24/04/2018

O plágio do livro de Deana Barroqueiro


O Clarim - Abril 20, 2018   Cultura
 Joaquim Magalhães de Castro

A noiva de Fernão Mendes Pinto
Respigo esta semana, e a respeito do plágio que João Botelho fez da obra de Deana Barroqueiro “O Corsário dos Sete Mares” no seu mais recente filme “Peregrinação”, um resto de conversa que ficou por transcrever após uma entrevista feita a essa escritora de romances históricos aquando da sua participação no festival literário Rota das Letras, já lá vão alguns anos. Curiosamente, a temática desse resto de conversa diz respeito a um dos episódios que Botelho incluiu no seu filme como se fizesse parte do enredo da obra de Fernão Mendes Pinto, quando, na verdade, é uma ficção de Deana Barroqueiro, se bem que inspirada na tradição oral da região de Tanegashima.
Confessou-me, na altura, Deana Barroqueiro, que apenas visita os países que lhe servem de inspiração para as suas obras uma vez estas concluídas, e isto para «não contaminar com o olhar actual a realidade da época». Aquando da sua visita a Macau acabara de ser editado “O Corsário dos Sete Mares” (hoje de novo notícia, devido à polémica instalada), que nos fala das viagens de Fernão Mendes Pinto, por isso pudera a autora visitar, «finalmente», o Japão, palco, como se sabe, de muitas das peripécias do aventureiro de Montemor-o-Velho.
Em terras do Sol Nascente, Deana e o marido, inseparável companheiro de viagem, seriam recebidos «com uma imensa simpatia, quase carinho». Lembrava a escritora «uma cidadezinha perto de Quioto onde há uma família de japoneses que mantém, numa vivenda de dois andares, situada no centro da cidade, um pequeno museu ligado aos portugueses». Trata-se de um espaço recheado com «uma espécie de painéis namban» que de certa forma continuam «a narrativa dos painéis presentes no Museu de Arte Antiga. Tudo muito bem arranjado, com aquele brio próprio dos nipónicos». Teve o casal de portugueses a oportunidade de conhecer a actual proprietária, que ciosamente dava continuidade à tradição iniciada pelo pai.
Embora haja quem refute a hipótese, Fernão Mendes Pinto terá sido um dos três primeiros ocidentais, juntamente com António da Mota e Diogo Zeimoto, a chegar ao arquipélago nipónico, «em 1541 ou 1543», pois ele mesmo o afirma na sua imortal obra. Terá sido ele também quem ofereceu uma das armas ao daimio de Tanegashima (Zeimoto ofereceu um outro exemplar), na altura um deslumbrado jovem de 17 anos. Perdera esse nobre japonês uma série de possessões do seu domínio a favor do tio que expulsara o pai, «pois este era um tirano», ocupando assim o seu lugar. O daimio logo encarregou o seu armeiro-mor de fazer uma réplica de um mosquete e outra de um arcabuz. Aita – assim se chamava o armeiro – apenas manufacturava armas brancas, mas atendeu ao pedido do seu senhor o melhor que pôde. De tal modo ficou o daimio entusiasmado com o produto final que não o deixava sair do palácio, «pois o considerava tesouro da família». Contudo, essas armas de fogo tinham um grave defeito: a culatra não fechava. Confrontado com essa falha, «sentindo-se profundamente desonrado», Aita estava pronto a fazer haraquiri quando, ao olhar para a sua jovem filha Wakasa num derradeiro acto de despedida, teve uma ideia brilhante. Mandá-la-ia de presente ao namban em troca do segredo do fecho da culatra. Ou seja, se o português casasse com a filha teria de trabalhar com ele e revelar-lhe esse segredo, assim como o segredo da pólvora.
«A primeira história de amor entre um ocidental e uma japonesa, surge, assim, no seguimento da introdução das armas de fogo no Japão pelos portugueses do século XVI», concluia Deana Barroqueiro.
Para os habitantes de Tanegashima o dito namban era o nosso Fernão Mendes Pinto, que acabaria até por casar com a bela Wakasa. Afirmava Deana Barroqueiro ter lido quatro crónicas da época, «embora traduzidas para Inglês», atestando esse facto. Aliás, os «amores entre Pinto e Wakasa» dariam azo a todo tipo de literatura: do pequeno poema ao género épico, passando pela literatura de cordel. Dizia-me Deana Barroqueiro: «Logo a seguir a essas crónicas apareceram uma série de textos avulsos, contos, peças de teatro, romances, poemas narrando esse casamento em várias versões, inclusive uma versão em que a princesa Wakasa engravida e tem um filho, que o namban, entretanto casado no seu país de origem, virá mais tarde buscar, o que leva a princesa a suicidar-se. Uma das versões mostra-nos Wakasa no alto de um monte, vendo os barcos a chegar, suicidando-se de seguida».
Curiosamente, esse é um cenário que lembra em tudo a história de Madame Butterfly, imortalizada por Puccini na ópera homónima. Não seria a primeira vez que os estrangeiros, à falta da capacidade nossa ou, quiçá, audácia, se apropriam de histórias extraordinárias protagonizadas por portuguesas para as transformar em êxitos de vendas em todo o mundo. O caso mais paradigmático é o de Robinson Crusoe, obra de Daniel Defoe inspirada na desdita de um degredado português.
É muito possível, pois, haver entre os nipónicos descendentes de Fernão Mendes Pinto. Deana não descarta a hipótese: «No meu romance apresento versões possíveis, conseguindo conciliá-las recorrendo a vários narradores. É muito natural que haja descendência desse encontro. Na referida literatura de cordel há até uma gravura com o rosto de Fernão Mendes Pinto, algo que em Portugal não acontece». Quanto a Wakasa ela é, entre muitas outras coisas, nome de mercearia e marca de rebuçados e, no centro de Tanegashima, surge em forma de estátua essa filha do armeiro Aita, elevada à condição de princesa, empunhando um arcabuz.
Joaquim Magalhães de Castro

