23/12/2015

Artigo do JL: Afonso de Albuquerque - Da realidade à ficção

Saiu hoje, 23 de Dezembro, no JL, o meu artigo sobre a palestra que fiz na Biblioteca Nacional, durante o Colóquio sobre Afonso de Albuquerque. Só lamento que o JL siga o odioso Acordo Ortográfico e me tenham "corrigido" o texto com erros. Caso queiram (e tenham paciência) para ler o texto e não consigam na imagem, deixo-vos aqui a minha versão, anterior ao AO:
«Afonso de Albuquerque - Da realidade à Ficção

Em 16 e 17 de Dezembro, o MIL–Movimento Internacional Lusófono comemorou com a Biblioteca Nacional de Portugal, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, o 500º aniversário da morte de Afonso de Albuquerque (Goa16/12/1515) com o colóquio Afonso de Albuquerque, 500 anos depois: Memória e Materialidade, em que reputados historiadores e especialistas analisaram várias facetas do César do Oriente. Eu fui excepção, convidada por ser escritora com dez romances históricos sobre os Descobrimentos.
Escolhi falar de «Afonso de Albuquerque, da realidade à ficção – A matéria de que são feitos os mitos», a partir da sua presença nas minhas obras como personagem literária ou mito.

Os mitos etno-religiosos primitivos eram o modo como o pensamento inconsciente dos povos representou a natureza e o mundo que os maravilhava e atemorizava, não eram uma mistificação deliberada, um engano conscientemente criado com a intenção de manipular e atingir determinados fins, como veio a acontecer nas civilizações modernas. Sempre que há uma crise de identidade ou se pretende despertar o nacionalismo de um povo, os governantes criam mitos político-heróicos destinados a glorificar uma personalidade ou um grupo, como aconteceu no Estado Novo, com a mitificação dos Descobrimentos e de figuras como Afonso de Albuquerque ou Viriato e os Lusitanos, para servirem de exemplo e inspiração aos soldados que combatiam nas colónias. Instrumentos da ideologia de um falso grande Império Ultramarino Português, tais mitos foram usados até à exaustão por Salazar.

Essa mistificação provocou, após o 25 de Abril, a uma rejeição quase visceral dos Descobrimentos, sendo, até há bem pouco tempo, considerado politicamente incorrecto falar ou escrever sobre este período que é dos mais fascinantes e fecundos da nossa História, a todos os níveis: científico, literário, cultural, artístico, transformador da mentalidade e do saber europeus, dando origem à 1ª globalização da Idade Moderna. Um tabu absurdo, pois um povo não pode nem deve apagar o seu passado, embora desagradável, porque essa irradicação terá graves repercussões no seu presente e também no seu futuro, em termos de identidade e de maturidade, porque só conhecendo e compreendendo os erros evitamos repeti-los.
Para contrariar esta corrente, dediquei-me a recriar a saga da Expansão Portuguesa, cujos actantes se enquadram no cânone dos heróis épicos, reclamando para mim o papel de criadora de mitos literários, porque a literatura sem mitos seria uma arte muito árida, um corpo sem alma.

Mas será aceitável a um romancista efabular sobre um ser real, como Albuquerque e fazer dele um mito literário ou deverá cingir-se às regras da biografia histórica?
Usei de ambos os processos na construção das personagens do mundo virtual da minha escrita, segundo a minha concepção de romance histórico, muito próxima das fontes e de acordo com as características individuais do ser real cuja vida me propus recriar.
Concepção que nada tem a ver com a publicação desenfreada de ficção de baixíssima qualidade com rótulo de romance histórico, cujos autores pecam por um desconhecimento total de História, cometendo imperdoáveis incongruências, anacronismos e erros de palmatória, que prejudicam e aviltam um dos géneros mais nobres e exigentes da literatura.

Embora o romancista não deva estar sujeito ao colete-de-forças de fidelidade às fontes e aos documentos, próprio de quem está a escrever uma tese em História, tem o dever de ser fiel ao período ou época que trata, de usar do maior rigor na contextualização da vida e mentalidade das personagens, da linguagem às acções, nas descrições dos ambientes, lugares, usos, trajos, comidas, profissões ou divertimentos. E, sobretudo, não pode deturpar os factos nem cometer erros fora do tempo e dos costumes, porque se o fizer está a enganar, a trair um leitor que quer conhecer um assunto, mas não tem apetência por ler um tratado de História.
Literatura e História são indissociáveis, sendo o romance histórico, quando feito com seriedade e honestidade intelectual, o mais difícil e trabalhoso de todos os géneros literários, tanto mais que, além de divertir o leitor com uma intriga, deve aportar-lhe uma mais-valia em conhecimento sobre os sucessos de uma dada época.

Afonso de Albuquerque, logo após a sua morte, assume um estatuto de herói mítico, quer nos «Comentários de Afonso de Albuquerque», publicados pelo filho Brás, quer nas «Lendas da Índia», do seu escrivão Gaspar Correia, quer nas crónicas oficiais, ao ser glorificado como o Grande Cruzado (que queria arrasar Meca e roubar o corpo de Maomé), o Capitão-mor que pretendeu fechar os mares, o “Terríbil” Governador e Vice-Rei, que cometeu façanhas guerreiras à altura de um Agamemnon ou de um Alexandre, mas também mostrou traços de um ser humano de excepção, como raramente se encontra entre os detentores do poder.

A par da ferocidade com que flagelou os mouros, muitas vezes como represália, nele se reconhece o sentido de justiça com que julgou grandes e pequenos por igual; o governante de visão que promoveu os casamentos mistos, dotou as noivas gentias com dinheiro e terras e proibiu o sati, com castigos às famílias que fizessem morrer as viúvas na pira funerária dos maridos; de uma honradez e lealdade inquebrantáveis que lhe trouxeram o ódio dos corruptos, lhe ganharam a admiração de reis e povos, tanto inimigos como aliados, e deram causa a que morresse na pobreza, apesar dos anos passados na Índia e do seu estatuto de Vice-Rei; a sua revolta contra a inveja e as intrigas dos seus pares; o desânimo e frustração pelas contínuas desobediências e traições dos oficiais sob o seu comando que o impediram de conquistar Adem e completar o seu desígnio; o desgosto e a humilhação, sofridos à hora da morte, por, em vez de ser recompensado pelo rei a quem sempre servira fielmente, se ver caído em desgraça, substituído por medíocres corruptos que ele enviara ao reino sob prisão; o reconhecimento póstumo, no pranto e nas honras que lhe fizeram os gentios de Goa após a sua morte.
Igualmente ou todavia mais apaixonante, para um romancista, é o mistério da sua vida familiar e afectiva de que muito pouco se conhece, do filho Brás que teve fora do casamento e legitimou fazendo-o seu herdeiro.

O meu plano de recriação da saga dos Descobrimentos concretizou-se numa trilogia de romances: «O Navegador da Passagem – Bartolomeu Dias», navegações pela costa ocidental de África e Brasil; «O Espião de D. João II –Pêro da Covilhã», viagens pela Arábia, Índia, África Oriental e Preste João; e «O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto», com as suas peregrinações pelo Oriente longínquo. Personagens excepcionais, porém das mais injustiçadas pelos seus compatriotas ou mais esquecidas pela História, que me permitiram dar voz ao marinheiro e aventureiro sem nome capaz de chegar primeiro aonde mais ninguém ousara e de fazer o que antes mais ninguém fizera.

No 3º volume da saga, pude inserir uma micro-narrativa de Afonso de Albuquerque, feita em várias analepses, por diferentes personagens que se cruzam com o andarilho Fernão Mendes Pinto.
No reino do Preste João. Afonso de Albuquerque é evocado pelo feitor Henrique Barbosa, que está a proteger a rainha etíope com um troço de quarenta portugueses. Fala da embaixada de Mateus a Portugal, em 1514, da qual a velha rainha Eleni encarregou Albuquerque que estava na Índia e dos trabalhos por que o Terríbil passou com Lopo Soares de Albergaria, seu inimigo, que o ia substituir, não por merecimento mas por influências.
Durante uma navegação da Arábia ao Malabar, um antigo soldado conta os confrontos de Albuquerque com D. Francisco de Almeida e posteriormente com o “bando de Cochim”, comandado por António Real, o capitão da fortaleza, que não queria ver Cochim substituída por Goa, como capital dos territórios portugueses na Índia. Nos capítulos de Goa, narra-se a conquista da ilha e da protecção que aquele guerreiro tão duro dava às mulheres, libertando as escravas que se faziam cristãs, promovendo os casamentos mistos e distribuindo os melhores cargos e postos da administração aos homens honrados que com elas casassem.

