Nestes tempos difíceis para os professores, em luta pelos seus direitos, relembro os meus dias de estudante e penso que se não fosse por Maria Aliete Galhoz, talvez eu não me tivesse tornado professora e escritora...
Ouço dizer a muita gente da minha
idade (e até mais nova) que a escola no seu tempo era muito melhor do que a dos
seus filhos ou netos, com professores competentíssimos que sabiam dar-se ao
respeito e dominavam na perfeição todos os segredos da arte de ensinar,
portanto, a anos-luz dos docentes que, nos últimos vinte anos, lhes seguiram as
pisadas nas escolas portuguesas.
Tenho de confessar que não foi
essa a minha experiência enquanto estudante, quer no ensino oficial quer no
privado. Nas aulas, a maioria dos meus professores limitava-se a ler as
matérias dos manuais, obrigando-nos a decorá-las e a despejá-las sem
reflexão ou espírito crítico, desencorajando qualquer assomo de
criatividade do aluno. Em doze anos de aprendizagem conheci talvez quatro professores
competentes, dos restantes não lhes recordo os rostos e muito menos os nomes,
porque nenhum deles me marcou. Raramente encontrei compreensão, simpatia ou
calor humano nessas professoras que não inspiravam respeito, mas apenas medo. Com
elas aprendi a ocultar sentimentos, gostos e, sobretudo, pensamentos.
Contudo, apesar da prepotência tantas
vezes desumana dos seus docentes, a escola era um lugar onde os menos
privilegiados (assaz raros) podiam ter acesso aos livros e, por eles, à cultura, à descoberta
e ao conhecimento, mesmo se o acesso à Biblioteca e aos seus livros fosse
limitado ou até vedado. E ler e escrever tornaram-se na minha paixão, na minha
evasão, na minha liberdade.
Então, no meu penúltimo ano no
Liceu D. Filipa de Lencastre, conheci Maria Aliete Galhoz, a professora de
Francês. Como por um toque de magia a desconfortável sala de aula transformou-se
num mundo fantástico, com janelas para o sistema solar, as galáxias e o
Universo inteiro!
De cabelos louros e ainda jovem,
a professora tinha uns olhos azuis que nos olhavam com ternura e uma voz doce
que nos afagava e me levava a querer cumprir todas as tarefas que nos pedia em
vez de exigir. Para nosso imenso espanto, logo nos primeiros dias, fez-nos
dispor as carteiras em círculo, criando uma intimidade/cumplicidade connosco que
eu jamais julgaria possível (custou-lhe esta ousadia a desconfiança (e mesmo perseguição) das outras
professoras que consideravam os seus métodos pouco didácticos ou mesmo perigosos).
Aliete Galhoz não se limitou a
ensinar-nos Francês. Foi com ela que aprendi a ver além do olhar, a interpretar
um texto para lá dos limites desse texto, a apreciar o tesouro da nossa Língua
e a magia das palavras como criaturas do pensamento; foi ela que me fez amar
Fernando Pessoa e muitos outros poetas; pela sua mão fui guiada até aos grandes
mestres da literatura e pude maravilhar-me com livros que me desvendavam
os mistérios da alma humana e da minha própria alma; por ela cheguei à pintura
e à música (quase desconhecidas na minha esfera familiar) e o mundo ficou
estranhamente belo.
Ela foi a Mestra, a Educadora o
Pigmaleão que modelou e animou o meu Ser futuro. Fez-me compreender que, pelo
estudo, eu poderia ir sempre além dos meus limites e ultrapassar todos os
obstáculos; a sua generosidade e sensibilidade foram o húmus que fez
desabrochar a minha mente e o meu sentir e, pela primeira vez eu escrevi os meus
textos sem medo e ousei tirar a máscara e pôr a minha alma a nu.
Aliete Galhoz foi o modelo que eu
tentei seguir na minha carreira de professora, para assim lhe pagar uma enorme
dívida de gratidão.
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