23/04/2018

Dia do Livro e dos Direitos de Autor

1 - Hoje, às 18 horas, vou estar na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa (Metro Cidade Universitária) para uma conversa sobre livros e o romance histórico.
2 - E às 20.20 horas, na Fnac Colombo, vou ler um dos meus textos, durante uma Maratona de Leitura, feita por escritores, que dura das 16 às 21 horas. Vou ler uma passagem de O Corsário dos Sete Mares, um episódio de Fernão Mendes Pinto na China, em casa do monteo, o capitão que vai levar o aventureiro para cumprir pena na Grande Muralha. 
Deixo-vos aqui o seu começo (qualquer semelhança cinematográfica é pura coincidência):

       Como os hóspedes são estrangeiros e os serões se passam dentro de portas, as donas e donzelas da casa não se escondem deles, sendo ouvintes incansáveis das histórias das suas vidas, dos lugares de onde vêm, das viagens que fizeram ou das nações visitadas. É um mundo novo que se abre ante estas mulheres que nunca saíram da cidade porque, para se deslocarem a mais de trinta léguas de suas casas, os chins necessitam de licença dos mandarins, a qual custa caro, nem sempre é concedida ou tarda muito a chegar.
       Vendo o interesse de Fernão por tudo o que o rodeia e também pelos livros que Liu Xugang possui, Zhou, a filha mais velha, faz leituras ao serão da Crónica dos Oitenta Reis da China, das Brochas d’O da Vontade do Filho do Sol (de que ele já ouvira alguns textos ao poeta Lin Dan, o seu companheiro de viagem e de ferros pelo rio Batampina) e da Situação de Todos os Lugares Notáveis do Império da China, respondendo às suas perguntas, uma divertida prática a que se junta o monteo para explicar, com grande gosto e paciência, as partes mais difíceis.
       – Vou cantar-vos um tzu antigo, um poema musical de Fan Tchongyen, para alegrar o vosso exílio – diz-lhes Zhou, certa noite, com o doce sorriso que aquece a alma dos exilados.
       Celebravam o Duplo Sétimo – o sétimo dia do sétimo mês lunar – em que as meninas, para se tornarem talentosas na arte de bordar, fazem ofertas de frutos e de doces à bodhisattva Guaiyn de mil braços, deusa da misericórdia. A gentil moça toma nas mãos cor de neve o erhu, uma espécie de viola de arco de duas cordas, dedilha-o para avaliar o som e canta:
Insidiosa, todas as noites
A saudade persegue
O espírito do peregrino,
Se não o proteger um suave
Sonho, num sono profundo:
A lua cheia – alto Pavilhão solitário –
“Não te encostes ao balcão!..”
E o vinho, no coração despedaçado,
Transforma-se então em lágrimas
Carregadas de mágoas sem fim.
       A sua voz, ao mesmo tempo suave e lastimosa, adoça a alma dos desafortunados estrangeiros, desterrados da pátria e da família. A saudade não mata, mas sepulta o coração em vida, pensa Fernão ao ouvila com um prazer doloroso, como se nela houvesse incarnado o espírito da sua amada Chu Huyen, quando cantava a sua mágoa pela ausência do noivo a quem fora furtada, enchendo-o de paixão e ciúme.
       Acabado o canto, não há um só dos degredados que não tenha os olhos húmidos de lágrimas, por viverem há tanto tempo sem um mimo de mãe, irmã, esposa ou noiva que lhes mitigue o sofrimento. Gaspar de Meireles, cheio de nostalgia, canta-lhes alguns vilancetes, acompanhando-se o melhor que pode com o instrumento chim, em que já tem alguma prática, pelo que todos folgam, aplaudindo muito...


22/04/2018

Documentário Luso-Etíope

"Birtukan - Oranges" (Laranjas) foi o nome que os etíopes deram aos Portugueses por terem introduzido na Etiópia as laranjas doces (os etíopes tinham dificuldade em pronunciar o P de Portugal/Português).

 A comunidade portuguesa do século XVI formou-se a partir de um núcleo de 200 homens, sobreviventes da hoste de 400 guerreiros de D. Cristóvão da Gama, o filho mais novo de D. Vasco da Gama, que foi auxiliar o Preste João, contra os árabes e lá morreu. 

Esses 200 homens, que não puderam regressar a Portugal, casaram com etíopes e criaram uma comunidade católica importantíssima, tendo criado inúmeras igrejas, castelos e outras construções. Parece que os etíopes que deles descendem têm grande orgulho nessa
herança.


Ver mais informações sobre o projecto, em Inglês, aqui:


"O Espião de D. João II" num Documentário luso-etíope

Vou participar num documentário luso-etíope, sobre a vida do meu protagonista e da presença dos portugueses naquele país.

"O Espião de D. João II" tem tido muito sucesso. Além das várias edições, com muitos milhares de livros vendidos, também despertou as atenções na própria Etiópia/Abissínia, onde Pêro da Covilhã achou o tão procurado reino do Preste João, tendo ali acabado os seus dias. 
Yves Stranger, investigador e realizador de documentários, residente na Etiópia e apaixonado pela figura do espião português, acicatado pelo interesse que os etíopes têm pelos vestígios e herança lusa, veio há cerca de 2/3 anos a Portugal para conhecer a terra de Pêro. E quando visitou o Museu da Covilhã, o seu director indicou-me como especialista do tema. Yves Stranger contactou-me, veio a minha casa e falou-me no livro que estava a escrever sobre a presença dos Portugueses na Etiópia e que ia fazer um documentário. Perguntou-me se queria participar no seu projecto, ao qual eu aderi de imediato com imenso prazer.
Agora, que as filmagens estão terminadas, na Etiópia, o realizador vem concluir a parte portuguesa e fazer-me uma longa entrevista sobre o nosso espião e a sua época, fazendo também uma ponte para temas do presente.