A própria estrutura do romance ajuda à compreensão da personagem, porque cada capítulo começa por um provérbio, seguido de um documento, português ou de qualquer outra nação que tenha a ver com o assunto tratado, sendo usadas cartas de Albuquerque e de António Real a D. Manuel, expondo-lhe a situação, com cuja leitura se pode verificar a inteireza moral do primeiro face à baixeza de vil caluniador do segundo. Ou ainda a sua comovente carta ao rei, ditada à hora da morte.
Ao logo de muitos capítulos o nome de Albuquerque torna-se recorrente, sendo por exemplo recordadas as primeiras embaixadas que ele enviou ao Sião e à China logo após a conquista de Malaca e as várias viagens que ele organizou às ilhas das Especiarias, Banda e Moluco, assim como o naufrágio da Flor de La Mar, à saída de Malaca, em 1511, evocado por Pinto.

A micro-narrativa de Afonso de Albuquerque termina quando, num dos seus aparatosos naufrágios, Fernão Mendes Pinto é feito prisioneiro e condenado a trabalhos forçados na Grande Muralha da China. Em Quansy encontra Vasco Calvo, um português prisioneiro a viver ali há mais de vinte anos, com a sua esposa chinesa e os filhos, que lhe relata a conquista de Goa e Malaca, em que participou juntamente com Fernão de Magalhães e Francisco Serrão.

Sou uma autora que vos confessa ter embarcado também nessa tendência, embora sem intenção mistificadora, para a mitificação dos vultos que admiro, sobretudo quando os comparo com as figuras ditas famosas, da actualidade, que de tão medíocres, poucas ou nenhumas conseguem sequer chegar à altura dos seus coturnos, como diriam as minhas personagens quinhentistas.»

Deana Barroqueiro
(Não escrevo segundo o AO)

15/12/2015

Afonso de Albuquerque, 500 anos depois: Memória e Materialidade

Vou participar, no dia 16 de Dezembro, às 14.30, na Biblioteca Nacional, neste colóquio sobre Afonso de Albuquerque, com uma comunicação a que dei o título (dei 2 à escolha, mas a organização juntou-os): «Afonso de Albuquerque, da realidade à ficção - A matéria de que são feitos os mitos». http://albuquerque500.blogspot.pt/

PROGRAMA

16 de Dezembro Biblioteca Nacional de Portugal
11h00 Sessão de Abertura
11h15 Painel I
Mendo Castro Henriques: «Memória de Afonso de Albuquerque em Portugal»
Luísa Timóteo: «Memória de Afonso de Albuquerque em Malaca»
Teotónio de Souza: «Memória de Afonso de Albuquerque em Goa»
12h45 Debate
13h00 Almoço
14h30 Painel II
Rui Loureiro: «Algumas notas sobre Brás de Albuquerque e os seus "Comentários de Afonso Albuquerque"»
Deana Barroqueiro: «Afonso de Albuquerque, da realidade à ficção - A matéria de que são feitos os mitos»
Roger Lee de Jesus: «Afonso de Albuquerque e o ataque falhado a Adem (1513)»
16h00 Debate
16h15 Intervalo
16h30 Painel III
João Teles e Cunha: «Albuquerque e a “Chave da Pérsia”: ambições e políticas portuguesas para o Golfo Pérsico e Médio Oriente 1507-1515»
Luís Farinha Franco: «Para um relance de Afonso de Albuquerque na historiografia portuguesa»
Miguel Castelo Branco: «Percepções do Islão em Afonso de Albuquerque»
18h00 Debate
18h15 Intervalo
18h30 Apresentação de Obras
«Q - Poemas de uma Quimera», de Octávio dos Santos & outras edições do MIL: Movimento Internacional Lusófono
«Revista Nova Águia» nº 16 & «Revista Finis Mundi» nº 9

17 de Dezembro Palácio da Independência
16h00 Painel IV
Vítor Conceição Rodrigues: «Afonso de Albuquerque, um grande capitão de poucos consensos»
João Campos: «Arquitectura militar de vanguarda no Golfo Pérsico»
Luís de Albuquerque: «Aspectos militares da presença portuguesa no Índico no Século XVI»
Manuel J. Gandra: «O projecto milenarista de Afonso de Albuquerque»
18h00 Debate
18h15 Sessão de Encerramento

Contactos:
Endereço Postal: Sede do MIL - Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa) / Telefone: (+351)967044286 / info@movimentolusofono.org / www.movimentolusofono.org

No PÚBLICO: Porquê recordar Afonso de Albuquerque?

Resultado de imagem para renato epifânio  por Renato Epifânio
Conseguimos entender (entender, não aceitar) alguns argumentos que levam o nosso Governo a não se envolver nalgumas efemérides – neste ano, por exemplo, falamos dos 600 anos da tomada de Ceuta e do 500º aniversário da morte de Afonso de Albuquerque.

A Sociedade Civil, porém, pode e deve suprir esses “esquecimentos” oficiais. Este Colóquio*, promovido pelo MIL: Movimento Internacional Lusófono, em colaboração com a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP), é pois um bom exemplo do papel que a nossa sociedade civil pode e deve desempenhar.
Perguntar-se-á por que o MIL tomou esta iniciativa. Se fosse sensível aos argumentos mais politicamente correctos, não o deveria ter feito. Amiúde, o MIL é acusado de ser “neo-colonialista”. Ao promover um Colóquio sobre uma das figuras maiores da nossa expansão marítima, até parece que estamos a dar razão a esse tipo de acusações.

Em geral, como Presidente do MIL, nem sequer me dou ao trabalho de rebatê-las. Talvez de forma ingénua, acredito que qualquer pessoa minimamente lúcida concluirá que uma acusação como essa é ridícula, não merecendo por isso qualquer esforço de contra-argumentação. É que a questão não se põe sobretudo no plano das intenções. Mesmo que, por absurdo, quiséssemos ser “neo-colonialistas”, haveria um abissal óbice a tal desiderato: nada menos do que a própria realidade.

E este é o ponto. Alguém acredita que, em pleno século XXI, um país como Portugal poderia recolonizar qualquer outro país? Só por delírio. Se defendemos a convergência entre todos os países e regiões do espaço lusófono – nos planos cultural, social, económico e político – não é pois, de todo, por imposição de Portugal (ou de qualquer outro país), mas porque tal desígnio corresponde aos interesses estratégicos de cada um desses países e regiões. Tal convergência não pode senão cumprir-se numa base de liberdade e fraternidade.

Dirão alguns que tal convergência deriva de uma posição completamente idealista, senão mesmo utópica. Diremos, ao invés, que esta é uma posição maximamente realista: a melhor forma de, realisticamente, garantir o futuro da língua portuguesa e da(s) cultura(s) lusófona(s) é promover essa convergência. E isso passa, desde logo, por não fazermos tábua rasa da nossa história. Não há futuro que se possa erguer sobre o esquecimento ou escamoteamento do passado, por mais violento que tenha sido. Ao evocarmos, quinhentos anos depois da sua morte, a figura de Afonso de Albuquerque, fazemo-lo, pois, nessa perspectiva de futuro. Sem complexos ou recalcamentos.

* Colóquio “Afonso de Albuquerque, 500 anos depois: Memória e Materialidade”, Biblioteca Nacional de Portugal/ Palácio da Independência: 16 e 17 de Dezembro de 2015.

12/12/2015

Resumo do Festival Literário de Viseu

11 Dezembro 2015 • Mário Rufino | FOTO: Mário Rufino

O ano de 2015 tem sido prolífico em festivais literários. O poder local parece ter despertado para a literatura. Os festivais sucedem-se e o formato acaba por repetir-se. É difícil trazer algo de novo a uma receita que funciona. Mas a Câmara Municipal de Viseu e a Booktailors (produção executiva) conseguiram-no. Desde passeios guiados por escritores (Miguel Real e Deana Barroqueiro) até ao Dão Party – Vamos brindar (música de Pedro Vieira aka DJ Irmão Lúcia), durante a madrugada, a programação teve mesas de debates, workshops sobre vinho, animações para crianças, jogos sobre literatura, exposições de Paulo Galindro e Afonso Cruz, Poesia no Quarto Escuro e vinho. Muito vinho.


