01/04/2018

NO OBSERVADOR



João Botelho acusado de adaptação não autorizada. Filme é “presente envenenado”, acusa escritora
30/3/2018, 18:53416
por bruno  horta

Realizador diz que adaptou "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, mas Deana Barroqueiro contesta. “Fiquei siderada, era o meu romance plasmado na tela." Botelho e a produtora admitem inspiração.


De repente, alguma coisa não batia certo. Em novembro do ano passado, Deana Barroqueiro começou a receber mensagens de leitores que lhe falavam do novo filme de João Botelho. A película tinha-se estreado no primeiro dia daquele mês e os leitores diziam-lhe, através do Facebook, que se tratava de uma versão do romance que a escritora tinha publicado alguns anos antes. Mas ela não sabia de nada.
Começou a pesquisar na internet, encontrou entrevistas e artigos sobre o filme e verificou que o realizador afirmava ter feito uma versão da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto – o mesmo livro que a inspirou na escrita do romance O Corsário dos Sete Mares, de 2012. Ficou espantada. Decidiu ir a uma sala de cinema na zona de Alvalade, em Lisboa, para ver o filme com os próprios olhos. E gostou pouco do que viu.
“Fiquei siderada, era o meu romance plasmado na tela. Senti-me espantada e ao mesmo tempo violada. Aquilo foi um presente envenenado”, classifica Deana Barroqueiro, em conversa com o Observador.
Tenho uma escrita bastante visual e os pormenores que dou no meu livro, as expressões que uso, as personagens, está tudo no filme do Botelho. Ele até segue a ordem dos capítulos do meu livro. Não copiou uma uma pequena coisa. Sem o meu livro, aquele filme não existia.”

“Peregrinação”, de João Botelho, foi financiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, através de um concurso a que o realizador se candidatou em 2015 com um pedido de 600 mil euros. Também a RTP, a Câmara de Lisboa e Câmara de Almada contribuíram para o financiamento. A obra integra uma sequência que João Botelho tem dedicado à literatura portuguesa, iniciada em 2001 com uma adaptação de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, a que se seguiram versões de obras de Agustina Bessa-Luís, Fernando Pessoa e Eça de Queirós.
Em abril do ano passado, o realizador explicou à Agência Lusa que o filme “não é” a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, mas apenas uma parte. “Como se fosse uma introdução à leitura” da obra impressa pela primeira vez em 1614. 
Os documentos distribuídos à imprensa quando da estreia incluem um texto de Botelho onde este explica: “Aceitei de Aquilino Ribeiro a ideia genial e tão justa cinematograficamente de que o corsário António Faria é um heterónimo de Fernão Mendes Pinto. E roubei a Fausto, com a devida autorização, os originais de ‘Por Este Rio Acima’, que o Luís Bragança Gil e o Daniel Bernardes transformaram em polifonias para voz.” O livro de Deana Barroqueiro não é referido.
A autora, de 72 anos, é conhecida por escrever romances históricos, sendo um dos mais conhecidos D. Sebastião e o Vidente, publicado em 2006 pela Porto Editora e do qual se venderam mais de 18 mil exemplares, dizem os números oficiais. Filha de portugueses, nasceu nos EUA, em New Haven, estado do Connecticut, e vive em Portugal desde os dois anos. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, foi professora de português e de literatura no Liceu Passos Manuel e publica regularmente desde a década de 90.
Ao escrever O Corsário dos Sete Mares quis afastar-se do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto e romancear cenários, pessoas e situações.
Li quatro vezes a ‘Peregrinação’ de uma ponta à outra para fazer o terceiro volume da minha saga sobre os Descobrimentos. As cenas que o João Botelho filmou não existem na ‘Peregrinação’, simplesmente não existem. As cenas com prostitutas, a amante, o casamento. É inegável que as foi buscar ao meu livro, mas agora apresenta-as como se fossem de Fernão Mendes Pinto. A Meng foi uma personagem inventada por mim e no filme do Botelho também há uma Meng [interpretada pela atriz Jani Zhao]. ”
A autora entende que o realizador não pode descrever o filme como uma adaptação do livro do século XVII e que deveria ter incluído na ficha técnica uma referência explícita a O Corsário dos Sete Mares”. Acredita que a película “pode induzir em erro” o público, desde logo os estudantes – até porque o filme foi recomendado pela Direção-Geral da Educação.
Não quero dinheiro, estou-me nas tintas para os direitos de autor. Vivo para a escrita, não vivo da escrita. Bastava-me que ele tivesse referido que adaptou o meu romance”, sublinha.


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