23/11/2014

A Justiça a que temos direito

Subscrevo na totalidade as palavras de Clara Ferreira Alves, incluindo a indiferença por José Sócrates. Mas assusta-me a Justiça (ou falta dela) que se pratica em Portugal, a qual mais parece fruto de filmes Western Spaghetti, de cowboys da Série B, do que um dos pilares fundamentais de uma democracia!
A uns suspeitos deixam-se durante meses nas empresas e lugares que se presume terem desfalcado e criminosamente aproveitado para enriquecer, permitindo-lhes acabar de sacar o pouco que escapara à rapina de anos; a outros, por razões que me parecem mais políticas do que de apuramento da verdade, faz-se uma espécie de caça e quase linchamento em praça pública.
E não consigo compreender como se entrega a um único juíz, por muito competente que seja, mais de meia-dúzia de processos de corrupção, dos mais complexos que surgiram no nosso país, nestes últimos anos!



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A Justiça é antes de mais um código e um processo na sua fase de aplicação. Ou seja, obediência cega, essa sim cega, a um conjunto de regras que protegem os cidadãos da arbitrariedade. Do abuso de poder. Do uso excessivo da força. Essas regras têm, no seu nó central, uma ética. Toda e qualquer violação dessa ética é uma violação da Justiça. E uma negação dos princípios do Direito e da ordem jurídica que nos defendem.  
Num caso de tanta gravidade como este, o da suspeita de crimes graves e detenção de um ex-primeiro-ministro do Partido Socialista, verifico imediatamente que o processo foi grosseiramente violado. Praticou-se, já, o linchamento público. Como?
1) Detendo o suspeito numa operação de coboiada cinemática, parecida com as de Carlos Cruz e Duarte Lima, a uma hora noturna e tardia, num aeroporto, quando não havia suspeita de fuga, pelo contrário. O suspeito chegava a Portugal. Porque não convocá-lo durante o dia para interrogatório ou levá-lo de casa para detenção?
2) Convidou-se uma cadeia de televisão a filmar o acontecimento. Inacreditável.   
  
3) Deram-se elementos que, a serem verdadeiros, deviam constar em segredo de Justiça. Deram-se a dois jornais sensacionalistas, o "Correio de Manhã" e o "Sol", que nada fizeram para apurar o que quer que seja. Nem tal trabalho judicial lhes competia. Ou seja, a Justiça cometeu o crime de violação do segredo de Justiça ou pior, de manipulação do caso, que posso legitimamente suspeitar ser manipulação política dadas as simpatias dos ditos jornais pelo regime no poder. Suspeito, apenas. Tenho esse direito.
4) Leio, pela mão da jornalista Felícia Cabrita, no site do "Sol", pouco passava da hora da detenção, que Sócrates (entre outros crimes graves) acumulou 20 milhões de euros ilícitos enquanto era primeiro-ministro. Alta corrupção no cargo. Milhões colocados numa conta secreta na Suíça. Uma acusação brutal que é dada como certa. Descrita como transitada em julgado. Base factual? Fontes? Cuidado no balanço das fontes, argumentos e contra-argumentos? Enunciado mínimo dos cuidados deontológicos de checking e fact-checking? Nada. Apenas "o Sol apurou junto de investigadores". O "Sol" não tem editores. Tem denúncias. Violações de segredo de Justiça. Certezas. E comenta a notícia chamando "trituradora" de dinheiro aos bolsos de Sócrates. Inacreditável.
5) Verificamos apenas, num estilo canhestro a que a biógrafa de Passos Coelho nos habituou (caso Casa Pia, entre outros) que a notícia sai como confirmada e sustentada. Se o Watergate tivesse sido assim conduzido, Nixon teria ido preso antes de se saber se era culpado ou inocente. No jornalismo, como na justiça, há um processo e uma ética. Não neste jornalismo.
6) Neste momento, não sei nem posso saber se Sócrates é inocente ou culpado. Até prova em contrário é inocente. In dubio pro reo. A base de todo o Direito Penal.
7) Espero pelo processo e exijo, como cidadã, que seja cumprido à risca. Não foi, até agora. Nem neste caso nem noutros. Isto assusta-me. Como me assustou no caso Casa Pia. Esta Justiça de terceiro mundo aterroriza-me. Isto não acontece num país civilizado com jornais civilizados. Isto levanta-me suspeitas legítimas sobre o processo e a Justiça, e neste caso, dada a gravidade e ataque ao regime que ele representa, a Justiça ou age perfeitamente ou não é Justiça.
8) Verifico a coincidência temporal com o Congresso do PS. Verifico apenas. Não suspeito. Aponto. E recordo que há pouco tempo um rumor semelhante, detenção no aeroporto à chegada de Paris, correu numa festa de embaixada onde eu estava presente. Uma história igual. Por alturas da suspeita de envolvimento de José Sócrates no caso Monte Branco. Aponto a coincidência. Há um comunicado da Procuradoria a negar a ligação deste caso ao caso Monte Branco. A Justiça desmente as suas violações do segredo de Justiça. Aponto.
9) E não, repito, não gosto de José Sócrates. Nem desgosto. Sou indiferente à personagem e, penso, a personagem não tem por mim a menor simpatia depois da entrevista que lhe fiz no Expresso há um ano. Não nos cumprimentamos. Não sou amiga nem admiradora. É bizarro ter de fazer este ponto deslocado e sentimental mas sei donde e como partem as acusações de "socratismo" em Portugal.
10) As minhas dúvidas são as de uma cidadã que leu com atenção os livros de Direito. E que, por isso mesmo, acha que a única coisa que a Justiça tem a fazer é dar uma conferência de imprensa onde todos, jornalistas, possamos estar presentes e fazer as perguntas em vez de deixar escorregar acusações não provadas para o "Correio da Manhã" e o "Sol". E quejandos. Não confio nestes tabloides para me informarem. Exijo uma conferência de imprensa. Tenho esse direito. Vivo num Estado de Direito.
11) Há em Portugal bom jornalismo. Compete-lhe impedir que, mais uma vez, as nossas liberdades sejam atropeladas pelo mau jornalismo e a manipulação política.
12) Vou seguir este processo com atenção. Muita. Ou ele é perfeito, repito, ou é a Justiça que se afundará definitivamente no justicialismo. Na vingança. No abuso de poder. Na proteção própria.