As salas do Solar do Vinho do Dão foram pequenas para a quantidade de pessoas que queria assistir. A mesa mais tardia, que começou por volta da meia-noite no segundo dia, teve sala cheia. No jardim, a enorme tenda foi o local escolhido para os Djs continuarem a festa madrugada adentro.


O Brinde ao Dão, que marcou o início do Vinhos de Inverno, prometeu servir bom vinho e boa literatura durante os três dias de celebração. E cumpriu.

Os comentários apreciativos sobre o "néctar dos deuses" começaram na sala principal, onde decorreu a prova de vinhos, e prolongaram-se nas mesas em que cerca de 20 autores conversaram sobre a ligação do vinho com a criatividade. Não havia debate sem que os convidados brindassem com um copo de vinho do Dão. "Esse magnífico saca-rolhas", como disse Tchekhov, facilitou a fluência dos diálogos. E isso viu-se logo na primeira oportunidade.

Francisco José Viegas (editor da Quetzal), que participou na mesa com José Manuel Fajardo (escritor) e Manuel Carvalho (jornalista do Público), afirmou procurar não "engarrafar má literatura" a propósito da afirmação de Aquilino Ribeiro: "O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos".

Demonstrando apreço por Bolaño, o editor disse ser um adepto da Biblioterapia. O seu sonho era que os livros fossem vendidos em farmácias. Desta forma, cada maleita tinha a devida obra para a cura. Em vez de antidepressivos ou soporíferos, por exemplo, as pessoas levavam livros para a tristeza, ou para a insónia. Assim disse o autor de A Dieta ideal (Quetzal), livro recomendado para "manter o peso (e ganhar algum)", na cidade onde as fatias douradas, os sonhos, o pão de azeite e as castanhas de ovos são encantatórias tentações.


Nas sete mesas de sábado, dia em que se concentrou grande parte do programa, Paulo Moreiras (autor de Pão & Vinho, da D. Quixote) participou em Contos Lendas e Facécias; Alberto Santos (escritor e comissário do Escritaria), Manuel da Silva Ramos (escritor), João Luís Oliva (investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX) e o moderador Tito Couto (Booktailors) conversaram com o mote "se regionalista é ter descrito outra coisa que não Lisboa, não reclamo melhor diploma"; Patrícia Reis (jornalista e escritora) e Fernando Dacosta (escritor) conversaram sobre "Só as ânsias valem porque os triunfos, esses, acabam em bocejos"; Valério Romão (escritor), Rui Cardoso Martins (escritor) dialogaram, com moderação de Pedro Vieira, sobre "Os meus assuntos vou buscá-los à história natural racionalizando-os"; André Domingues (tradutor) e José Silva (crítico de vinhos e de gastronomia) sobre "Nas bocas do mundo", já a madrugada começava com moderação de Tito Couto.

A heterogeneidade das participações deu várias tonalidades aos temas em discussão. Desde o primeiro debate até ao último, o público encheu as salas. Quem mais se entusiasmou com a venda de doces regionais, a prova de vinhos ou a compra de livros, não conseguiu encontrar lugar para se sentar. Nem nas cadeiras nem no chão. A organização optou, posteriormente, por uma televisão no exterior da sala, de forma a garantir a possibilidade de assistir a quem chegava mais tarde. As várias divisões do Solar do Vinho do Dão, nos dois andares, foram preenchidas com diversas actividades. Além dos doces, do vinho e da literatura, houve música para os mais pequenos. Enquanto os pais descansaram nos sofás e nas cadeiras da Sala da Lareira, os filhos sentaram-se no chão, defronte de Carlos Alberto Moniz. O cantautor demonstrou como musicava as suas letras em "Como é que as canções são feitas por dentro?".

O cheiro da lenha, o calor da lareira e a alegria das crianças apaziguaram o frio nocturno. O "néctar dos deuses" aqueceu as almas dos adultos.

Terra e espiritualidade unem-se pelo ciclo do vinho. O Antigo Testamento conta que Noé se embriagou com o primeiro vinho que criou. O primeiro milagre de Jesus Cristo, afirmou o padre Anselmo Borges em conversa com o poeta António Gil, foi a transformação da água em vinho. Conta-se no Evangelho de S. João que durante a celebração de as Bodas de Caná faltou o vinho. Jesus ordenou que se enchesse os vasilhames de água e a dessem a provar. Quando isso aconteceu, o presidente da mesa louvou o noivo por ter guardado o melhor vinho para o fim, em contraste com os costumes vigentes.


"Deus está presente onde há alegria e onde há festa", respondeu Anselmo Borges à pergunta feita por Jorge Sobrado (moderador).

Na filosofia, não é sem propósito que Platão tem em O Banquete uma das suas principais obras e que Pasteur afirma haver mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. Beba-se uma garrafa e Tolstoi e Dostoievski são tema de conversa. Com a segunda garrafa, a beleza alheia e a coragem própria aumentam consideravelmente. Quadruplique-se o consumo e a prosa de Chagas Freitas é mais bela do que a dos mestres russos.

A bebida e a comida acompanham, tantas vezes, a confraternização. Foi à mesa, lembrou o padre Anselmo Borges, que Jesus se despediu dos seus discípulos. É à mesa que muitas famílias se juntam para conversar. E é na bebida e na comida que o ser humano entende muita da sua história. Jesus foi crucificado pelas suas ideias e costumes revolucionários. Um dos seus actos mais subversivos foi o de comer na companhia de prostitutas e de pecadores públicos.
A mesa é parte importante na História das religiões, das nações e dos povos.

De acordo com o chef Hélio Loureiro, que esteve na mesa Ínclita Refeição, com Pedro Vieira (moderador), comer é mais do que um acto de nutrir; é, também, um acto social.


Os rituais dos banquetes de Estado, principalmente no tempo da Monarquia, são exemplos da estratificação social e do jogo de forças entre diversos poderes, sejam políticos ou religiosos.

O muito agraciado chefe de cozinha desmistificou algumas versões "escritas em pedra" na nossa história. Essa desmistificação continuou, no dia seguinte, a ser debatida por Deana Barroqueiro (escritora), Pedro Almeida Vieira (escritor) e Tito Couto (moderador) com o mote "Somos do tamanho dos mitos que vemos".


Mais tarde, na última mesa do Tinto no Branco, Bruno Vieira Amaral, "uma espécie de aspirador de prémios literários" segundo o moderador Pedro Vieira, e Kárla Suarez (escritora cubana radicada em Portugal), conversaram com o mote "Em verdade o Português nunca aprendeu outra coisa que não fosse rezar".


O autor de Aleluia (Fundação Francisco Manuel dos Santos) contou um episódio demonstrativo dos rituais religiosos muito enraizados na nossa cultura, por vezes de forma independente à crença. Na apresentação de A Dieta Ideal, de Francisco José Viegas, Germano Silva, a quem coube a apresentação, contou que a sua avó preparava a massa do pão com as mãos e com uma reza: "São Mamede te levede, São Vicente te acrescente, São João te faça pão".

Os rituais religiosos em Cuba, mesmo antes da Revolução, não estavam enraizados na sociedade. Após a Revolução, a Religião foi substituída pela ideologia. O Natal foi algo que Karla Suárez viu nos filmes e na TV, pois não era comemorado em Cuba. Não havia, na sua infância, liberdades contraditórias com as ideias do regime. O grande território de liberdade da autora sempre foi a literatura. Continua a ser através dos livros que a autora cubana procura entender o mundo.

Bruno Vieira Amaral tem em As Primeiras Coisas (Quetzal) e em Aleluia construções literárias fundadas em situações muito pessoais, mas sempre com o cuidado de comunicar com o leitor. De outra forma, afirmou, escreveria somente como terapêutica e arrumaria os textos na gaveta.

A intensa criação de espaços onde os autores podem conversar com os leitores beneficia todos os elementos, sejam artísticos ou económicos, do universo literário e editorial. O Festival Literário de Viseu – Tinto no branco viu o seu esforço em se diferenciar de outros festivais reconhecido pelo público.

A literatura, a música e o vinho foram as substâncias embriagantes que, durante três dias, romperam com a rotina da cidade de Viriato.