O Espião de D. João II traduzido no Egipto

O meu romance O Espião de D. João II, está a ser traduzido, no Egipto, para a língua árabe, por convite da Senhora Embaixadora de Portugal, Dra. Madalena Fisher. O convite foi feito durante um encontro de portugueses a Senhora Embaixadora, quando estive no Egipto, em Março do ano passado. Fiquei felicíssima, como podem imaginar.




07/04/2018

«1640» - Contra o Acordo Ortográfico


No dia 28 de Março passado, participei no 29º Colóquio Internacional da Lusofonia, convidada pela Câmara Municipal de Belmonte, para apresentar o meu novo romance «1640». A minha maior surpresa foi ter verificado, já depois de ter escrito um trabalhoso artigo para as Actas do Colóquio, que os seus organizadores exigiam a todos os participantes que escrevessem segundo o AO, mesmo os daqueles países que não o assinaram, o que é inconcebível. Não podia recusar o compromisso que assumira com a Câmara, por isso adaptei o meu discurso à minha indignação. E deixo-vos aqui os excertos que têm que ver expressamente com o que penso do crime que foi cometido contra a língua escrita que eu amo. Lembro que na sala havia altos responsáveis pela criação do dito AO:



«1640»: Quando a realidade e a lenda se fundem nasce o romance histórico

     Impõe-se-me em modo de introdução um esclarecimento: Sou licenciada em Filologia Românica e fui 35 anos, professora de Língua e Literatura Portuguesa, procurando transmitir a alguns milhares de alunos a minha paixão por este património riquíssimo, que é a nossa Língua, a mais viva expressão da alma portuguesa, que não deve ser aviltada ou corrompida. Razão pela qual sou, como tantos milhões de utilizadores desse património precioso, visceralmente contra o famigerado Acordo Ortográfico, feito no segredo de um gabinete e à revelia das instituições e organismos próprios e da maioria dos que dela fazem profissão, um abuso intolerável cometido por alguns iluminados cuja motivação não foi seguramente a valorização da Língua Portuguesa. Os artífices do Aborto Ortográfico mostram que não a amam, mas acham-se donos dela, tendo a arrogância de a quererem impor a um povo inteiro e aos restantes países da Lusofonia, sem atender à maravilhosa riqueza das suas variantes, cujos aportes têm enriquecido o português de Portugal, a língua-mãe, de onde partiram todas as que são hoje aqui faladas e escritas. Rendo as minhas homenagens aos países irmãos que se recusaram a assinar esse inqualificável acordo e espero que nunca o venham a fazer; tal como vi, com amarga ironia, que dos três países assinantes, o Brasil, como sempre, voltou atrás, recusando-se a aplicá-lo. 
     Assim, também me espantou que, neste colóquio, que é uma ocasião única para se poder apreciar as variantes tão ricas da portuguesa língua, se tenha imposto essa malfadada uniformização da escrita, que não é outra coisa senão uma canhestra mutilação, a todos os participantes dos países que o recusaram: Não perdem ocasião de impor pela força aquilo que não conseguem com a razão. 
     Recuso o corte das consoantes mudas que podem não se ouvir, mas falam na escrita com a linguagem dos sinais, mostrando-nos a sua origem e diferenciação, nos seus étimos e raízes. Esse (Des)Acordo nem toma em consideração as variantes dialectais do nosso próprio país, onde há zonas em que a mesma palavra se pronuncia com C e noutras é muda. 