O teste é maior para a Justiça porque é o teste do regime democrático. E este é mais importante que os crimes atribuídos a quem quer que seja. Não quero que um dia, como no poema falsamente atribuído a Brecht, venham por mim e não haja ninguém para falar por mim. A minha liberdade, a liberdade dos portugueses, é mais importante que o descrédito da Justiça. A Justiça reforma-se. A liberdade perde-se. E com ela a democracia. 

3 comentários:

João Ribeiro disse...

Com todo o devido respeito, preso por ter cão e preso por não ter. Quando não se faz nada é porque não se faz nada, quando se actua, não devia ser assim, devia de ser assado. Por favor já não há paciência. Típicos portugueses de falinhas mansas.. Por amor de Deus, não é democrático prender quem roubou?? Isso é perder liberdade?? Quem diz que não existem provas em segredo de justiça? E será necessário mais provas do que o estado em que o governo deste Sr deixou o País? Sirva o caso de Sócrates de lição para eventuais similaridades e sim deviam ter sido todos tratados do mesmo modo, aliás bem pior mas o sistema tem de começar a funcionar algum dia. Farto de paninhos quentes para esta escória que deita abaixo um País e ainda vêm estes jornalistas metidos na gaveta opinar sobre o sistema judicial, quando este realmente actua. Diz a Sra Clara Alves que é "indiferente à personagem" mas será indiferente ao PS?? Por favor deixem-se de hipocrisias! Coitadinho do Sócrates é um mártir..

DEANA BARROQUEIRO disse...

João Ribeiro, eu desejo que se faça justiça (o que no nosso país, infelizmente, poucas vezes acontece aos criminosos que tem dinheiro para dela se safar, pagando a advogados espertos que conseguen adiar a sentença até à prescrição dos crimes). Não gosto da personagem José Sócrates, do seu carácter nem da sua actuação, mas não desejo a ninguém, "famoso" ou simples mortal, este tipo de prisão e condenação de circo mediático, promovido por interesses e agendas políticas que não têm a ver com o apuramento da verdade. Por alguma razão, com o escândalo Sócrates", deixou de se ouvir falar do "escândalo dos Vistos Gold" e dos suspeitos do actual governo. E o meu receio, ao contrário do que pensa, é que se Sócrates for culpado, acabe por não ser condenado, devido a erros de investigação e juízos precipitados e mal fundamentados, como tem acontecido nos últimos casos mediáticos em que "a montanha acaba por parir um rato" e são raríssimos os condenados ou cumprem uma pena ridícula. E ainda os contribuintes têm de lhes pagar indemnização.

João Ribeiro disse...

Interpretações. Parece-me a mim que o "circo mediático" e "agendas políticas" estão ser criádos em grande parte pelo PS. É o próprio PS que usa o facto do indivíduo José Sócrates ter sido detido para atacar o PSD sobre uma eventual perseguição política e fazendo de Sócrates uma vitima de um esquema maquiavélico. Uma velhinha "teoria da conspiração". Enfim, partilho do mesmo medo que como de costume acabe por não ser condenado. Os "Visto Gold", BPN, BES e afins, se realmente houvesse justiça seriam todos trazidos à justiça e culpabilizados de igual modo mas temo que justiça neste País, infelizmente, seja um termo quase utópico.