08/12/2015

Afonso de Albuquerque, 500 anos depois: Memória e Materialidade

Vou participar, no dia 16 de Dezembro, às 14.30, na Biblioteca Nacional, neste colóquio sobre Afonso de Albuquerque, com uma comunicação a que dei o título (dei 2 à escolha, mas a organização juntou-os): «Afonso de Albuquerque, da realidade à ficção - A matéria de que são feitos os mitos».

A 16 de Dezembro de 2015 assinala-se o 500º aniversário da morte de Afonso de Albuquerque. O MIL: Movimento Internacional Lusófono, em colaboração com a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP), organiza um conjunto de iniciativas de carácter interdisciplinar que, tomando a efeméride como um oportuno e relevante pretexto, reúne alguns dos melhores estudiosos e especialistas para uma discussão séria e sem limites sobre a vida e a obra daquele que ficou famoso como o «César do Oriente», o «Grande», o «Leão dos Mares», o «Marte Português» e o «Terrível», para uma revisitação da sua época, de como eram a Ásia e o Índico então, e para uma apreciação do legado cultural que foi permanecendo ao longo dos últimos cinco séculos. Tal discussão, revisitação, apreciação, ocorrerá num colóquio a ter lugar, respectivamente, nas sedes em Lisboa da BNP (16) e da SHIP (17), e será complementada por uma mostra documental, na sede em Lisboa do ANTT, entre 18 de Dezembro ee 23 de Janeiro de 2016. Em simultâneo, também em Alhandra, onde nasceu, e no concelho de Vila Franca de Xira de que aquela vila é uma freguesia, o filho mais ilustre da terra merecerá um programa de comemorações especial e específico.


PROGRAMA


16 de Dezembro Biblioteca Nacional de Portugal



11h00 Sessão de Abertura

11h15 Painel I Mendo Castro Henriques: «Memória de Afonso de Albuquerque em Portugal» Luísa Timóteo: «Memória de Afonso de Albuquerque em Malaca» Teotónio de Souza: «Memória de Afonso de Albuquerque em Goa» 12h45 Debate
13h00 Almoço


14h30 Painel II
Rui Loureiro: «Algumas notas sobre Brás de Albuquerque e os seus "Comentários de Afonso Albuquerque"»
Deana Barroqueiro: «Afonso de Albuquerque, da realidade à ficção - A matéria de que são feitos os mitos»
Roger Lee de Jesus: «Afonso de Albuquerque e o ataque falhado a Adem (1513)»
16h00 Debate


16h15 Intervalo

16h30 Painel III
João Teles e Cunha: «Albuquerque e a “Chave da Pérsia”: ambições e políticas portuguesas para o Golfo Pérsico e Médio Oriente 1507-1515»
Luís Farinha Franco: «Para um relance de Afonso de Albuquerque na historiografia portuguesa»
Miguel Castelo Branco: «Percepções do Islão em Afonso de Albuquerque»
18h00 Debate

18h15 Intervalo

18h30 Apresentação de Obras
«Q - Poemas de uma Quimera», de Octávio dos Santos & outras edições do MIL: Movimento Internacional Lusófono
«Revista Nova Águia» nº 16 & «Revista Finis Mundi» nº 9




17 de Dezembro Palácio da Independência

16h00 Painel IV Vítor Conceição Rodrigues: «Afonso de Albuquerque, um grande capitão de poucos consensos» João Campos: «Arquitectura militar de vanguarda no Golfo Pérsico» Luís de Albuquerque: «Aspectos militares da presença portuguesa no Índico no Século XVI» Manuel J. Gandra: «O projecto milenarista de Afonso de Albuquerque» 18h00 Debate


18h15 Sessão de Encerramento


Organização: MIL: Movimento Internacional Lusófono; Biblioteca Nacional de Portugal; Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Sociedade Histórica da Independência de Portugal.Comissão Organizadora: Miguel Castelo Branco, Octávio dos Santos e Renato Epifânio


Contactos:Endereço Postal: Sede do MIL - Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa) / Telefone: (+351)967044286 /info@movimentolusofono.org / www.movimentolusofono.org

30/11/2015

Festival Literário de Viseu - Tinto no Branco

A minha participação no Festival Literário de Viseu - Tinto no Branco será no dia 6, Domingo, às 11 horas, como guia/contadora de histórias durante um passeio de comboio turístico pela cidade, sob o lema "A história e as estórias". 

Nesse mesmo dia 6, às 16 horas, no Solar do Vinho do Dão, estarei à conversa com Pedro Almeida Vieira e Tito Couto sobre o tema "Somos do tamanho dos mitos que vemos".


21/10/2015

18/10/2015

Quem semeia ventos recolhe tempestades

Esta “coligação negativa” é a resposta à outra “coligação negativa”, a do PSD-CDS, que assim funcionou nos últimos quatro anos.

1. Quem semeou os ventos do modo como se respondeu na Europa à crise financeira e bancária, dos produtos tóxicos e dos bancos perto da falência recolheu a tempestade de uma “economia que mata”. Os bancos foram salvos, pelo menos para já, mas o crescimento estagnou ou andou para trás, as diferenciações sociais agravaram-se, o desemprego cresceu exponencialmente, os salários baixaram, os direitos laborais diminuíram, quando não foram extintos, as disfunções sociais agravaram-se. Todas. Veja-se a “crise dos refugiados”, espelho do estado da Europa.
2. Quem semeou os ventos da passagem da crise tóxica dos bancos para a “crise das dívidas soberanas”, uma invenção política alemã cujos efeitos perversos alargaram e aprofundaram a crise nos países do Sul, mas também em França, recolheu um reforço do poder de Merkel e Schäuble, o fim do directório com a França e o poder único de Berlim e dos seus mais directos aliados, e uma fractura entre duas Europas cujos efeitos estão apenas no início. A Europa já não é o que era e muito menos é o que se desejava que fosse. É um poder cinzento e duro, afastado de qualquer esperança e que serve para pôr na ordem povos que se arrogam de querer outra coisa.

3. Quem semeou os ventos de uma Europa assente na política de Diktat, de imposição de acordos cegos e desiguais, quem estiolou tudo à sua volta, quem levou a Europa a abandonar regras democráticas, entregar os poderes dos parlamentos nacionais aos burocratas de Bruxelas e aos políticos de um Partido Popular Europeu cada vez mais conservador e à direita recolhe fenómenos como a crescente sensação em muitos países de que a sua soberania deixou de ter sentido e de que, com ela, se perde a democracia que só a proximidade permite, o acentuar da crise profunda dos partidos socialistas e da sua posição de mandaretes do PPE, e efeitos como o do Syriza e a vitória, num dos mais importantes partidos socialistas da Europa, de pessoas como Jeremy Corbyn.

4. Quem semeou os ventos de uma ideia autoritária e antidemocrática do “não há alternativa”, afastando do direito ao poder assente no voto todos os que faziam parte de partidos e movimentos remetidos para o “inferno” de estar fora do “arco de governação”, excluiu milhões de europeus que votam “errado” de sequer terem o direito de poderem governar sem serem sujeitos a humilhações, como aconteceu com os gregos e dividiu os partidos como sendo de primeira (os que aceitam que “não há alternativa” e fazem a política económica e social da direita) e de segunda, centristas críticos da Europa, sociais-democratas, socialistas, esquerdistas diversos, comunistas, excluídos da democracia, em que votar não significa nada, porque estão “de fora” do euro e das “regras europeias”.

5. Quem semeou os ventos de que nada há a fazer porque “não há alternativa” recolheu uma enorme instabilidade dos sistemas políticos, com a perda muito significativa dos votos nos partidos do “arco da governação”, mesmo que ainda estejam no governo, uma crescente ingovernabilidade, e o ascenso de movimentos de contestação do actual estado de coisas de natureza muito diferente. Ainda não se deu uma clara ruptura, mas os partidos do “não há alternativa” têm cada vez menos votos. E a abstenção cresce, assim como várias manifestações de contestação do sistema democrático e da “classe política”, e uma deslegitimação acentuada de governos, parlamentos, partidos e presidentes.