     Trabalhar a nossa língua em todos os seus registos é um prazer divino e a maior motivação da mi  nha escrita. «1640», o meu último romance, levou esse exercício mais longe do que me permiti sonhar. Amo este país e a sua cultura por isso só escrevo romances históricos de temática nacional, a partir das histórias daqueles que souberam criar, desenvolver e manusear a nossa língua com infinita mestria e originalidade, de que nós hoje somos fracos herdeiros. Na minha trilogia dos Descobrimentos – O Navegador da Passagem, O Espião de D. João II e O Corsário dos Sete Mares – recorri ao estilo e linguagem dos cronistas dos séculos XV e XVI, em que a língua ainda se encontrava em processo de desenvolvimento, transbordante de criatividade; em D. Sebastião e o Vidente, mas, sobretudo, no «1640», que aqui venho apresentar, pude gozar com toda a plenitude a volúpia da Língua Portuguesa, que atingiu as maiores alturas no século XVII. 
     Ao escolher para guias do leitor, quatro dos seus maiores mestres e cultores, fui forçada a meter-me na pele (ou a meter sob a minha pele) o épico Brás Garcia de Mascarenhas, a poetisa lírica Soror Violante do Céu, o maior prosador ibérico seiscentista D. Francisco Manuel de Melo e o pregador António Vieira, que deslumbrava pelo virtuosismo da expressão. Quatro narrações feitas em 1ª pessoa, que constituíram, para a escritora, um tremendo desafio, mas também um prazer sem limites.  
      O romance está construído como um puzzle ou uma teia de intertextualidades documentais, geográficas, literárias, filosóficas, religiosas, sociais e culturais, para envolver o leitor, de modo a que ele possa sentir o prazer estético da leitura, aprofundando em simultâneo o seu conhecimento da época em que decorre a acção. No século XVI, passada a euforia da grande odisseia dos descobrimentos de outros mundos até então encobertos aos europeus, a crise endémica portuguesa, provocada pelos problemas políticos, económicos e sociais, vai culminar no desastre de Alcácer-Quibir e na posterior anexação de Portugal por Espanha. O romance 1640 reflecte esses tempos de crise e da vida problemática das suas gentes. Sendo obra de ficção, tem como principal objectivo o prazer estético da leitura, por isso o escritor frui de uma liberdade criativa que é negada ao historiador; contudo, enquanto género histórico, o romance exige uma componente de informação e conhecimento da História que o distingue e singulariza em relação a todos os outros tipos de romance. O que, para ser feito com honestidade intelectual e respeito pelo leitor, implica da parte do seu autor um estudo de alguns anos, não só dos factos narrados, mas sobretudo da sua contextualização, nos múltiplos aspectos de cada época e da mentalidade dos seus actantes. 
O desastre de Alcácer-Quibir (com que termina o romance D. Sebastião e o Vidente), a crise dinástica, a guerra civil e a anexação do reino por Filipe II de Espanha, numa pretensa União Ibérica, são os antecedentes do romance 1640, em que Portugal foi arrastado para os conflitos do Império espanhol, em particular, da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma das mais destrutivas da Europa. A fim de alimentar a guerra em várias frentes, Filipe IV de Espanha e o conde-duque de Olivares, fazendo tábua-rasa dos acordos sobre a autonomia de Portugal, esgotaram os seus recursos humanos e materiais, destruindo a economia e esmagando o povo com impostos, que eram aplicados não em benefício dos portugueses mas dos espanhóis, transformando o reino numa das mais pobres províncias da Península Ibérica.
Olivares contou com os serviços de funcionários portugueses submissos e interesseiros, como Diogo Soares, em Madrid, e Miguel de Vasconcelos, em Lisboa, os bons alunos do Ministro estrangeiro, que não só obedeceram às suas directrizes, como foram mais longe na imposição de sacrifícios aos seus compatriotas, reduzindo-os à miséria e à fome. Ao estudar a crise social, económica e política de Portugal, nos textos deste período, foi possível estabelecer um paralelismo entre este triunvirato de governantes seiscentistas e a Troika que nos veio governar, em 2011, imposta pelo FMI/instituições europeias, com os seus nefastos resultados.
Nestes períodos de crise, Portugal procurou uma panaceia ou incentivo contra o pessimismo e a estagnação do país, na afirmação da sua nacionalidade e identidade colectiva. E nada melhor para valorizar a nação do que atribuir-lhe origens divinas ou tão antigas, que remontassem a um tempo anterior à sua criação, legitimando-a. Assim, como princípio fundador, mais remoto, surge a identificação de Portugal com a Lusitânia e dos portugueses com os Lusos ou Lusitanos, e consequente apropriação do herói Viriato e da sua luta pela autonomia do território, como matriz e origem histórica de Portugal, uma tese veiculada e exaltada pela Literatura, com expressão máxima nos Lusíadas, de Luís de Camões, no século XVI, e no Viriato Trágico, de Brás Garcia Mascarenhas, no XVII.
A reforçar essa legitimidade, uma tese posterior vai atribuir origem divina à fundação do reino de Portugal, por D. Afonso Henriques, sacralizada, em 1139, pelo milagre de Ourique, na sua anunciada visão de Cristo crucificado a prometer-lhe a vitória contra os cinco reis mouros. Um milagre que o consagra rei, em pleno campo de batalha, e que será descrito em futuras crónicas, servindo de argumento para a sua legitimação pelo papa. Sobrepondo-se à valorização política dos dois princípios fundadores, coexistiam três crenças messiânicas, que indicavam 1666 como o annus mirabilis: a dos judeus e cristãos-novos para a vinda do seu Messias; a dos sebastianistas para o regresso d’El-Rei Dom Sebastião; e a dos milenários à espera da destruição do Turco e da instauração de um Quinto Império, cristão e universal, que Bandarra mencionava nas suas Trovas.
O povo oprimido começou a ansiar pelo regresso do rei D. Sebastião, desaparecido sem deixar rasto no campo de batalha e identificado com o Encoberto das profecias do sapateiro santo. Uma crença que foi crescendo, cada vez mais forte, durante o domínio dos três Filipes, alimentando a esperança do povo português na sua libertação. Padre António Vieira defenderá a deia do Quinto Império, o  Império de Cristo, para um período de mil anos, que terá Portugal como guia, quando todos os pagãos, judeus e muçulmanos forem convertidos ao catolicismo, o reino do Deus único e verdadeiro.
