueiro
moderniza-
se, relativiza-se, ostentando marcas multiculturais e intervenção
directa do narrador. Com efeito, a autora não procede a juízos morais sobre as
condutas das personagens, não omite o violento sangue nascido do encontro
histórico entre os portugueses e os povos africanos, árabes e asiáticos no
tempo dos Descobrimentos. Muito pelo contrário, ostenta-o como marca
indefectível mas ultrapassada da História.
Neste sentido,
os romances de Deana Barroqueiro caracterizam-se pelo
cruzamento entre uma visão clássica e uma visão moderna da História.
A primeira, garante a fidelidade narrativa ao real, provocando o tradicional
efeito de verosimilhança; o segundo, abre os acontecimentos a uma interpretação
plural, dando-nos sem recriminações a visão cultural do malaio, do chinês, do
japonês, do indiano, do muçulmano. É neste enquadramento que se integram os
diversíssimos episódios existenciais que perfazem a totalidade do romance: a
história do Reino do Preste João, o Cerco de Diu, os mercados de escravos onde
F. Mente Pinto é vendido e comprado, a descrição de Cochim, a narração da
primeira portuguesa na Índia, Iria Pereira, a morte heróica de D. Lourenço de
Almeida, a história dos “casados” de Goa, a busca da Ilha do Ouro, a descrição
de Malaca, o destino da embaixada de Tomé Pires ao imperador chinês, os primeiros
contactos com a China e com o Japão…
Assim, efeito da
visão moderna da concepção de romance da autora, a estrutura romanesca de
O Corsário dos Sete Mares, absolutiza o
espaço em função da categoria de tempo, dissolvendo a linha cronológica numa
sucessão de sete espaços que constituem os “Sete Mares” do título. Com a
absolutização do espaço face ao tempo,
O
Corsário dos Sete Mares torna-se, assim, uma obra aberta, confluência
simultânea das três dimensões do tempo. Deste modo, desde os primeiros episódios,
O Corsário dos Sete Mares desenha um
ambiente histórico tão fantasioso (as desmedidas e múltiplas aventuras de que
Fernão Mendes Pinto se considerou protagonista) quanto realista (o modo geral
narrativo), criando uma atmosfera histórica credível, confirmado pelas falas da
personagem principal, que a todo o momento lamenta o contínuo balancear da sua
existência entre a graça e a desgraça – o seu célebre lamento pessoal, “pobre
de mim” ou “coitado de mim”. Fernão Mendes Pinto vai rememorando a sua insólita
existência, construindo a rede de memória que constitui a totalidade do
romance, intercalada por anotações da autora-narradora (em itálico) sobre a
subversão da categoria de tempo. No todo, permanece sempre a mesma estrutura
capitular: cada capítulo é introduzido “por um provérbio e um texto das época
retratada” (p. 12), que introduz o leitor ao ambiente e à mentalidade do tempo.
Constata-se ter
a autora dado relevo simultâneo às três grandes teses sobre
Peregrinação, activando-as no texto. A
tese de Rebecca Catz designa
Peregrinação
como a narrativa por excelência anti-
Os
Lusíadas, opondo o seu conteúdo realista, existencial, vivido, ao conteúdo
cruzadístico da epopeia de Camões. A tese de António José Saraiva, que leu a
Peregrinação como a grande narrativa
pícara portuguesa – tese que Deana Barroqueira, aceitando as restantes, parece
privilegiar segundo o texto da introdução. Finalmente, Maria Alzira Seixo,
realçando os aspectos positivos de
Peregrinação,
considera ser esta obra a grande perspectiva literária popular dos
Descobrimentos, em contraste com
Os
Lusíadas (perspectiva erudita), o primeiro grande romance português de
aventura localizado num quotidiano existencial concreto, findando com o ciclo
das narrativas de cavalaria de estilo mítico e fabuloso, e o primeiro grande
texto mundial do encontro entre o Ocidente e o Oriente.
O Corsário dos Sete Mares. Fernão Mendes
Pinto,
Casa das Letras,
675 pp., 18,90 euros.