6. Quem semeou os ventos da arrogância, de um governo que não ouviu ninguém e não falou com ninguém, que recusou qualquer entendimento com o PS na aplicação do memorando, a não ser aqueles que se destinavam a dar caução às suas políticas impopulares, que fez o que queria, muitas vezes na ilegalidade, fora da Constituição e da lei, outras vezes na fronteira da legalidade, que mais do que ninguém embateu em sucessivos vetos do Tribunal Constitucional, que substituiu a boa-fé do Estado pela má-fé e pelo dolo, que, sem hesitar, quebrou contratos com os mais necessitados, ao mesmo tempo que lembrava a intangibilidade dos contratos com os mais poderosos, quem transformou o fisco numa máquina sem lei que não respeita ninguém (como antes Sócrates fez com a ASAE), quem acusou os outros de serem “piegas”, de terem culpa por estarem desempregados, de serem velhos do Restelo, antiquados e fora da moda do 

“empreendedorismo”, quem dividiu velhos e novos, empregados e desempregados, funcionários públicos e outros trabalhadores, quem mentiu (e mente) descaradamente a todos sem pudor nem desculpa recolheu a tempestade de um número significativo (e maioritário) de portugueses não os querer ver nem pintados. A herança de radicalização que deixaram dividiu como nunca o país e os portugueses e permitiu que uma parte maioritária daqueles cujo único voto se pode somar – os que votaram contra o Governo – sejam capazes de quase tudo para não os deixar governar, mesmo correndo imensos riscos. O impulso que permite sequer imaginar que possa haver um acordo PS-BE-PCP, uma mudança abissal da vida política portuguesa, fechando quarenta anos de discórdia e exclusão, não é sequer o da esquerda versus a direita, mas apenas pura e simplesmente o de “nem pensar em vê-los lá de novo”. O PS, que podia ter compreendido isto e ganhado as eleições, andou a pedir licença para ser bem visto nos salões da coligação e obviamente perdeu-as.

14/10/2015

Entrevista no Açoreano Oriental

Deana Barroqueiro A escritora falou-nos da nova edição do seu romance histórico, publicado com a Leya, de nome “O espião de D. João II”

“A  nossa  História e Literatura são riquíssimas”

PATRÍCIA CARREIRO - oriano Oriental


Acaba de sair uma nova edição de “O espião de D. João II”. O que nos pode contar sobre o mesmo?
Escrevi uma trilogia de romances sobre os Descobrimentos Portugueses, que é um dos períodos mais fascinantes da nossa História. Iniciei a saga com “O Navegador da Passagem”, que narra, entre outras, as viagens de Bartolomeu Dias até ao cabo de África e o achamento do Brasil, na corte de D. João II e de D. Manuel; seguiu-se-lhe “O Espião de D. João II”, com a odisseia de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva por três continentes, em busca das especiarias e do Reino do Preste João; o 3º da saga foi “O Corsário dos Sete Mares” com as viagens dos portugueses, e em particular de Fernão Mendes Pinto, por terras do Oriente longínquo.
“O Espião de D. João II” é uma reedição, revista e aumentada, porque as três anteriores esgotaram. Pretendi com esta trilogia recriar um dos mais espantosos empreendimentos europeus (na verdade é a 1ª globalização da modernidade), segundo o olhar e as experiências das personagens que a viveram, com muita atenção à contextualização e ao pormenor e dando a cada romance uma estrutura diferente, relacionada com a escrita e tipologia das obras da época, para que o leitor possa fazer uma verdadeira viagem no tempo, na companhia dos seus antepassados.

Diz-se que Pêro da Covilhã é uma personagem da História Portuguesa não muito valorizada. Porquê?
Pêro da Covilhã fez uma das viagens mais extraordinárias do seu tempo. Nos finais do século XV, e durante cerca de seis anos, viajou sozinho (depois da morte de Afonso de Paiva) por três continentes – Europa, África e Ásia –, a fim de espiar e traçar uma derrota por terra até as especiarias da Índia, missão que concluiu com sucesso. Descobriu ainda na Etiópia o reino do Preste João, o mítico imperador cristão do Oriente que toda a Cristandade procurava há mais de 200 anos. Um feito extraordinário, reduzido a uma curta frase e uma data nos livros de História do meu tempo. Foi por ver como este grande homem era injustamente esquecido e desconhecido dos portugueses que o quis trazer à vida. 

Foram necessárias 566 páginas para bem narrar esta história. Qual foi a maior dificuldade que encontrou no seu percurso de escrita?
Não é possível escrever pouco com o tema dos Descobrimentos, que é de uma riqueza e variedade avassaladoras. A dificuldade maior está na escolha dos temas, pois apetece-me contar aos leitores as centenas de histórias que vou descobrindo, na pesquisa de mais de três anos que faço para cada romance, e que me deixam maravilhada.

Viajamos ao Oriente no século XV ao ler este livro. Como pode definir, em breves linhas, esta viagem?
Pêro da Covilhã é uma personagem solar, um grande aventureiro, guerreiro e espião que vai explorar mundos adversos, mas também fazer uma viagem iniciática, uma espécie de “busca do graal”,  que é esse reino do Preste João das Índias. 
Por isso dei ao livro a estrutura de um romance de cavalaria, recriando os mundos estranhos e maravilhosos que este nosso cavaleiro andante vai desvendando e que procuro recriar de forma verosímil, sempre com base nas crónicas e outras fontes históricas do seu tempo e também atuais.

É conhecida por escrever romances históricos. O que a motiva a escrever neste estilo?
O romance histórico sério permite dar ao leitor algo mais do que uma história ou uma intriga, por muito boa que seja. Oferece-lhe uma mais-valia de conhecimento sobre épocas, lugares, costumes, vidas e personagens, que só encontraria em obras académicas. 
O escritor de romance histórico precisa, por isso, de despender muito tempo de estudo, pesquisa e reescrita, isto é, tem de trabalhar muito mais do que se escrevesse uma obra de ficção contemporânea ou de pura fantasia, porque tem o dever de não enganar o leitor e, portanto, precisa de conhecer a fundo a
época e os acontecimentos sobre os quais escreve, desde a comida, aos trajos, sucessos, ideologias, etc.

A História do nosso povo tem sido tema de vários romances. Os portugueses precisam de ser relembrados da sua História?
Sem dúvida: para que passem a admirar mais o que é do seu país e do seu passado coletivo, enquanto povo de uma nação com milénios de existência e não se deslumbrarem tanto com “o que vem de fora”. A nossa História e Literatura são riquíssimas, das mais apaixonantes e antigas da Europa, mas os portugueses conhecem-nas pouco e mal, muitas vezes fazem gala em desprezar aquilo que, no fundo, ignoram. 
Ou têm ideias pré-concebidas e deformadas sobre factos e figuras problemáticas, como D. Sebastião. Espero contribuir um pouco para minorar esse desconhecimento, apesar de as minhas obras serem de ficção, com muita fantasia e não livros de História.

Além de escritora, quem é a Deana Barroqueiro?
Apesar de aposentada, creio que nunca deixarei de ser professora e também uma estudante que não se cansa de estudar e de aprender sempre mais; mas sou, acima de tudo, uma compulsiva contadora de histórias (da nossa História). Sofro de uma espécie de “síndrome de Joana d’Arc”, ou seja, tenho o vício de me bater contra a injustiça e pelas causas perdidas, e fá-lo-ei até morrer, porque o escritor deve ser interventivo na sociedade em que vive. Estabeleço sempre que possível paralelos e comparações entre o passado e o presente, denunciando os erros e os crimes, para que não se repitam. 
Escrever, para mim, é tão necessário como respirar.

10/10/2015

Isto é o que vale Alexandre Quintanilha

Que José Rodrigues dos Santos me desculpe, mas comparado com este Senhor, não passa de uma "cigarrazinha cantante". Uma entrevista longa, mas que vale a pena ler até ao fim, como um romance.

 Alexandre Quintanilha: "A minha droga mais potente é o vinho do Porto" 

Alexandre Quintanilha: "A minha droga mais potente é o vinho do Porto"
 por João Céu e Silva, 09 agosto 2015
Fotografia © Orlando Almeida / Global Imagens
As últimas notícias sobre o físico e biólogo tinham sido sobre a sua última aula, que iria ser dada a 3 de julho. Pediu-se-lhe uma entrevista, pois não era uma data qualquer nem se podia deixar o professor fora de uma série de entrevistas como estas.