O romance 1640, apoiado em inúmeras fontes documentais coevas e actuais, procura fazer um retrato verosímil do Portugal seiscentista, dos seus conflitos internos e das suas difíceis relações internacionais, numa luta pela sobrevivência como nação independente. A acção decorre num período de cinquenta anos (1617-1667), riquíssimo em acontecimentos, dramas e personagens.
No dia 1 de Dezembro de 1640, os portugueses dos três Estados – povo, clero e nobreza – soltaram o grito de liberdade e tomaram o destino do país nas suas mãos, iniciando uma intensa luta para sair da crise pelos seus próprios meios, num Portugal esgotado e acossado por nações inimigas – a Espanha e as suas aliadas –, mas também pelas «amigas», como a Inglaterra e a França, que impuseram condições esmagadoras em troca da sua ajuda. Tal como nos nossos dias.
A estrutura formal da obra foi inspirada na Corte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, que, ao estilo da época barroca e em total sintonia com a intriga, recorre aos Diálogos entre várias personagens que discutem, comentam e problematizam os assuntos mais variados, introduzindo os capítulos narrativos dos sucessos que mais os marcaram, preocuparam ou divertiram.
Durante a dominação filipina, os reis e a Corte residiam em Madrid, centro de acção e decisão sobre todos os assuntos do Império Espanhol e das suas relações com o mundo, mas também um lugar privilegiado de criação e promoção de progresso, cultura e entretenimento. Lisboa, a antiga residência da dinastia de Avis, perdeu assim o seu estatuto de Corte régia, transformando-se em mera capital de província.
Cansada de correr para Espanha, a mendigar mercês, parte da nobreza de Portugal retirou-se para os seus domínios, no campo, onde fez florescer as «cortes de aldeia», que procuravam imitar, segundo o estatuto e as posses dos seus senhores, as Cortes régias, com mecenato a escritores, músicos e outros artistas. A mais fulgurante, em dimensão e importância, foi a dos duques de Bragança, em Vila Viçosa, cujo cerimonial cortês era idêntico ao de Madrid.
Uma mentalidade barroca que, segundo Vitorino Magalhães Godinho, “anseia pelo fausto e pela exibição, nos círculos nobres como nos religiosos – uma religião de exuberância decorativa, aquietando-se nos ritos de subterrâneas inquietações, satisfazendo-se na exterioridade de uma insatisfeita interioridade”. Assim, nas cidades, essa função cultural e intelectual é assumida nos conventos pelas freiras, cultas e de nobre ascendência, alguns célebres quer pelos seus Outeiros (representações teatrais, concertos musicais, saraus de poesia e produção literária), quer pelos escândalos de cariz licencioso das suas religiosas.
Na primeira parte do romance, o narrador é o poeta Brás Garcia de Mascarenhas, autor do Viriato Trágico, a grande epopeia seiscentista cujo herói é o pastor dos Montes Hermínios, com a sua luta contra os romanos, que simboliza a revolta dos portugueses contra a ocupação espanhola. Brás é a personagem de maior relevância, embora desconhecida dos portugueses, que pretendi resgatar ao limbo do esquecimento, restituindo-a a um merecido lugar entre os maiores vultos da cultura portuguesa. Nascido em Avô, amante traído, proscrito e aventureiro, Brás vai conduzir o leitor pelo dédalo de sucessos anteriores à Restauração, como as guerras do Brasil contra os holandeses, a sua amizade com António Vieira, as experiências com os índios e a sua complexa vida amorosa.
Na segunda parte, guia-o Soror Violante do Céu, desde o convento da Rosa, em Lisboa. Cultora do conceptismo e cultismo, tanto na poesia de temática religiosa como na de cariz secular/erótico. Celebrada pelos seus contemporâneos, como a Décima Musa e a Fénix dos Engenhos Portugueses, dará a conhecer a situação e vida das mulheres de seiscentos, enclausuradas sem vocação nos conventos, algumas desde a infância, uma prisão que, paradoxalmente, era para muitas uma libertação da tirania masculina castradora, permitindo-lhes estudar e exercer os seus talentos de artistas, letradas ou cientistas, o que de outro modo lhes era vedado pelos homens, sob o pretexto de serem intelectualmente inferiores.
Na terceira parte, os conflitos de ordem militar serão relatados por D. Francisco Manuel de Melo, o grande prosador e poeta do século. Na prisão da Torre, este Fidalgo de Dom, aparentado com a Casa de Bragança, militar e marinheiro, foi vítima de uma Justiça corrupta (um traço comum às quatro personagens) que o condenou a doze anos de prisão e ao exílio no Brasil. O seu testemunho permite tomar conhecimento da intrincada rede de conspirações, espionagem e traições com que Portugal e D. João IV se debateram para ganhar a liberdade.
Na quarta parte, o leitor é levado pelas palavras e reflexões do jesuíta António Vieira, o mais brilhante pensador e pregador de todos os tempos, que o guiará pelos meandros da diplomacia nacional e internacional, em que D. João IV se vai empenhar num dificílimo jogo de custosas alianças, para que Portugal possa recuperar o seu estatuto de nação independente. No cárcere da Inquisição, entre 1663 e 1667, ano em que termina o romance, Padre António Vieira, relembrando a sua vida passada, dará conta dos mais significativos sucessos em que participou até à crise política interna, do reinado de D. Afonso VI.
A complexidade do assunto a tratar implicou o estudo de uma infinidade de temas, porque só no cruzamento de saberes se pode alcançar o multifacetado conhecimento de uma época, um trabalho que se arrastou por treze anos de investigação, embora alternando a sua escrita com a da trilogia dos Descobrimentos.
1640 é uma data fulcral da nossa História, que mudou o destino da nação, pois, sem a Restauração, Portugal não seria o mesmo e talvez não passássemos hoje de uma pobre província espanhola, a falar um dialecto e a sonhar com a independência, como a Catalunha, cuja revolta ajudou então à nossa libertação. Assim como, sem a Expansão Marítima Portuguesa, ou seja, sem os Descobrimentos portugueses dos séculos XV e XVI, os países da Lusofonia não existiriam como tal, nem falariam a Língua Portuguesa em todos os seus ricos matizes e este Colóquio não teria razão para existir. Deo gratias, por isso não ter acontecido.



