01/04/2018

NO JORNAL HOJE MACAU


Cinema
 João Botelho assume plágio de romance histórico no filme “A Peregrinação”
ANDREIA SOFIA SILVA - 29 MAR 2018 
O cineasta João Botelho assumiu o plágio do livro “O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto”, na escrita do argumento do filme “A Peregrinação”, rodado parcialmente em Macau. A autora da obra, Deana Barroqueiro, não esconde a revolta e denunciou o caso na sua página pessoal do Facebook
Afinal, o cineasta português João Botelho não escreveu o argumento do seu filme “A Peregrinação” com base na obra original do escritor Fernão Mendes Pinto, mas sim a partir do romance histórico de Deana Barroqueiro, intitulado “O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto”. O filme foi parcialmente filmado em Macau e ambos os autores estiveram presentes no território a convite do festival literário Rota das Letras.
Foi a própria autora que fez a denúncia do caso na sua página pessoal de Facebook, depois de ter recebido uma carta de João Botelho, também endereçada à sua editora, Casa das Letras/Leya.
Na missiva, o cineasta explicou que tentou, durante meses, contactar Deana Barroqueiro, mas que nunca conseguiu. “Sou o autor do filme “A Peregrinação” e durante meses, nesta ‘arte de vampiro’ que é afinal o cinema, li, consultei, adaptei e reescrevi cenas para a minha curta adaptação da vida e do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto. Na verdade, o seu romance, o Corsário dos Sete Mares, foi forte inspiração para algumas cenas do filme, as da China”, pode ler-se.
Botelho adiantou ainda que pensou que a autora estaria nos Estados Unidos, pois tentou “contactar a editora e não conseguiu à primeira nem à segunda”. “É evidente que devia ter insistido três, quatro vezes. Mas meteu-se a produção – trabalhosa, longa e difícil. Tive o cuidado de colocar em primeiro lugar nos agradecimentos, no genérico final do filme, o seu nome. É pouco, eu sei. Eu e o produtor aceitamos a sugestão da sua editora para colocar uma cinta com os dizeres: ‘Inclui episódios adaptados do romance O Corsário dos Sete Mares’. Perdoe-me”, conclui a carta.
Na sua resposta, que também partilhou no Facebook, Deana Barroqueiro não escondeu a indignação. “A sua justificação de que não me conseguiu contactar nem à editora Leya é inverosímil, bastava que algum dos seus ajudantes pusesse o meu nome no Google e acharia diversos meios para o fazer – sou figura pública, tenho blogues, várias páginas no Facebook, e-mails e telefones e passo meses sem sair de casa, a escrever; do mesmo modo, a Leya não é uma editora de vão de escada, que não atende o telefone.”
Uma das mais conhecidas autoras de romance histórico em Portugal defendeu ainda, na sua resposta, que o cumprimento dos direitos de autor nem sempre é cumprido no seu país. “João Botelho, se eu vivesse na América, o senhor não se atreveria a usar a minha obra do modo como o fez, porque lá os direitos de autor são sagrados. Em Portugal, as leis existem, mas só são cumpridas por alguns.”
Deana Barroqueiro confessou ainda ter tido conhecimento da situação de plágio depois de ter sido avisada por leitores mais atentos. “Fui alertada por leitores que comentaram a ‘adaptação cinematográfica do Corsário dos Sete Mares’, convencidos de que o realizador usara o meu romance e que eu sabia. Perplexa, fui pesquisar na internet. O primeiro texto/entrevista que li foi o de Nuno Pacheco, no Ípsilon. E passei da admiração ao pasmo. O senhor fala das personagens que eu inventei no meu romance, como se fossem da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. E refere como fontes a obra do próprio aventureiro, as canções do Fausto e a adaptação do Aquilino, de onde tirou a conhecida e rebatida ideia do alter ego de Fernão, sem nunca mencionar o meu livro, que tantas personagens e ideias lhe deu.”
A autora viu o filme e gostou “bastante” dele, mas viu nele todo o romance que escreveu. “Fiquei com a sensação de que o senhor seguiu mais de perto o guião do meu romance (porque de um guião se trata) do que o da Peregrinação, que é confuso e de tal maneira intrincado, que me levou muitíssimo tempo a destrinçar.”
CENAS DA CHINA COPIADAS
Segundo as declarações do cineastas, as partes do romance histórico que mais usou no filme são as que dizem respeito à China. A respostas da escritora nessa matéria é peremptória. “Sabe bem que não foram apenas as cenas da China que adaptou do meu romance ou nas quais se inspirou, João Botelho. A japonesa Wakasa também não existe na Peregrinação, foi com muita pesquisa que encontrei a história e as crónicas japonesas, ficcionei o seu casamento com Fernão, fazendo dela uma espécie de Madame Butterfly.”
A autora dá ainda outros exemplos de plágio. “A ‘Senhora’ adúltera foi também uma ficção minha a partir de um crime do tempo, que encontrei num arquivo e numa genealogia. Até o ‘número mágico nove’, de que fala nas entrevistas, é o leit-motiv do meu livro. Assim, é de facto muitíssimo pouco o seu reconhecimento.”
Além disso, “não há nenhuma namorada ou amante de Pinto na sua obra, só existem no meu romance (exceptuando a rainha da Etiópia)”, sendo que “a violação da chinesa, por António de Faria, não existe de todo na Peregrinação”.
Deana Barroqueiro escreveu também que criou a personagem da amante chinesa, “assim como o nome Meng e os seus amores”. “Inventei-os a partir da menção feita por Pinto aos filhos do português Vasco Calvo – ‘dois meninos e duas moças’ -, no cap. 116 da sua Peregrinação. Ora, a cena que se vê no filme de ‘Meng’ com uma bacia de água perfumada de flores, a lavar as cicatrizes que Pinto tem nas costas, das chicotadas na prisão, é um dos episódios do meu romance que considero melhor conseguidos. A diferença é que João Botelho coloca a cena em Pequim e não na aldeia onde vão viver os portugueses junto à muralha da China, como condenados a trabalhos forçados”, escreveu ainda a autora, que deu outros exemplos.
O caso já gerou reacções nas redes sociais, nomeadamente do escritor Rui Zink, que também esteve no festival literário Rota das Letras. “Por que motivo os gajos que fazem filmes são amiúde tão desrespeitadores para com quem escreve os livros que, ora com autorização, ora surripiando, vampirizam?”, questionou.
“Curiosamente, no teatro acontece menos. Há um desejo de apropriação (já vi cartazes de peças sem nome do autor, e faz-me espécie a moda dos «a partir de», e uma cultura do DJ quase como quase verdadeiro compositor das musiquetas que ‘sampla’) mas é em menor grau. No caso do cinema, o abuso torna-se tão natural como, em tempos idos, o realizador casar com a estrela do filme. É chato”, escreveu ainda Zink.
O HM tentou chegar à fala com a autora, mas até ao fecho da edição não foi possível estabelecer contacto. Nos prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, o filme “Peregrinação” foi um dos nomeados em várias categorias, incluindo a de melhor argumento.

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