Combinada a conversa, eis quando as últimas, mesmo as últimas notícias, davam o docente universitário como cabeça de lista do Partido Socialista no Porto... Surpresa total, mesmo que já tivesse tido atividade política anterior. Estava alterado o rumo da conversa, pois não seria apenas sobre moléculas, planetas, experiências científicas, mas também sobre a responsabilidade da vida pública.
Alexandre Quintanilha tem uma qualidade enquanto entrevistado, a de falar serenamente e explicar-se de forma clara sem precisar de gastar muitas palavras. Mesmo que aprecie alongar-se nos vários temas sobre a mesa por verdadeiro prazer em desenvolver as ideias. Como já tinha avisado que tinha um comboio para apanhar e não queria falhar a viagem de regresso ao Porto, cada vez que se distraía no fluxo das palavras havia uma justificação para o interromper. Afinal, terminada a entrevista, ainda se estava a arrumar o equipamento fotográfico, já o táxi estacionava para recolher o passageiro.
Alexandre Tiedtke Quintanilha nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo) num agosto de há 70 anos. Licenciou-se em Física Teórica em 1968 na Universidade de Witwatersrand (Joanesburgo) e doutorou-se em Física do Estado Sólido em 1972 na mesma universidade. Exerceu a docência na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde foi diretor do Centro de Estudos Ambientais. Teve vários cargos até regressar ao Porto, onde dirigiu o Centro de Citologia Experimental, e foi professor no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. É casado com o escritor Richard Zimler.

Nos tempos em que a clonagem era um tema quente, anos 2000, afirmou que não queria ser clonado. Já mudou de ideias entretanto?
Não. Não mudei de ideias... [pausa] Vamos lá ver [outra pausa]... Não é o desejo de não querer ser clonado porque se o for sem saber não me preocupo. Imagine-se que ficam com células minhas que possam dar origem a um novo ser, isso não me deixaria melindrado.

Mas conscientemente não?
Não tenho interesse nenhum em vir a ser clonado porque a ideia que está por trás do clonado é a de uma vida eterna - clona-se um, depois clona-se outro. O problema é que ninguém sabe se isso é verdade porque há muitas dúvidas ainda sobre o clone. Portanto, não tenho minimamente esse desejo. Até nem tenho vontade de viver mais do que 80 ou 90 anos. Não me interessa.

Confesso que pensei na pergunta quando desconhecia que se ia clonar uma personagem política...
Ah! [risos]

O Quintanilha que vai para a política também não é um clone?
Não, sou eu. E para mim é uma situação nova. Tive uma pequenina experiência enquanto vereador na Câmara do Porto, que não foi uma experiência entusiasmante.

Renunciou rapidamente, não foi?
Logo a seguir porque vi que não estava a fazer grande coisa na câmara. Havia uma maioria absoluta que tomava as decisões todas e nós podíamos pronunciar-nos mas sem impacto no processo. Nem tinha nada para desenvolver que fosse da minha responsabilidade, o que até achei estranho pois podiam ter-me pedido que ficasse à frente de uma área do conhecimento. Não pediram... Acho que os jogos políticos são assim - e saí.

E desta vez aceitou por que razão?
Acho que fui convencido com muitas coisas que se juntaram. Acabei de dar a minha última aula de jubilação e sentia-me muito livre para poder fazer tudo aquilo que gostaria. Só que no dia a seguir o António Costa veio ao Porto, falou comigo e disse-me que tinha percebido que eu estava com uma enorme disponibilidade, desafiando-me para encabeçar a lista do partido no Porto. Reagi da forma normal: "Não tenho experiência política nem sei se era isso de que estava à espera para fazer. Portanto, vou ter de pensar."

Foi realmente inesperado, porque até referiu que poderia ir fazer um curso de Arquitetura...
Era uma possibilidade, mais do que um curso era assistir a algumas aulas e aprender qualquer coisa.

Mas António Costa convenceu-o?
Convenceu-me por uma coisa muito simples. Ele disse que o povo tem uma confiança cada vez menor nos políticos e uma pessoa que não tem o rótulo político, com trabalho feito e que demonstrou estar preocupada com questões sociais e humanas, podia ser uma forma de rejuvenescer. Achei a explicação muito inteligente e concordo.

Não é uma missão complexa?
É muito complexa e até acho que o ano a seguir às eleições vai ser muito complicado.

Começa por ficar sem férias...
Em parte. Só vou começar a fazer alguma coisa a sério em setembro. Neste mês não sei se vai acontecer muita coisa, depois já percebi que vai ser muito envolvente.

Tem criticado muito a situação!
Tenho sido bastante vocal nos últimos tempos em relação ao meu descontentamento com a falta de liderança que existe na área do conhecimento. Fui dos primeiros a contestar muitas das decisões e a alertar para os perigos à nossa frente, daí que numa altura em que me é dada uma oportunidade de poder fazer a mesma coisa num sítio onde o impacto pode ser maior passa a ser uma obrigação. Não se pode andar apenas a criticar.

Irá para um hemiciclo que o povo considera muito fraco. Concorda?
Temos de começar em algum sítio, e talvez a introdução de algumas pessoas possa ajudar. Também ninguém sabe se haverá maioria absoluta ou como é que as forças políticas se vão entender. Sou uma pessoa que acha que não é só em Portugal que há problemas sérios de confiança em relação à política e aos desenvolvimentos políticos que estão a acontecer. As pessoas estão a desinteressar-se cada vez mais, por isso é necessário mudar.

E considera-se um dos que podem ajudar a alterar a descrença?
Não sei se vou ser capaz, porque sou virgem nesta área. A política é uma coisa complexa e tem uma história que não conheço. Também sei que nas universidades existe muita política interna e muita gente a pregar rasteiras ou a dizer aquilo que não pensa.

No entanto, a tragédia portuguesa não está próxima da grega?
Não. Um continente que se descreve como herdeiro de conceções cristãs e está a humilhar a Grécia desta forma escandalosa é coisa que não consigo perceber. Eles fizeram muitos erros, podem não ser de confiança... É estranho que as nações humilhadas sejam aquelas que humilham ainda mais as outras em vez de aprenderem com o desastre. Parece mais um revanchismo.

É o que se passa com a Alemanha?
Tenho a sensação de que a Alemanha, que passou por momentos muito difíceis como o da reunificação, deveria ter mais sensibilidade para o que é humilhar e espezinhar.

Falando de humilhação. A sua opinião é a de que os portugueses também o foram nos últimos quatro anos de forma muito violenta?
Foram. Foram.

Mesmo assim não teme a reeleição desta coligação?
Não sei. Tenho muito pouco jeito para profeta.

Ponderou a hipótese da coligação?
Não pensei muito nisso. Aquilo sobre o que tenho pensado muito é que há momentos na nossa vida em que somos sujeitos a uma enorme austeridade. Quando fui para os Estados Unidos não tinha salário nos primeiros seis meses, vivia dos três mil dólares que levara. E passei por momentos muito complicados. Por isso, a austeridade pode incomodar menos a maior parte das pessoas se for para todos e não como o que está a acontecer no mundo, e mais recentemente em Portugal, em que 0,1% da população está a ficar cada vez mais rica enquanto 99,9% das pessoas estão sob austeridade.

Há pouco disse era um virgem nestas coisas da política...
Sou um pouco.

Vai tentar perder a virgindade política antes das eleições?
Há uma área em que ainda sou virgem, a das drogas. Nunca fumei nada nem tomei nada. A minha droga mais potente é o vinho do Porto. Quanto à política, eu vou aperceber-me do que me espera e as pessoas também não me veem a obedecer às ordens do Partido Socialista - como já se escreveu, aliás.

Até onde conseguirá ir?
Existem determinadas questões em relação às quais tenho princípios éticos que não me permitem ultrapassar a barreira. Sinto que vai haver da parte de todos uma necessidade de discutir os assuntos até ao ponto em relação ao qual eu não conseguirei abdicar. E não abdicarei, é muito simples.

Os partidos não gostam disso.
Se o partido achar que isso não é aceitável, vou-me embora. Sei que há muitas áreas na política, como em todas as coisas, em que tem de haver compromissos. Não sou aquele que tem a verdade toda na cabeça. Tenho imenso medo das pessoas que acham que sabem tudo, aliás tenho muito mais dúvidas do que certezas. Portanto, mesmo na política, vai ser a mesma coisa. Vou ter de balançar as variáveis e as incógnitas porque isto é o que faz um cientista.