01/04/2018

NO JORNAL HOJE MACAU


Cinema
 João Botelho assume plágio de romance histórico no filme “A Peregrinação”
ANDREIA SOFIA SILVA - 29 MAR 2018 
O cineasta João Botelho assumiu o plágio do livro “O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto”, na escrita do argumento do filme “A Peregrinação”, rodado parcialmente em Macau. A autora da obra, Deana Barroqueiro, não esconde a revolta e denunciou o caso na sua página pessoal do Facebook
Afinal, o cineasta português João Botelho não escreveu o argumento do seu filme “A Peregrinação” com base na obra original do escritor Fernão Mendes Pinto, mas sim a partir do romance histórico de Deana Barroqueiro, intitulado “O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto”. O filme foi parcialmente filmado em Macau e ambos os autores estiveram presentes no território a convite do festival literário Rota das Letras.
Foi a própria autora que fez a denúncia do caso na sua página pessoal de Facebook, depois de ter recebido uma carta de João Botelho, também endereçada à sua editora, Casa das Letras/Leya.
Na missiva, o cineasta explicou que tentou, durante meses, contactar Deana Barroqueiro, mas que nunca conseguiu. “Sou o autor do filme “A Peregrinação” e durante meses, nesta ‘arte de vampiro’ que é afinal o cinema, li, consultei, adaptei e reescrevi cenas para a minha curta adaptação da vida e do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto. Na verdade, o seu romance, o Corsário dos Sete Mares, foi forte inspiração para algumas cenas do filme, as da China”, pode ler-se.
Botelho adiantou ainda que pensou que a autora estaria nos Estados Unidos, pois tentou “contactar a editora e não conseguiu à primeira nem à segunda”. “É evidente que devia ter insistido três, quatro vezes. Mas meteu-se a produção – trabalhosa, longa e difícil. Tive o cuidado de colocar em primeiro lugar nos agradecimentos, no genérico final do filme, o seu nome. É pouco, eu sei. Eu e o produtor aceitamos a sugestão da sua editora para colocar uma cinta com os dizeres: ‘Inclui episódios adaptados do romance O Corsário dos Sete Mares’. Perdoe-me”, conclui a carta.
Na sua resposta, que também partilhou no Facebook, Deana Barroqueiro não escondeu a indignação. “A sua justificação de que não me conseguiu contactar nem à editora Leya é inverosímil, bastava que algum dos seus ajudantes pusesse o meu nome no Google e acharia diversos meios para o fazer – sou figura pública, tenho blogues, várias páginas no Facebook, e-mails e telefones e passo meses sem sair de casa, a escrever; do mesmo modo, a Leya não é uma editora de vão de escada, que não atende o telefone.”
Uma das mais conhecidas autoras de romance histórico em Portugal defendeu ainda, na sua resposta, que o cumprimento dos direitos de autor nem sempre é cumprido no seu país. “João Botelho, se eu vivesse na América, o senhor não se atreveria a usar a minha obra do modo como o fez, porque lá os direitos de autor são sagrados. Em Portugal, as leis existem, mas só são cumpridas por alguns.”
Deana Barroqueiro confessou ainda ter tido conhecimento da situação de plágio depois de ter sido avisada por leitores mais atentos. “Fui alertada por leitores que comentaram a ‘adaptação cinematográfica do Corsário dos Sete Mares’, convencidos de que o realizador usara o meu romance e que eu sabia. Perplexa, fui pesquisar na internet. O primeiro texto/entrevista que li foi o de Nuno Pacheco, no Ípsilon. E passei da admiração ao pasmo. O senhor fala das personagens que eu inventei no meu romance, como se fossem da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. E refere como fontes a obra do próprio aventureiro, as canções do Fausto e a adaptação do Aquilino, de onde tirou a conhecida e rebatida ideia do alter ego de Fernão, sem nunca mencionar o meu livro, que tantas personagens e ideias lhe deu.”
A autora viu o filme e gostou “bastante” dele, mas viu nele todo o romance que escreveu. “Fiquei com a sensação de que o senhor seguiu mais de perto o guião do meu romance (porque de um guião se trata) do que o da Peregrinação, que é confuso e de tal maneira intrincado, que me levou muitíssimo tempo a destrinçar.”
CENAS DA CHINA COPIADAS
Segundo as declarações do cineastas, as partes do romance histórico que mais usou no filme são as que dizem respeito à China. A respostas da escritora nessa matéria é peremptória. “Sabe bem que não foram apenas as cenas da China que adaptou do meu romance ou nas quais se inspirou, João Botelho. A japonesa Wakasa também não existe na Peregrinação, foi com muita pesquisa que encontrei a história e as crónicas japonesas, ficcionei o seu casamento com Fernão, fazendo dela uma espécie de Madame Butterfly.”
A autora dá ainda outros exemplos de plágio. “A ‘Senhora’ adúltera foi também uma ficção minha a partir de um crime do tempo, que encontrei num arquivo e numa genealogia. Até o ‘número mágico nove’, de que fala nas entrevistas, é o leit-motiv do meu livro. Assim, é de facto muitíssimo pouco o seu reconhecimento.”
Além disso, “não há nenhuma namorada ou amante de Pinto na sua obra, só existem no meu romance (exceptuando a rainha da Etiópia)”, sendo que “a violação da chinesa, por António de Faria, não existe de todo na Peregrinação”.
Deana Barroqueiro escreveu também que criou a personagem da amante chinesa, “assim como o nome Meng e os seus amores”. “Inventei-os a partir da menção feita por Pinto aos filhos do português Vasco Calvo – ‘dois meninos e duas moças’ -, no cap. 116 da sua Peregrinação. Ora, a cena que se vê no filme de ‘Meng’ com uma bacia de água perfumada de flores, a lavar as cicatrizes que Pinto tem nas costas, das chicotadas na prisão, é um dos episódios do meu romance que considero melhor conseguidos. A diferença é que João Botelho coloca a cena em Pequim e não na aldeia onde vão viver os portugueses junto à muralha da China, como condenados a trabalhos forçados”, escreveu ainda a autora, que deu outros exemplos.
O caso já gerou reacções nas redes sociais, nomeadamente do escritor Rui Zink, que também esteve no festival literário Rota das Letras. “Por que motivo os gajos que fazem filmes são amiúde tão desrespeitadores para com quem escreve os livros que, ora com autorização, ora surripiando, vampirizam?”, questionou.
“Curiosamente, no teatro acontece menos. Há um desejo de apropriação (já vi cartazes de peças sem nome do autor, e faz-me espécie a moda dos «a partir de», e uma cultura do DJ quase como quase verdadeiro compositor das musiquetas que ‘sampla’) mas é em menor grau. No caso do cinema, o abuso torna-se tão natural como, em tempos idos, o realizador casar com a estrela do filme. É chato”, escreveu ainda Zink.
O HM tentou chegar à fala com a autora, mas até ao fecho da edição não foi possível estabelecer contacto. Nos prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, o filme “Peregrinação” foi um dos nomeados em várias categorias, incluindo a de melhor argumento.

NO PÚBLICO


Peregrinação: João Botelho acusado de adaptar romance sem autorização

Deana Barroqueiro, a autora de O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto,  garante que o realizador retirou do seu livro várias personagens e cenas que aparecem no filme em que conta a história do célebre explorador português do século XVI sem que ela ou a sua editora soubessem que o ia fazer. A escritora pondera processar o cineasta.