Politicamente não irá viver acima das suas possibilidades!
Creio que não. Acho que não só não sei viver acima das possibilidades como pretendo adotar uma atitude inicial de precaução. Vou tentar perceber o que é que se está a passar e aprender muito.

Então, sempre vai fazer um curso de Arquitetura, só que de arquitetura política?
Sim, é isso mesmo.

Sexualmente tem um posicionamento muito conhecido. Acha que os eleitores do Porto vão aceitar isso no seu cabeça de lista?
Como já disse, tenho muita dificuldade em ser profeta. Creio que pela forma como vivi estes vinte e tal anos em que estou no Porto transmiti uma noção do que sou. Acho que deixei as pessoas conhecerem quem sou. Não há nada que esteja escondido, não tenho esqueletos no armário, e digo sempre aquilo que penso. E há uma outra coisa muito importante: não devo nada a ninguém nem quero trepar pelo sistema político. São duas condições que devem apaziguar os que estão à minha volta. Não é isto que vai finalmente dar ao Alexandre Quintanilha aquilo que ele queria. Não andei à procura disto, aceitei porque é um dever cívico.

Logo após as eleições legislativas vêm as presidenciais. Já formou opinião sobre o candidato?
Não, não formei.

Não tem um candidato, nem o professor Sampaio da Nóvoa?
Eu ouvi um discurso do Sampaio da Nóvoa no Porto e gostei do que ouvi. Mas não tenho opinião formada, até porque não sei quem são os outros candidatos.

Percebeu o discurso dele?
O Sampaio da Nóvoa é uma pessoa da universidade e percebo melhor a sua linguagem. Ou seja, também aí preciso de uma aprendizagem política para compreender o que está nas entrelinhas.

No caso do desinvestimento na ciência não pode alegar desconhecimento. O que vai fazer?
Penso que na área do conhecimento em geral, não é só na ciência, havia quando cheguei a Portugal uma fase de enorme esperança e entusiasmo, principalmente devido à atuação do José Mariano [Gago]. Mas não só, houve outras pessoas que o ajudaram, e o que estava a acontecer tinha uma trajetória em que se transmitia aos portugueses que o conhecimento não só não era um luxo como estava na base da cidadania. Para sabermos quem é que queremos ser e em que sociedade queremos viver precisamos de conhecimento, não é só em engenharia, saúde, física ou química... Não. Provavelmente temos um número muito pequeno de livros, filmes e experiências que nos mudaram a forma de olhar para o mundo e para nós próprios. Aquilo que o Zé Mariano fez foi encorajar todas as áreas do conhecimento para que crescessem e teve outra decisão mais importante, que era a Ciência Viva, uma aposta para o futuro em miúdos de 4, 10 ou 15 anos, que começaram a chegar às universidades com essas experiências.

Com a diminuição do orçamento não é esforço deitado para o lixo?
A questão que se põe é a seguinte: numa área em que Portugal estava a ter sucesso e em que o investimento público para a ciência continuava a ser relativamente reduzido - nunca chegou a 1% -, tal como o investimento privado nunca ultrapassou 1%; que estava a funcionar muito bem e era reconhecido e invejado por muitos países, porquê fazer alterações drásticas?

Não se deveria ter interrompido esse investimento?
Percebo que os governos têm o direito de reorientar o investimento mas porquê numa das poucas áreas em que Portugal estava a ter um sucesso indiscutível? Creio que houve muito aquela discussão de que estávamos a fazer bastante ciência aplicada e pouca ciência fundamental. Isso é um mito, porque estas duas ciências não são diferentes. Se se estiver a fazer ciência aplicada muito boa, imediatamente precisaremos de ciência fundamental para dar as bases e vice-versa.

É uma questão de mentalidade?
É preciso não esquecer que estamos num país que teve 300 anos de Inquisição e 48 de ditadura. Que teve instabilidade política entre esses dois tempos. Fica difícil querer em 20 anos mudar a cultura portuguesa, tornar as pessoas curiosas e imaginativas quando durante esses séculos tudo o que era imaginativo e curiosidade foi coartado. Não se faz uma mudança destas numa geração. Não se faz! Podemos gostar de que os nossos filhos em vez de estudarem a espirogira estejam a fazer relógios no quintal. Isto leva tempo porque é uma alteração cultural, além de que deve ser implantada com insistência em vez de se impor. Dizer quais são as áreas em que se deve ser bom é um disparate total. Até porque não sei se nós somos bons em alguma coisa.

Não existe uma ilusão exagerada sobre o potencial nacional ao nível de cientistas?
Não. Poderá existir no sentido de que estamos convencidos de que o processo que estava a ser desenvolvido ia criar instituições robustas - porque nós temos muito poucas ainda -, ou uma atitude em relação ao conhecimento que seria de não só manter algumas pessoas nessas áreas mas atrair gente de fora.

Mesmo quando se vê tantos portugueses a partir?
Não vejo problema em que as pessoas se vão embora. Eu fui-me embora durante 30 anos da minha vida.

Não há fuga de cérebros, nem o conselho do primeiro-ministro teve qualquer efeito?
Não tenho medo algum da fuga de cérebros. Acho muito bem que vão para outros sítios - só lhes faz bem -, ver outras situações em vez de só comerem o caldinho de galinha de manhã e o bacalhau não sei de quê ao almoço. Devem perceber que há outras formas de estar no mundo e de viver. Isso é ótimo. O que lamento é que deixámos de transmitir a ideia de que existem estruturas robustas que podem atrair outras pessoas. Não nos iludamos se vier meia dúzia de pessoas para cá, porque aquela ideia de poder chegar gente muito capaz, que substitua os cérebros que estamos a perder, não existe.

É rara a semana em que não ouvimos uma notícia sobre um prémio ou um financiamento extraordinário concedidos a cientistas portugueses. O que se passa?
Exato. Não só temos pessoas muito boas como também apareceram instituições. E acho muito bem que sejam avaliadas. Mas muitas dessas instituições estão agora a sentir uma fragilidade enorme porque, primeiro, têm dificuldade em atrair pessoas de fora. Segundo, com isto não se quer dizer que não tenhamos gente também muito boa no país. O problema é que a ciência hoje em dia é universal e necessita de pessoas com ideias e imaginação diferentes, que venham misturar-se connosco. E não é só na ciência, é em tudo.

Como é que fica o orçamento?
Considero que para fazer o necessário não é preciso triplicar ou quadruplicar o investimento na ciência. A política em curso é uma política em que as pessoas decidem quais são as áreas em que querem apostar e eu acho que isso é adolescente. Por outro lado, também acho que esta noção de excelência tem o risco de acabarmos por ter na sociedade do conhecimento a mesma coisa que está a acontecer na sociedade em geral: temos 0,1% que tem tudo e 99,9% que tem cada vez menos para produzir. Essa é a receita para o desastre! E não estou a pensar que se tem de quadruplicar o financiamento, até porque não se reduziu assim tanto o financiamento para a ciência.

Como assim?
Nos primeiros três anos disseram que não tinham reduzido nada, que até aumentaram. Não era bem verdade, mesmo que agora no fim haja alguma diminuição. O que quer dizer que se voltássemos à curva em que estávamos, a par do continuar do investimento privado, poderíamos continuar numa trajetória menos acelerada que confirmava, para o mundo em geral, para os nossos jovens e para os de lá de fora, que Portugal continuava a apostar na ideia de que o conhecimento é essencial.

Nestes últimos meses, o ministro da Educação não tem tentado passar a ideia de que essa busca pelo conhecimento se mantém?
É óbvio que quando se aproximam as eleições há toda uma série de rebuçados que nos são oferecidos. Todos os partidos fazem isso. Quer dizer, quando tem de haver austeridade carregam muito nos primeiros dois ou três anos, às vezes até de mais, para no fim darem uns rebuçaditos. Porque a memória das pessoas é muito curta.

Acredita que continuamos a ter uma memória curta?
Os portugueses já se esqueceram... Dou um exemplo: o meu salário foi cortado em 30%. Eu nem me importaria que tivesse sido cortado em 30%, agora gostaria que esses 30% que foram cortados não acabassem no 0,1% que está rico. Gostava que fossem mais bem utilizados no processo.

Deu há pouco mais de um mês a sua última aula. Já sente saudades de preparar e dar aulas?
Eu não sou muito de saudades, nem nunca tive muitas saudades. Quer dizer, tenho saudades de pessoas mas não de sítios, porque acho que os lugares são para ser descobertos.

Pode dar um exemplo?
Não gosto, por exemplo, particularmente de Lisboa. Odeio o calor de lá e nem quero pensar que tenho de estar em Lisboa dias seguidos e que vou estar fechado em sítios onde haja ar condicionado. Talvez seja porque também não conheço bem a cidade, afinal todos os meus amigos estrangeiros acham Lisboa um sítio fabuloso. Eu gosto imenso de Nova Iorque, de São Francisco, de cidades, mas acho que todos os sítios têm encantos para serem descobertos. É como as pessoas.

Nem tem saudades de Moçambique?
Não. Não tenho saudades. Se me dissessem: "Agora vai viver para Maputo." Não tenho qualquer intenção de o fazer porque penso que voltar ao passado é coisa que não existe. É como as pessoas agora estarem a dizer - é muito usado em política - que se voltar o PS é voltar ao passado. E é impossível voltar ao passado, porque já passou muito tempo e há muitas coisas a acontecer.

Nem saudades dos últimos anos na universidade?
Aprendi muito e crescei bastante durante estes anos que estive em Portugal a ensinar. Tive experiências fabulosas. Por isso, a última mensagem que recebi dos meus alunos comoveu-me imenso. Eles deixaram ficar um bilhete em que diziam: "Obrigado professor por nos ensinar a distinguir o verdadeiro do óbvio." E não consigo pensar em frase mais profunda do que esta, porque o que queremos na nossa vida é saber distinguir o verdadeiro do óbvio. E que esta mensagem venha de miúdos de 18 anos ainda é mais extraordinário. Isto não é uma geração rasca! É uma geração extraordinariamente madura para a idade. Às vezes até tenho pena porque são maduros de mais.

Nega que a atual geração de estudantes seja uma geração rasca?
Nada! Quer dizer, há bons e maus como em todo o lado. Antigamente achava-se que quando os alunos vinham conversar com o professor era para dar graxa. Eu nunca senti isso, porque também gosto de manter uma certa distância. O facto de chegar ao fim e ter estas palavras escritas num bilhete até me fez chegar as lágrimas aos olhos e disse para mim o seguinte: "Como professor, não consigo pensar numa recompensa mais importante do que isto."

Participou numa conferência sobre os 40 anos do 25 de Abril e escolheu como tema a "Potenciação Cognitiva: Desafios Futuros". Não é uma abordagem estranha?
Ainda bem que se estranha. O que é a potenciação cognitiva? O melhor exemplo é o da educação. As pessoas passam 20 anos a estudar porque se acha que melhora a forma de pensar, mas agora existem novas tecnologias que podem ser usadas e que estão a ser testadas como terapia, por exemplo, no mal de Parkinson. Imagine-se que um dia é possível colocar um chip no cérebro e que através dele se tem a possibilidade de transmitir pensamentos sem usar telemóvel ou computador. Isto é melhoramento.

Essa intrusão no cérebro não é perigosa?
Perigosíssima, mas já estão a estudar isso. Tive um aluno no Porto, que esteve a trabalhar nos Estados Unidos, onde fizeram experiências com chips em ratos. E eles conseguem que a aprendizagem de um ratinho seja comunicada a outro através do chip. Tal como juntar vários ratos para resolverem problemas em conjunto através da comunicação de chips. Isto ainda é um mundo de ciência e ficção mas quando apareceu a anestesia também era considerada uma coisa muito perigosa.

Não representa um controlo cada vez mais total das pessoas?
Hoje em dia há muitas empresas que antes de contratarem os funcionários querem ver a imagem de ressonância magnética do cérebro. E há quem diga que o copiloto alemão da German Wings não teria despenhado o avião nos Alpes franceses se tivesse havido uma ressonância magnética. Não lhe teriam dado esse emprego. Todo o conhecimento tem possíveis vantagens ou desvantagens, depende da maneira como se usa.

O seu interesse pelo universo é conhecido. Como viu a recente passagem da primeira sonda humana por Plutão?
Acho fascinante que nos consigamos aproximar e tirar imagens. Lembro-me de o meu pai ir passear comigo para a praia, mostrar-me as constelações e dizer os seus nomes.

Uma vez fizeram-lhe uma pergunta e não respondeu. Tinha que ver com a coincidência de ter nascido no dia em que os americanos deitaram a bomba atómica sobre Nagasaki e se isso o marcara. Volto a fazer a pergunta.
Às vezes digo a brincar: "Eu nasci no dia em que explodiu a bomba atómica e, enquanto há príncipes e reis que nascem com tiros de canhão, eu nasci com a bomba atómica. Se isso teve alguma influência em mim? Duvido, foi mais o fim da Segunda Guerra Mundial que teve mais que ver com a minha juventude, porque alterou a forma de as pessoas estarem e influenciou a forma de os meus pais olharem para o mundo e para mim, a forma de pensarem que eu tinha o mundo aberto à minha frente e que não teria de andar a fugir como eles.

"Eu e o Richard decidimos: se a política começar a afetar a nossa relação, paro logo"
Se não houvesse esta "oportunidade política" não tencionava ir viver para outro país?
Não sei. Eu e o Richard [Zimler] falámos muitas vezes sobre isso. A intenção era viajar por uns meses. Nós gostamos imenso do deserto americano, das Montanhas Rochosas, e iríamos de certeza passar uma parte do ano lá. Alugávamos uma casinha muito baratinha no meio de nenhures e ficávamos lá uns meses. Também gostava de conhecer mais a Europa - não gostava de ir para muito longe. O Oriente não me interessa muito. Não tenho grande curiosidade pela China.

Ele não ficou aborrecido com esta decisão?
Ficámos ambos apreensivos. Porque esta nova situação é uma coisa que envolvia duas pessoas que têm 37 anos de vida em conjunto e que não permitem o que quer que seja que altere as suas vidas. A nossa decisão foi a de que se isto começar a afetar a nossa relação ou a minha saúde eu pararei instantaneamente. Aí não há qualquer discussão.

Isso é uma forma de estar que vem de família?
Nasci muito tarde. Os meus pais estiveram casados 15 anos antes de eu nascer porque estavam na guerra e a única coisa que desejaram para mim foi que fosse feliz.

Esse era um melhor posicionamento para com os filhos?
Toda a vida deles acharam que a única coisa que era importante era eu sentir-me realizado naquilo que estava a fazer. Isso era assim porque eram pais mais velhos e que já tinham vivido os desafios todos anteriormente. Houve uma sabedoria profunda que aprecio imenso, daí que não vá permitir o que quer que seja que interfira na minha vida de um modo indesejado. Não é uma forma de egoísmo, pois estou muito interessado nos problemas sociais e nas minhas preocupações em muitas áreas sociais fraturantes em Portugal. Mas essa necessidade de também comparticipar deve-se a sentir que recebi dos meus pais, da sociedade e dos meus amigos muitas coisas valiosas. Isto pode parece um bocadinho chacha mas não é.

Ainda sente curiosidade em estudar?
Tenho imensos livros que gostaria de ler. Principalmente na área do risco e perceber como é que entendemos o risco, como é que se o comunica e usa para tomar decisões. É uma área fascinante.

Tem que ver com as suas áreas de estudo?
Está entre as ciências sociais e as ciências humanas. Vejamos: para tomarmos uma decisão arriscada precisamos de três componentes: saber tudo sobre aquele assunto - e fica-se logo a perceber de imediato que há muita coisa que não sabe ou não se sabe; a segunda é perceber ou estar convencido de que se está a viver num mundo ou muito frágil ou muito robusto porque aí arrisca-se em função da própria capacidade; a terceira é a confiança. A confiança nas instituições que lhe dão a informação. Tem ou não confiança? E cada vez há menos confiança, como é o caso da discussão em torno das alterações climáticas.

É um descrente nestas ameaças ambientais?
Será que devemos acreditar no que andam a dizer sobre as alterações climáticas? Como é que se constroem os cenários na nossa cabeça para escolhermos a vida que queremos ter e a sociedade em que queremos viver. Essa equação fascina-me e acho que a Assembleia da República pode ser um laboratório interessantíssimo para estudar este assunto.