30 de Março de 2018, 17:12


Deana Barroqueiro, a autora de O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto, está indignada. Na quinta-feirao jornal Hoje Macau tornou públicas as acusações que a escritora fez ao realizador João Botelho na sua página no Facebook. Barroqueiro garante que o cineasta que em 2017 estreou Peregrinação, filme em que diz adaptar a obra homónima do explorador do século XVI que é o mais célebre dos títulos da literatura de viagens portuguesa, usou, sem a sua autorização, alguns personagens e episódios que não constam do original, mas do romance que a escritora lançou em 2012, na Casa das Letras (chancela do grupo LeYa).

“É mesmo uma adaptação só que o João Botelho esqueceu-se de falar comigo ou com a editora”, disse Deana Barroqueiro ao PÚBLICO esta sexta-feira, acrescentando ainda, como fizera já por escrito na rede social, que, em momento algum, o realizador terá reconhecido publicamente que o seu livro fora uma das fontes de Peregrinação.


Foi quando os leitores de O Corsário dos Sete Mares começaram a dizer-lhe que o livro era melhor do que o filme e que o seu nome aparecia na ficha técnica, nos agradecimentos, que tomou conhecimento do que se passava, conta. Até aí não tinha visto Peregrinação. Resolveu então, e antes de se sentar numa sala de cinema, ler as entrevistas que Botelho dera a propósito do filme e começou a constatar que o cineasta atribuía cenas e personagens que ela criara à obra escrita por Fernão Mendes Pinto e que falava de outras fontes, sem nunca tocar no seu nome: “Ele menciona o Aquilino Ribeiro, menciona o Fausto e não faz uma referência ao meu livro nunca, em nenhuma entrevista, em nenhum artigo.”
Para tornar mais claro até que ponto o seu romance é importante para a Peregrinação de Botelho, a autora exemplifica – Meng, a amante chinesa que aparece em muitas das fotografias de promoção do filme a lavar as cicatrizes das costas de Fernão Mendes Pinto, é uma criação sua, só que Barroqueiro coloca a cena numa aldeia junto à Muralha da China e Botelho transporta-a para Pequim. "Eu estava a assistir ao filme e a ver as minhas cenas com os pormenores todos. Quase que estaria encantada se não estivesse tão indignada. Senti-me violada.”

João Botelho e o produtor de Peregrinação, Alexandre Oliveira, não estão disponíveis para prestar declarações, mas a Ar de Filmes fez chegar ao PÚBLICO por email o seguinte esclarecimento: “Na construção do guião João Botelho inspirou-se em variadíssimos ensaios e referências à obra de Fernão Mendes Pinto. Um deles, efectivamente, foi um livro de Deana Barroqueiro, fonte de inspiração para duas ou três cenas dos episódios na China.”
Barroqueiro contesta, abertamente, esta leitura redutora que a produtora faz das cenas adaptadas do seu romance e elenca vários exemplos, muitos deles também referidos na sua página no Facebook, cenas que resultaram de cinco anos de investigação: o amor e o desejo não correspondidos de Fernão Mendes Pinto por uma chinesa que os companheiros tinham comprado; a filha do capitão que o ensina e ler mandarim; as cenas com as prostitutas, que permitiram “criar episódios cómicos”; a cortesã que fala sobre “o Yin e o Yang no sexo” a Cristóvão Borralho; as referências à rua dos cavalos magros, que era onde se iam comprar as concubinas e as esposas na China; ou o adultério de Joana Aires da Silva com Manuel Freire, que a escritora foi buscar a outras fontes da época, que dão conta de um escândalo semelhante. “Ele fez uma adaptação não autorizada porque não pediu a ninguém”, defende. “As únicas cenas que não estão no meu livro e estão no filme são as da morte do Pinto com a família porque, no meu romance, fiquei com o Pinto no Oriente, em 1577/1578. Também não está a cena das mantas a voarem. São as únicas, porque as de lutas também lá estão.”

Antes das filmagens, continua a mesma nota breve da Ar de Filmes, a produtora tentou contactar a escritora, “mas a verdade é que não foi possível”: “Houve o cuidado de mencionar o nome da autora em primeiro lugar nos agradecimentos do filme e, posteriormente, a produtora foi contactada pela editora do livro em questão para que, em forma de retribuição, fosse possível utilizar imagens do filme para promover a nova edição, ao que simpaticamente acedeu. Sobre o assunto não faremos mais comentários."
De acordo com a autora, durante este processo, Botelho ter-lhe-á escrito uma carta, que a sua produtora lhe fez chegar através da LeYa. Nela o realizador assume ter-se inspirado no romance de Barroqueiro e diz ter tentado contactá-la antes, sem ter insistido o que devia. “Sou o autor do filme Peregrinação e durante meses nesta ‘arte de vampiro’ que é afinal o cinema, li, consultei, adaptei e reescrevi cenas para a minha curta adaptação da vida e do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto. Na verdade o seu livro O Corsário dos Sete Mares foi forte inspiração para algumas cenas do filme, as da China”, diz-lhe o realizador que já adaptou ao cinema obras de Fernando Pessoa e de Eça de Queirós, numa carta que começa com uma admissão de culpa – “escrevo-lhe para reparar um mal e, ao mesmo tempo, agradecer tardiamente um bem” – e termina com um pedido de desculpas: “Perdoe-me”.
Da editora de Barroqueiro, os comentários à situação por ela denunciada também chegaram por email, via direcção de comunicação: “A LeYa e a Casa das Letras colocaram-se, naturalmente, ao lado da autora Deana Barroqueiro desde que, há alguns meses, foram detectadas evidentes semelhanças entre o filme e o livro O Corsário dos Sete Mares. Essa posição mantém-se.”
A LeYa não menciona qualquer possibilidade de vir a avançar com um processo judicial no domínio dos direitos de autor, mas a escritora não se coíbe de o fazer: “Não sei se no cinema se considera plágio quando se pega numa grossa parte de um livro e se aplica como guião de um filme… […] Mas eu estou muito indignada e sinto-me injustiçada. Levei cinco anos a fazer investigação, ponho tudo na bibliografia - tenho uma bibliografia extensíssima - e depois vem alguém que se apodera da minha obra e que nem a menciona? Eu não admito isto e, se a LeYa não for para o tribunal, vou eu.”
Deana Barroqueiro, que tem uma já longa carreira como professora, teme ainda que o filme e o que sobre ele disse Botelho, misturando o original de Mendes Pinto com aquilo que saiu do seu romance, possam vir a dar origem a equívocos perigosos: “O [crítico de cinema] João Lopes disse que o filme é muito didáctico para ir para as escolas e é isso que eu, com 35 anos de ensino, me recuso a aceitar. As minhas cenas, que são imensas, vão passar nas escolas como se fossem do Fernão Mendes Pinto? Não pode ser.”
Editado em 2012, O Corsário dos Sete Mares vendeu até hoje, segundo a editora, cerca de 2500 exemplares.
Notícia actualizada às 18h30 para acrescentar a tomada de posição da Casa das Letras/LeYa, editora de O Corsário dos Sete Mares, e outras declarações de Deana Barroqueiro.

NO OBSERVADOR



João Botelho acusado de adaptação não autorizada. Filme é “presente envenenado”, acusa escritora
30/3/2018, 18:53416
por bruno  horta

Realizador diz que adaptou "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, mas Deana Barroqueiro contesta. “Fiquei siderada, era o meu romance plasmado na tela." Botelho e a produtora admitem inspiração.


De repente, alguma coisa não batia certo. Em novembro do ano passado, Deana Barroqueiro começou a receber mensagens de leitores que lhe falavam do novo filme de João Botelho. A película tinha-se estreado no primeiro dia daquele mês e os leitores diziam-lhe, através do Facebook, que se tratava de uma versão do romance que a escritora tinha publicado alguns anos antes. Mas ela não sabia de nada.
Começou a pesquisar na internet, encontrou entrevistas e artigos sobre o filme e verificou que o realizador afirmava ter feito uma versão da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto – o mesmo livro que a inspirou na escrita do romance O Corsário dos Sete Mares, de 2012. Ficou espantada. Decidiu ir a uma sala de cinema na zona de Alvalade, em Lisboa, para ver o filme com os próprios olhos. E gostou pouco do que viu.
“Fiquei siderada, era o meu romance plasmado na tela. Senti-me espantada e ao mesmo tempo violada. Aquilo foi um presente envenenado”, classifica Deana Barroqueiro, em conversa com o Observador.
Tenho uma escrita bastante visual e os pormenores que dou no meu livro, as expressões que uso, as personagens, está tudo no filme do Botelho. Ele até segue a ordem dos capítulos do meu livro. Não copiou uma uma pequena coisa. Sem o meu livro, aquele filme não existia.”

“Peregrinação”, de João Botelho, foi financiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, através de um concurso a que o realizador se candidatou em 2015 com um pedido de 600 mil euros. Também a RTP, a Câmara de Lisboa e Câmara de Almada contribuíram para o financiamento. A obra integra uma sequência que João Botelho tem dedicado à literatura portuguesa, iniciada em 2001 com uma adaptação de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, a que se seguiram versões de obras de Agustina Bessa-Luís, Fernando Pessoa e Eça de Queirós.
Em abril do ano passado, o realizador explicou à Agência Lusa que o filme “não é” a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, mas apenas uma parte. “Como se fosse uma introdução à leitura” da obra impressa pela primeira vez em 1614. 
Os documentos distribuídos à imprensa quando da estreia incluem um texto de Botelho onde este explica: “Aceitei de Aquilino Ribeiro a ideia genial e tão justa cinematograficamente de que o corsário António Faria é um heterónimo de Fernão Mendes Pinto. E roubei a Fausto, com a devida autorização, os originais de ‘Por Este Rio Acima’, que o Luís Bragança Gil e o Daniel Bernardes transformaram em polifonias para voz.” O livro de Deana Barroqueiro não é referido.
A autora, de 72 anos, é conhecida por escrever romances históricos, sendo um dos mais conhecidos D. Sebastião e o Vidente, publicado em 2006 pela Porto Editora e do qual se venderam mais de 18 mil exemplares, dizem os números oficiais. Filha de portugueses, nasceu nos EUA, em New Haven, estado do Connecticut, e vive em Portugal desde os dois anos. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, foi professora de português e de literatura no Liceu Passos Manuel e publica regularmente desde a década de 90.
Ao escrever O Corsário dos Sete Mares quis afastar-se do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto e romancear cenários, pessoas e situações.
Li quatro vezes a ‘Peregrinação’ de uma ponta à outra para fazer o terceiro volume da minha saga sobre os Descobrimentos. As cenas que o João Botelho filmou não existem na ‘Peregrinação’, simplesmente não existem. As cenas com prostitutas, a amante, o casamento. É inegável que as foi buscar ao meu livro, mas agora apresenta-as como se fossem de Fernão Mendes Pinto. A Meng foi uma personagem inventada por mim e no filme do Botelho também há uma Meng [interpretada pela atriz Jani Zhao]. ”
A autora entende que o realizador não pode descrever o filme como uma adaptação do livro do século XVII e que deveria ter incluído na ficha técnica uma referência explícita a O Corsário dos Sete Mares”. Acredita que a película “pode induzir em erro” o público, desde logo os estudantes – até porque o filme foi recomendado pela Direção-Geral da Educação.
Não quero dinheiro, estou-me nas tintas para os direitos de autor. Vivo para a escrita, não vivo da escrita. Bastava-me que ele tivesse referido que adaptou o meu romance”, sublinha.